Se você já se confundiu no percurso de uma corrida de bicicleta sabe bem do que estou falando. A frustração é gigante. Nem que seja para fazer a volta e retornar uma centena de metros. Parece que suas forças são drenadas e que seu corpo desaqueceu e precisa de mais meia hora para entrar no ritmo novamente. Já vi isso acontecer. Algumas vezes por culpa do ciclista, outras por culpa da direção da prova. Numa das primeiras corridas de que participei, nem ciclistas nem direção de prova foram culpados. Durante a madrugada, vândalos apagaram as marcas no chão e direcionaram os competidores para o lado oposto num percurso de cinquenta quilômetros. Quatro horas depois de chegarem os primeiros colocados, os olhos da comissão técnica buscavam assombrados alguma informação quando, pelo lado oposto da linha de chegada, encontraram o favorito. Chegava, junto com mais uma dezena de ciclistas, coberto de poeira, com a cabeça pendendo para o lado, as pernas fracas e a alma discutindo com o corpo se não era mesmo caso de abandoná-lo. Erros acontecem; sacanagens também. E não é só nas corridas na sua cidade ou no Brasil, que ainda não tem grande tradição no ciclismo. Na 47ª edição da Paris-Roubaix, ou seja, quando já fazia quase cinquenta anos que a equipe organizadora apanhava ano a ano com os desafios de um evento como aquele, algo além do inusitado aconteceu.

Você deve imaginar. Assistir a uma Paris-Roubaix pela televisão não tem nem metade da graça de assistir lá, ao vivo. O percurso é plano, com 28 setores de pavé, o paralelepípedo desgraçado que fura pneus, derruba ciclistas e quebra braços e clavículas. Um desavisado poderia achar chato tudo isso. Em seis horas de prova, se você estiver parado na metade do percurso, vai esperar por três horas, ver o pelotão passar durante cinco minutos e terá que esperar outras três horas para saber quem foi o campeão. Isso se conseguir ver alguma coisa, porque, dependendo do ponto em que a corrida passar, bicicletas amontoadas a cinquenta quilômetros por hora são indistinguíveis no meio do pelotão. Dizem que a frase que mais se ouve na Paris-Roubaix, no meio do percurso é: “Quem era aquele ali na frente?” Ninguém enxerga nada. Se está seco, os rostos estão cobertos de poeira; se chove, a lama serve de maquiagem, como aqueles cremes de abacate que a sua mãe costumava usar no rosto para ficar mais jovem.

Mas isso é só uma parte da Paris-Roubaix. Os afortunados que conseguem um ingresso para o velódromo de Roubaix, onde acontece a chegada, têm um dia inteiro de atrações. Assim que é dada a largada nos arredores de Paris, começam corridas menores, apresentações, shows e homenagens. Hoje uma grande tela projeta as imagens da TV em tempo real e, se você não está de olho nos sprints que acontecem no velódromo ou na sua pipoca, está concentrado nas fugas do pelotão na tela, transmitidos galvãobuenisticamente pela rádio local. E quanto mais perto chegam os ciclistas, parece que mais alto gritam os alto-falantes. Deviam colocar uma placa alertando cardíacos e portadores de marca-passo. Pode ser perigoso até para corações saudáveis.

Naquela edição da Paris-Roubaix, em 1949, o dia começou veloz, com 217 ciclistas alinhados. Rik Van Steenbergen defendia o título do ano anterior. Fausto Coppi, que com dois Giros da Itália no bolso já era conhecido como Il Campionissimo, estreava na Inferno do Norte ao lado do irmão mais velho, Serse Coppi. Fausto e Rik eram os favoritos. Mas parece que os paralelepípedos do norte da França não gostam muito dessa palavra. Para eles, favorito é mau agouro.

Rik Van Steenbergen caiu na metade da prova e abandonou. Fausto e seu irmão Serse continuaram com o pelotão principal. Mas, faltando 26 km para o final, o francês Jacques Moujica largou o pelotão num ataque violento. As imagens no Youtube ainda hoje me chocam. Os ciclistas já haviam percorrido mais de 200 km e Moujica foi capaz de dar um pulo como aquele. Frans Leenen, Florent Mathieu e André Mahé grudaram na sua roda por alguns instantes, até que Mahé atacou sozinho e abriu um grande vácuo. Naquela velocidade absurda, 26 km seriam percorridos em minutos.

Dentro do velódromo, os enfartes já começavam a acontecer. Os hipertensos suavam frio. Sem dó, alto-falantes gritavam a emoção de cada fuga, dos ataques, das quedas. Mathieu, que estava no grupo, caiu com um pedal quebrado. Restavam agora só três ciclistas na ponta. A cada metro a torcida gritava mais alto, mais coesa, mais empolgada. O velódromo apareceu no horizonte, e com ele a perspectiva da eternidade. Ganhar a Paris-Roubaix não é levar para casa um troféu. É tornar-se imortal, eterno, é inscrever o próprio nome, a marretadas de pedais, no panteão dos ciclistas maiúsculos do universo.

