A HISTÓRIA DA BICICLETA NO BRASIL

Assim como com outros inventos e descobertas, a história da bicicleta sempre esteve envolta em alguns enigmas. Isso se dá, naturalmente, devido à falta de informações precisas. E, por incrível que pareça, a história da bicicleta no Brasil é ainda mais difícil de destrinchar.

Bem, parece que no caso da história da bicicleta no Brasil, o que pesa mais é o fato de que poucos se debruçaram sobre o tema. Vários são os fatores que levam a isso, com destaque, sem dúvida, à ausência de uma bibliografia específica, até porque foram poucos a escreverem sobre o tema ao longo do século XX. Anterior a esse período, a coisa fica reduzida a notícias de jornais, e alguns informativos de clubes.

 Anúncio do jornal O Estado de São Paulo, 1897

As primeiras bicicletas no Brasil

As primeiras bicicletas chegaram no Brasil no final do século XIX, vindas da Europa. As cidades de Curitiba e São Paulo receberam um grande número de imigrantes europeus, de onde datam os primeiros registros de utilização da bicicleta por aqui. Em São Paulo, o primeiro clube amador de passeios e corridas de bicicleta foi fundado em 1892, o Club Olympio Paulista. Teve curta duração e reapareceu dois anos depois com o nome Club Olympico Paulista. O Olympico realizou a primeira corrida da cidade em 21 de junho de 1894.

A partir de 1894, começou a importação de bicicletas para o Brasil, aumentando o acesso ao ciclismo, inclusive para algumas moças. Em 1895 já existia um clube de ciclismo em Curitiba, organizado por imigrantes da Alemanha. Em São Paulo foi construído o primeiro velódromo do país, inaugurado em 15 de setembro de 1895. A construção começou a receber críticas e passou por uma reforma, sendo reaberta em 1896.

Ciclistas no Velódromo Paulista em 1895.

Nessa época também se mostrou através da imprensa a importância que os esportes vinham tomando na sociedade de São Paulo. Eram publicados 17 periódicos voltados à prática de esportes, inclusive um chamado ‘A Bicycleta’ (1896).

Anúncio da reabertura do Velódromo Paulista, em 1896, com a bandeira hasteada do Veloce Club Olympico.

Também no fim do século 19, o ciclismo começou a se popularizar no Rio de Janeiro, através de clubes como o Sport Club Villa Izabel e o Real Sociedade Club Gymnastico Portuguez, com provas de ciclismo que aconteciam em momentos especiais, como festas. Mas com a inauguração do Club Athletico Fluminense, em 12 de julho de 1895, essas provas se tornaram mensais. Como as bicicletas eram muito caras, as provas contavam com algo entre 2 a 5 participantes em seus primeiros anos.


As primeiras corridas francesas entre velocípedes aconteceram em hipódromos. Em São Paulo não foi diferente, elas tiveram início no prado da Mooca, no final do Império. 

Porto Alegre começou a ver o desenvolvimento do ciclismo na década de 1910. A cidade tinha duas associações voltadas ao esporte: União Velocipédica de Amadores, criada em 1895 e a Radfahrer Verein Blitz, ou Sociedade Ciclística Blitz, de 1896 e associada ao Ruder Verein Germania. As disputas entre os dois grupos eram divulgadas pela imprensa, com o jornal Gazetinha publicando durante quatro dias seguidos textos tratando do tema e de seus benefícios para a saúde. Tais reportagens, que contribuíram significativamente para o desenvolvimento do ciclismo na cidade, além de relacionar a bicicleta com a saúde, apresentava-a como um símbolo de modernidade, em um momento onde a capital gaúcha passava por intensas transformações sociais e urbanas.

Porém, o ciclismo nacional foi modesto e não passou de modismo estimulado pelas casas de apostas. Não havia patrocínio de indústrias e as corridas de estrada não evoluíram. Nenhuma entidade, nacional ou regional, organizou o esporte e os clubes desapareceram em poucos anos.

