Onde é mais seguro pedalar, em Paris ou no Tajiquistão

Como alguns devem saber, desde abril de 2016 estou dando a volta ao mundo com a Dulcinéia, minha adorável bicicleta de bambu. Já cruzamos a África de ponta a ponta, estamos terminando a Europa e partindo para a Ásia. Como na rota está o Tajiquistão, recebi centenas de mensagens de preocupação e pêsames sobre o recente atentado na região, com algumas desinformações. Decidi fazer algumas averiguações com autoridades, ciclistas e nativos, para dar alguns esclarecimentos e também fazer um desabafo. Vamos ao que é tido como fato até o momento. No dia 29 de julho, cinco terroristas atropelaram deliberadamente um grupo de sete ciclistas, depois os atacaram usando facas. Morreram dois americanos, um suíço e um holandês, os outros três escaparam com vida. O atentado aconteceu na cidade de Danghara, fronteira com o Afeganistão.O Daesh – ou o auto-intitulado “Estado Islâmico”, reivindicou o ataque, mas meio que o grupo é notoriamente conhecido também por reivindicar qualquer ataque pelo mundo, portanto não há nada confirmado. Por outro lado, o governo Tajiq responsabiliza pelo ataque o partido banido no país, a Renascença Islâmica, o que é visto como uma forma de ao mesmo tempo espantar o medo da presença do Daesh no país e de quebra enfraquecer o partido adversário. O fato é que esse foi o primeiro ataque registrado a turistas do ocidente no país.

Vale muito pegar as análises do Paul Stronski para o Washington Post, ele é especialista em Eurásia e Rússia. Ele e outros afirmam que os países dessa região possuem um patrulhamento forte e ostensivo feito pelo exército e pela polícia, por isso a região da Ásia Central – parte da ex-União Soviética –  é considerada extremamente segura quanto a iminência de ataques terroristas de larga escala. De fato, o governo dos Estados Unidos sempre teve o Tajiquistão em segurança “Nível 1 – Precauções de rotina”, e após o ataque as recomendações de segurança subiram para “Nível 2”. No norte do Afeganistão, com o qual o Tajiquistão faz fronteira e perto de onde aconteceu o ataque, a recomendação é de “Nível 4 – Não viajar”. Após o ocorrido, tanto os especialistas da região quanto os próprios governos envolvidos não retiraram a recomendação de visita ao país.

Vista de Dushanbe, com o palácio presidencial e o rio Varzob. Tajiquistão, na Ásia Central ©depositphotos / Leonid_Andronov

Claro, ninguém precisa ser um especialista em Tajiquistão, eu mesmo pesquisei mais profundamente somente por estar por visitar a região, mas destaco que existe um tipo de ignorância positiva e outra negativa. Há os que não sabem de algo e perguntam, se informam, pesquisam, ou os que simplesmente pegam uma manchete e concluem com contundência e certeza sobre algo, muitas vezes sem sequer ler a matéria completa. Por matemática básica, até então não sabíamos nada do Tajiquistão, depois recebemos uma notícia ruim, portanto a única notícia ruim representa 100% do que sabemos do país. Porém, 100% do que sabemos pode significar simplesmente que não sabemos o suficiente, por isso checamos, perguntamos. Poucos me perguntaram o que estava acontecendo, se eu estava preocupado, me vi rodeado de especialistas que há até dois dias sequer sabiam soletrar o nome do país.

Existe uma tendência natural de temer o que desconhecemos, ou valorizar o que temos como zona de conforto. Para ilustrar, posso citar apenas de memória lugares por onde pedalei e jamais recebi recomendações de cautela. Houve em maio o ataque no Distrito Ópera em Paris e em Liége na Bélgica, além de um ataque via atropelamento em Toronto que matou dois e deixou mais de uma dezena de feridos, uma semana antes do ocorrido no Tajiquistão.  Visitei Londres pouco depois do atentado na London Bridge, e Paris após o atentado de Notre-Dame. O atentado de Nova Iorque em outubro foi até bastante semelhante, com o uso de um caminhão que vitimou mais de duas dúzias de pessoas. 

