INSPIRAÇÃO CYCLE CHIC

Rompe o dia, e em metade do país a temperatura está abaixo da linha de conforto para a grande maioria.

O clamor por estações mais definidas durante o ano parece ter sido ouvido, porque o frio já mostrou sua verdadeira face: se apresentou com toda sua força e beleza, entregou seu cartão de visitas já em março passado e declarou sua autoria ao precipitar sobre os termômetros uma ordem máxima: #quevenhaofrio!

Mas, o que tem o inverno de tão especial? Em nossa opinião, e que muito nos apraz, o inverno é a estação propícia para se estar mais reflexivo e introspecto, para revestir-se e reinventar-se.

Faz-nos ir, por exemplo, até aquele guarda-roupas retirar de lá peças que contam outras histórias. Reviramos, uma e outra, e encontramos, enfim, pedaços de pano que enternecem, que se aconchegam a nós e nós a eles, numa atitude de auto acarinhar-se.

Como é bom descobrir-se ao cobrir-se, fechar os olhos e confessar em pensamento que esta sensação é para lá de especial.

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Num flash lembrei, quando ia de bicicleta para a escola com a merendeira às costas, de minha mãezinha e avó materna recomendando-me, nos anos de minha infância, em alto brado para a vizinhança toda ouvir: Põe uma blusa de frio, menino!!! Que vergonha eu passava, só eu sei. Será que fui o único?

Os bons hábitos, como pedalar prioritariamente pela cidade, não são abandonados, ainda que o frio indique arrepio contrário, basta ver.

E nota-se, a todo instante em qualquer lugar, que tal prioridade escolhida vestiu-se de vivas cores em casacos (da expressão italiana veste cosacca, do turco qaze do russo kozac, que significa ‘andar sem destino’), em lãs e gabardinas (do francês antigo galvardine, que significa ‘capa de peregrino’), toucas e cachecóis (do francês cache-col, que significa ‘esconde o pescoço’), mantas e luvas (do frâncico lofa, ‘palma da mão’), botas e toda a sorte de agasalhos (do gótico gasalja, que significa ‘camarada, companheiro’), além de abrigos (do latim apricare, que significa ‘buscar aquecer-se ao sol’), para dizer não à sobriedade do frio.

Ao contrário, minha gente, a cidade pulsa! Ela está revivida nas bicicletas tomando suas ruas e se mantém aquecida pela nova ordem que, aos poucos, mas definitivamente, se faz perceber: as ruas são para as bicicletas.

Aqui pelos paralelos 30° a 34° Sul, o espetáculo da neve já foi presenciado em inúmeras cidades este ano, o que sugere que se tinja o branco com ciclistas multicoloridos indo e vindo, num contraste elegante e alegre.

Diga-se de passagem, devolver alegria ao inverno significa não se acomodar com o que está posto.

Devolver alegria ao inverno significa impor a ele a nossa condição.

Majoritariamente, o senso comum instiga à inércia de abrigar-se dentro de casa ou do apartamento, em frente à babá eletrônica, a qual não quer que seu séquito a abandone. Porém, um convite que poderá trazer experiências únicas nestes dias é romper a zona de imobilidade e mover-se em bicicleta, gravando na memória da cidade um conceito plural de simplicidade inteligente implícito na escolha. Que interessante, a palavra simplicidade tem ‘cidade’ em si.

Pedalar pela cidade, mais uma vez, é dar um viva à encantadora possibilidade de fazer a diferença, ser chique simplesmente.

Há tanto para ver nesta estação, tanto quanto para sentir.

A bicicleta irá inspirar momentos de deleite e desfrute, seja ao revistar o parque há muito presente apenas naquelas fotos antigas que redescobrimos, velhas e amareladas, no mesmo guarda-roupas do começo deste texto; seja ao combinar um bom encontro com os amigos no bike café recém-inaugurado, a fim de degustar um chocolate quente. Ahhh, que delícia! Reconfortante e recompensador. Viu, pedalar é o máximo!

É possível que nos vejamos inspirados a ir por primeira vez àquela biblioteca da cidade que jamais foi brindada com nossa presença e lá, em minutos de sabedoria, sentar-mo-nos comodamente a absorver conhecimento.

E voltando às ruas, viu-se, rapidamente, um jacquard numa fixa. Viu-se, bem mais lentamente, um suéter (sweater) acompanhando um pulôver (pullover), ambos ingleses, em urbanas estilosas e coloridas. Viu-se, subindo a ladeira numa bike elétrica, uma echarpe (do frâncico skirpja) envolvendo um tronco senhoril. E, com graça, anorakes e parcas impermeáveis, parecendo confetes coloridos, pedalando vintage bikes em direção à universidade.

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E não é que todos, sem exceção, estavam belos a sua maneira?

O clássico não distingue gosto. O clássico se permite subjetividades. E, tanto gosto quanto subjetividades, não se discutem.

Enquanto estação, é certo que o inverno vai passar. Ao som de Tim Maia, enquanto o inverno não passa, a gente quer estar perto de quem se gosta. A prosa ligeira junto à banca de revistas, antes de seguir o rumo pela ciclofaixa ou ciclorrota, deixa perceber aquele vaporzinho que sai das bocas, típico da estação.

Nada constrange a vontade-necessidade de ir e vir de bicicleta na cidade, seja ao trabalho, à escola, ao lazer.

Cabe em qualquer bolsa, vale lembrar, acessórios invernais e aquele lápis labial ou a famigerada manteiga de cacau. Apesar da rima fraca, são bons lembretes que evitam uma boca rachada. E isto, de bonito ou elegante, não tem nada.

O vento sopra, intermitente, ainda bem. E com ele, vai-e-vem à sensação de pele esticada. Não se esqueça de umectá-la. Cuidado com as gorduras nos alimentos, que além de saborosos, farão a consciência puxar as orelhas por baixo dos gorros.

Abotoe o casaco. Suba o zíper da jaqueta e vista o capuz.

Porque rompe a noite, e em metade do país a temperatura está abaixo da linha de conforto para a grande maioria.

Viva a Bicicleta, até no frio, sempre!