Por algum tempo houve empolgação nos velódromos, principalmente porque eles seguiam o modelo das competições do turfe, as corridas em páreos estavam no auge. A analogia entre o cavalo e a bicicleta também era chamada de “cavalo de ferro” foi estendida para o lazer e o esporte. Considerados como cavaleiros modernos os ciclistas poderiam competir entre si, tal como jóqueis.  Não por acaso, as primeiras corridas francesas entre velocípedes aconteceram em hipódromos. Em São Paulo não foi diferente, elas tiveram início no prado da Mooca, no final do Império. 

Registro do primeiro clube de bicicletas do Brasil, em Curitiba, 1895 (© Domínio Público).

Para o Brasil do final do século XIX e início do século XX, a bicicleta era uma realidade distante, devido aos altos custos de importação e da inexistência de fabricantes e oficinas em território brasileiro. As bicicletas eram um atrativo e um deleite para as classes mais abastadas – essa fase ocorreu praticamente em toda a Europa e também no Brasil. Por fim, sua massificação aconteceu logo após a II Guerra Mundial e durante a década de 50, quando elas adquiriram o status de “veículo da classe trabalhadora”, ou seja, já discriminadas pela sociedade consumista do pós-guerra.

As dificuldades para a implantação de um parque industrial voltado à produção de bicicletas foram grandes no início do século XX. A situação foi agravada por vários problemas de ordem interna, todos de caráter político e com seus inevitáveis desdobramentos negativos no plano industrial e social:

  • Crise de 1929
  • Revolução de 1930 (ascenção de Getúlio Vargas)
  • Revolução Constitucionalista de 1932
  • Revolução Comunista de 1935
  • Estado Novo de 1937
  • II Guerra Mundial de 1939 a 1945

Somente no final da década de 40, é que a indústria voltada para a produção de bicicletas lançaria suas bases para deslanchar na década seguinte.

Durante esse período de incertezas, pequenos empresários como a Família Scattone, Miguel Chiara, Casa Luiz Caloi, Dimas & Felix Pneus e Artefatos Condor importavam bicicletas, componentes e acessórios. Mediante algumas adaptações de ferramental, esses mesmos empresários começaram a fazer vários modelos de quadros e para-lamas para montagens próprias, produzindo excelentes bicicletas.


Casa Luiz Caloi

Fundada pelo imigrante italiano Luigi Caloi, em 1898, inicialmente se chamava Casa Luiz Caloi e começou importando bicicletas europeias e produzindo apenas acessórios. Vinte e seis anos depois, virou Casa Irmãos Caloi, que era formada pelos filhos de Luigi, que havia falecido naquele ano. A sociedade não durou muito tempo, e apenas um dos herdeiros, Guido Caloi, se manteve na empresa. Mas a Segunda Guerra Mundial trouxe dificuldade às importações, e a empresa decidiu começar a fabricar as bicicletas localmente, no bairro do Brooklin. Em 1945, a Caloi inaugurou a primeira fábrica de bicicletas do país. (dados fornecidos pela Caloi)

©Arquivo Caloi

Monark e Caloi

Não se sabe exatamente o que aconteceu em relação à data exata da fundação da Caloi, pois, segundo registros levantados na Junta Comercial de São Paulo, em 1º e 10 de abril de 1948, respectivamente, Monark e Caloi iniciaram suas atividades industriais e comerciais. Antes desse período, elas atuavam no país como importadoras e distribuidoras de algumas marcas europeias de boa qualidade.

©Arquivo Monark

A década de 50 foi promissora para a fabricação e comercialização de bicicletas no Brasil. Além da Monark e Caloi, fabricantes de menor porte (como a Role, Patavium, Pimont, Gorick, Hélbia, Gallo, Coringa, Regina, Erpe, Mercswiss, Tamoio, Celta, Victory, Adaga, NB, Bérgamo, Everest, Apolo, Bekstar, Bluebird, Scatt, Rondina, Wolf, Royal, Marathon, Luxor, Centrum, Rivera), e tantas outras marcas, produziram material de alta qualidade e competência.

Bicicleta Mercswiss dos anos 50

Essas marcas ainda tinham o desafio de concorrer com as importadas provenientes da Inglaterra, Itália, França, Suécia e Alemanha. Estas bicicletas eram importadas pelos magazines Mesbla, Cássio Muniz, Lojas Pirani, Mappin e Eletrorádiobras.