Ninguém, repito, ninguém jamais me escreveu pra dizer “Nossa, cuidado com Paris, hein!”, “Hum, pedalar logo em Manhattan…”. Isso de forma alguma quer dizer que todos esses locais são inseguros, senão que os atentados são vistos como uma exceção em meio a um ambiente seguro. Minha pergunta é: por que somente no Tajiquistão, que simplesmente não tem o registro anterior de ataques a turistas, a exceção virou verdade?

Família Tadjique Foto – ​© depositphotos / olinchuk

Das notícias direto do front, de quem está comendo poeira de estrada pedalando e dentre os quais me incluo, existe uma recorrência absoluta: a raça humana é espetacular, o mundo também, mais viajamos e mais nos damos conta disso. Viajo para aprender e passar a mensagem adiante, com base no que vejo com os meus olhos, sem jamais deixar de pesquisar e obter diferentes pontos de vista.

Algo semelhante aconteceu enquanto eu cruzava a África. “África é perigoso e tá em guerra…”. África onde, cara pálida? Como se a África fosse um país. Sim, de fato há por lá zonas de guerra em que é bom evitar, algumas com guerras históricas. Meu ponto é que essa narrativa de usar exceção como regra pode ser usada em qualquer região do globo. Somente agora, há uma guerra no Leste da Ucrânia, sem falar da região da Crimeia.  Pra pegar apenas as últimas décadas, temos a crise de mísseis do Chipre, as guerras no norte do Cáucaso, de independência da Croácia, Chechênia, Kosovo, Geórgia. Lembrem-se de que estamos falando de uma Alemanha que existe tal qual a conhecemos somente a partir de 89, o mesmo com a República Tcheca e tantos outros. O que chamamos de Guerra Mundial foi muito mais uma guerra na Europa. África e Brasil estavam muito bem, obrigado. 

© depositphotos / olinchuk

Nunca, repito, nunca recebi recomendações de cuidado ao cruzar a Europa, mesmo que os conflitos que citei sejam apenas os que tenho na memória imediata. Por alguma razão, existe o discernimento de pensar que não são todas as regiões da Europa que podem oferecer risco, ou que algumas coisas aconteceram há muito tempo e não existem mais. Quer a notícia boa? O mesmo acontece com a África, com o Tajiquistão. O mesmo vale para todo o mundo.

Claro, jamais vou sair por aí sem saber onde piso, pois disso depende a minha vida e graças a isso estou aqui escrevendo essas linhas. O que digo com isso é que fazer da exceção uma regra dá margem para uma série de distorções perigosas. 

Outra boa notícia? O mundo é, por via de regra, extremamente seguro, vos escreve quem por ele viaja desde 2007. Se existe um risco? Existe sim, mas não me atreveria a arriscar mais de 1% nisso. Se eu pensar nos riscos de menos de 1% antes de fazer algo, sequer pego o elevador.

Ricardo Martins é carioca, 33 anos, formado em Marketing, com especialização em Coaching e nova graduação em Ciências Sociais, com ênfase em políticas de mobilidade urbana. Desde abril de 2016 está dando a volta ao mundo com sua bicicleta de bambu, através do projeto Roda Mundo. Já cruzou a África de ponta a ponta, finalizou a Europa e seguiu para a Ásia. Antes disso, viajou durante 4 anos de bicicleta pela América do Sul, com R$ 385 iniciais. O projeto atual conta com um documentário no YouTube, fotos e artigos. No projeto Roda Mundo, já foi palestrante para a ONU na COP-23, maior evento de sustentabilidade do mundo. Também foi speaker encerramento no TEDx – Alemanha, além de recentemente haver apresentado seus estudos no Velo-City, maior evento de mobilidade por bicicleta do mundo. www.roda-mundo.com canalrodamundo@gmail.com © Arquivo Pessoal