Já às portas do velódromo, onde ocorre uma volta completa e então o sprint que define a prova, Mahé, Leenen e Moujica mantinham a coesão. Agora estavam pouco mais de um minuto à frente do segundo grupo, o dos irmãos Coppi, quando atenderam a um sinal no chão e ao guarda que acenava para a direita. O público ouvia no sistema de som que o trio da fuga entraria em instantes pelo portão principal do velódromo. As fotos da época mostram que não havia um só rosto virado em outra direção. Todos queriam ver quem entraria primeiro no velódromo, quem teria ainda forças para o sprint, quem tocaria com sua roda dianteira a linha de chegada primeiro.

Quem esteve lá afirma que o vento parou e que até os pássaros se aninharam para conferir a chegada dos heróis. Os relógios suspenderam o fôlego e aqueles trinta segundos se transformaram em minutos. Foi como Neo recebendo tiros no alto do prédio em Matrix. Só que em Roubaix nada é ficção.

De repente, Mahé, Leenen e Moujica aparecem por um portão lateral, de segurança. A voz no alto-falante se confunde. Quem são os três intrusos? Sim, são eles, os três da fuga! Não deveriam ter entrado pelo portão principal? Sem entenderem o que se passava, os três irrompem no velódromo a todo gás e partem para a chegada. Mahé, num sprint decidido, vence, recebe as palmas e dá a volta final para cumprimentar todos os milhares de fãs que o aplaudem de pé.

“Egos, chantagens, pequenos erros que transformam a história.”

Enquanto descia da bicicleta para se recompor e para as fotos oficiais, a segunda fuga chegava. Serse Coppi, Fausto Coppi e André Declerck, como se nada tivesse ocorrido, giraram os pedais com a mesma brutalidade de quem está na ponta. Fausto, gentil, cedeu a primeira posição para o irmão, que ganhou o segundo sprint. Só que, ao invés de ouvir o rugido da torcida, Serse e Fausto dividiam as atenções com Mahé, que já se aprontava para receber a premiação.

© Arquivo Histórico

— Só um momento! — disse Fausto, quando soube das condições em que André Mahé havia vencido. — A regra diz que vence quem fizer “o percurso” oficial em menos tempo. Eles não fizeram “o percurso oficial”. Eles entraram pela porta lateral.
Era verdade. Mas não havia sido culpa de Mahé. A organização, ou melhor dizendo, a desorganização da prova é que causara o transtorno. Se tivesse sido orientado corretamente, levaria o prêmio principal, não há dúvidas. Afinal de contas, Mahé sprintou e venceu com mais de um minuto de diferença para Serse Coppi.

© Arquivo Histórico

Até hoje há quem diga que a decisão da UCI, dois anos depois, com horas intermináveis de debates foi a mais justa. A edição de 1949 foi a única Paris-Roubaix que empatou. Há quem discorde. E Mahé, entrevistado em 2007, desabafou:

“É muita estupidez falar sobre isso. Havia uma fuga. Coppi atacou. Seu irmão, Fausto, o ajudou a se recuperar. Ele queria que o irmão vencesse. Eu esperei um pouco e ataquei novamente; e os peguei. E então escapei sozinho. Eu ia ganhar a Paris-Roubaix. Na entrada do velódromo, havia multidões por todos os lados, bloqueando a passagem. Eu olhei ao redor e fui direcionado para a lateral da pista, onde os carros das equipes estacionavam. Um policial indicou o caminho. Depois de um dia de corrida por paralelepípedos como aqueles, eu estava exausto. Um jornalista numa moto gritou ao meu lado “Não é por aí, não é por aí!”. Viramos e entramos no primeiro grande portão que vimos e depois percebemos ser o portão oposto ao da entrada principal. Fausto e seu irmão Serse discutiram com os juízes e pediram a minha desclassificação. Isso era pequeno para ele. Coppi foi um grande campeão, mas, fazer o que ele fez, protestar como ele protestou para tomar a vitória para seu irmão, isso não era digno de um campeão. Estava aquém dele. Um campeão como ele nunca deveria ter se rebaixado a tanto”.

“Foi como Neo recebendo tiros no alto do prédio em Matrix. Só que em Roubaix nada é ficção.”

Egos, chantagens, pequenos erros que transformam a história. O ciclismo, como qualquer paixão, é assim mesmo. Faz amarmos o esporte de um jeito tão profundo que seria melhor nunca termos dado as primeiras pedaladas. Mas agora não tem jeito. É um casamento que dura para sempre, porque o amor verdadeiro, que aperta o peito, esse não tem fim.