No final dos anos 50, outro dado de suma importância e pouco lembrado para os que desejam entender a razão de estarmos na contramão dos países civilizados quanto à utilização da bicicleta: o então presidente Juscelino Kubitschek, mudou a “matriz” do transporte em nosso país, fazendo a opção pelos veículos motorizados, inclusive, trazendo para cá as primeiras montadoras de veículos leves, ônibus e caminhões, e deixando de lado as ferrovias e portos.

Berlineta Caloi 1967 (Divulgação Caloi)

Mesmo assim, havia espaço para o mercado crescer mais, afinal, o carro ainda era um sonho longínquo para a grande maioria, e a situação era confortável para os fabricantes até a Revolução de 64 e as reformas monetárias que se seguiram.


Bicicleta Patria, fabricada pelos Irmãos Hubsch de Rio do Sul, SC. Década de 1960

Os fabricantes que tinham dívidas atreladas ao dólar por causas da importação, principalmente de máquinas, ruíram, pois o acesso aos empréstimos governamentais foi suspenso.

Monark Brasiliana mirim 1964
Caloi 10 1972 (Divulgação Caloi)

Nesse contexto de dificuldades para a maioria, Caloi e Monark começaram a deslanchar em busca do domínio do mercado de bicicletas. As duas “grandes fábricas” foram pulverizando aos poucos as “pequenas notáveis” que sobreviveram, com aquisição e fechamento das marcas.

Série Olé 70 da Monark

Na verdade, a história dessas duas grandes marcas foi marcada por grandes episódios de muita garra e superação, além de outros menos dignos que envolveram a criação de algumas dificuldades para os concorrentes com menor poder de fogo. Aliás, essa sempre fora uma atitude corriqueira das duas marcas na busca da monopolização do mercado de bicicletas, que perdurou durante algumas décadas do século passado.

Caloi Fórmula C – 1979

O fatídico “gran finale” que fechou esse período foi o encerramento das atividades da “Bicicletas Peugeot do Brasil S/A”, que tinha seu complexo industrial em Belo Horizonte, em 1982.


Peugeot

Em 1977 a empresa francesa já produzia bicicletas no Brasil. As bikes Peugeot eram produzidas na cidade de Montes Claros, em Minas Gerais. É verdade que a empresa não se chamava Peugeot, mas sim Almec, uma sociedade da Cycles Peugeot francesa com uma empresa nacional, o grupo mineiro Hermógenes Ladeira, do segmento de refrigerantes e cervejas. Mas os únicos produtos eram bicicletas 100% Peugeot, com nome e desenho iguais aos modelos europeus da marca.

O primeiro veículo Peugeot nacional se chamava Peugeot 10: como o próprio nome indica era uma bike de 10 marchas, estilo competição, concorrente direta das Caloi 10 e Monark 10. Depois veio a linha PT, de Peugeot Turismo. Petit para crianças, PT Júnior para adolescentes e PT1 e PT3, de três marchas, para adultos. Mais tarde também foi lançada a Combat, modelo topa-tudo ao estilo Caloi Barraforte e Monark Barra Circular.

 A Peugeot 10 fabricada em Minas Gerais era concorrente direta da Caloi 10 e da Monark 10 (Foto: Divulgação/Peugeot Cycles) — Foto: Auto Esporte
BMX Monark e BMX Tanque Monark 1978 (Divulgação Monark)

O monopólio de mercado pela Monark e Caloi se deu até o final da década de 80, com o surgimento do mountain bike no mundo, e a abertura do mercado nacional já no início dos anos 90, inicialmente para as bicicletas produzidas em Taiwan e na China.

A partir daí, o mercado sofreu uma brutal transformação, quer pela entrada de produtos com altíssima qualidade (outros nem tanto, mas com preço mais em conta), bem como o perfil do consumidor da classe média, que passou a ser bem mais exigente, e das classes C, D e E que agora poderiam adquirir bicicletas mais baratas e de grande apelo visual, como no caso das Savoy e Royce Union. Em decorrência dessa nova situação, Caloi e Monark quase naufragaram, sendo que a primeira deixou de ser uma empresa familiar, e sob uma administração competente, voltou a ocupar uma boa fatia no mercado nacional de bicicletas. A Monark fechou duas fábricas em Manaus e São Paulo. Aos funcionários demitidos em Manaus, a marca enviou uma carta dizendo que era preferível fechar as portas do que fazer bicicletas com péssima qualidade, como as da China. Hoje, a Monark tem fábrica em Indaituba, SP, e vai bem, apesar de ter um portfólio bem limitado.


A Monark fechou duas fábricas em Manaus e São Paulo. Aos funcionários demitidos em Manaus, a marca enviou uma carta dizendo que era preferível fechar as portas do que fazer bicicletas com péssima qualidade, como as da China.

Monareta Olé 70, lançada em meados dos anos 60, mas teve mudanças de design em 1970 e só se tornou um sucesso (Divulgação Monark)

A marca optou por concentrar sua produção nas chamadas bicicletas de transporte, carga, infantis e mountain bikes, e mantém uma boa participação nos mercados do norte e nordeste. Isso é graças ao seu grande trunfo: a barra circular. A icônica bicicleta foi campeã de vendas da marca por décadas, e até hoje continua sendo copiada por outros fabricantes. Para se ter uma ideia, no seu auge, a Monark chegou a vender algo em torno de 2 milhões de bicicletas por ano.

Monark Barra Circular 1982 (Divulgação Monark)

Depois surgiram outros fabricantes como a Sundown e a Houston. A paranaense Sundown surgiu em meados da década de 90. Veio com muita força, porém, durou pouco mais de uma década.

Sundown Columbus (Divulgação Sundown)

A Houston, do grupo Claudino,  fundada no ano 2000, conta com um grande trunfo para a sua performance de vendas: entre outras empresas, são proprietários de uma rede de lojas de varejo chamada Armazém Paraíba, com mais de 500 lojas espalhadas pelo Nordeste, Norte e Centro-Oeste.

 Houston enterprise modelo hm2000 18 marchas aro 26 – foto: Lojinha  do fabio

Os motorizados

Infelizmente, a década de 50 ficou marcada pela mudança de costumes da sociedade e pela introdução da cultura do consumo. Apareceram a TV, os eletrodomésticos mais modernos e o carro. A bicicleta foi sendo, aos poucos, deixada de lado. Os modelos daquela época, em sua maioria, foram jogados fora. Certos exemplares foram doados. Dessa maneira, antiguidades preciosas se perderam no tempo.

A partir da segunda década do século 21, começou uma nova revolução no mercado de bicicletas do Brasil. Surgiram muitas marcas novas. E finalmente, começaram surgir bikes com qualidade e tecnologia pra fazer frentes às importadas. Mas isso é assunto para outra matéria.

Curiosidades

No final dos anos 70, Caloi e Monark, diante de um grande sucesso de venda de suas bicicletas, se aventuraram no ramo das motos, mais precisamente dos ciclomotores. A Caloi adquiriu a licença para fabricar no país o ciclomotor francês Motobecane, dando-lhe o nome de Mobyllete. O modelo era AV-7 de 49,9 cc.

Mobyllete Caloi (Divulgação Caloi)

Já a Monark também adquiriu a licença da Motobecane, lançando um modelo mais moderno que o da Caloi, adotando o nome de Monareta, que fazia alusão ao ciclomotor da Monark dos anos 60, modelo MSL50, com motor Alemão Sachs, de 2 tempos e 49cc.

Ciclomotor Monark Monareta MSL50 (Divulgação Monark)

Posteriormente, a Caloi também atualizou seu ciclomotor, lançando o modelo AV10.

Ciclomotor Monark Monareta AVX (Divulgação Monark)
Ciclomotor Mobyllete AV10 (Divulgação Caloi)

Ao longo do tempo, a Monark lançou o modelo AV-X (uma cópia da AV10 da Caloi) e S50, e a Caloi criou o XR, modelos que seguiram até o final dos anos 80.

Com a colaboração do Blog das Monaretas