Canção da Bicicleta
Os integrantes do Kraftwerk, banda alemã que ocupa um lugar decisivo na história da música eletrônica, são amantes incondicionais das bicicletas. E em ‘Tour de France’, um single dos anos oitenta que mais tarde se tornou a primeira edição de um grande álbum lançado em 2003, essa paixão é evidente. Referências a etapas, pelotões, sprints, pneus, furos. Uma festa musical e ciclística!

Em 1983, o Kraftwerk , banda eletrônica e pedra angular do krautrock, corrente musical que surgiu dentro da contracultura alemã dos anos 60, lançou o single Tour de France. Uma peça de dance-pop hipnótica, que contém desde menções ao Col du Tourmalet (um desfiladeiro localizado nos Pirineus) até referências sonoras como o barulho de uma corrente ou a respiração ofegante dos ciclistas.
A melodia refere-se a um fragmento da seção inicial da Sonata para flauta e piano de Paul Hindemith, compositor, teórico da música, regente e referente da Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade), movimento que surgiu na década de 1920 como uma reação à “arbitrariedade” do expressionismo.
Vinte anos depois, em 2003, a banda formada por Ralf Hütter, Florian Schneider (dois dos membros fundadores em 1970), Fritz Hilpert e Henning Schmitz lançou o álbum Tour de France Soundtracks, concebido como trilha sonora da corrida. Contém doze músicas que remetem ao universo do ciclismo.
A arte da capa do disco, gravada para comemorar o centenário da turnê, é quase idêntica à do single de 1983. Foi o primeiro álbum do Kraftwerk em dezessete anos. Foi elogiado por críticos por se adequar às tendências da música eletrônica da época, principalmente com o que a cena microhouse experimental europeia estava produzindo, aliás fortemente influenciada pelo minimalismo do Kraftwerk.
Na turnê introdutória internacional, o Kraftwerk usou quatro laptops nos quais seus membros operavam sequenciadores, sintetizadores de software e samplers, tudo em sincronia com imagens coloridas exibidas em telas gigantes.

Em 2003, no meio dessa turnê, Ralf Hütter resumiu o espírito do álbum em uma entrevista publicada pelo jornal El País: “É como uma transmissão da corrida. Cada corte remete a uma subida, um sprint, um flat … E o ritmo sempre tem aquela condição aerodinâmica do ciclismo”.
Hütter também falou sobre a estreita relação do Kraftwerk com o ciclismo: “Na verdade, é um hobby recorrente para nós. Todos nós andamos em Mallorca ou nos Pirineus, e já completamos o Tour várias vezes, especialmente nas etapas dos Alpes”.
O single do Tour de France ia fazer parte de um disco que receberia o nome de Technopop, mas em uma incrível coincidência, Hütter sofreu um acidente de bicicleta em Düsseldorf e o projeto foi adiado. Anos depois, quando Ralf já estava totalmente recuperado, o Kraftwerk recebeu um convite para participar de uma exposição no Museu da Música de Paris chamada Electric Body. “Trouxemos um robô que executava movimentos típicos do balé e percebemos que era o centenário do Tour, então resolvemos comemorar com um recorde.”
Movimento e velocidade são recorrentes na obra do Kraftwerk: discos como Autobah ‘ (1974) e Trans-Europe Express (1977), focados no interesse da banda por trens e rodovias, atestam isso. Seu pop robótico e mecanizado reflete a influência cada vez mais perceptível da máquina e da tecnologia na vida contemporânea.
Seu estilo particular de produção foi decisivo para a cena da música eletrônica e também norteou as experiências sonoras de Brian Eno na trilogia Berlin de David Bowie, Low (1977), Heroes (também de 1977) e Lodger (1979).
A força e o encanto do trabalho do Kraftwerk baseiam-se na habilidade de seus integrantes em captar em uma música única e cativante as sensações causadas por fenômenos que raramente inspiram uma música. No caso do Tour de France, a banda falou da força cinética de um pelotão de mais de cem pessoas pedalando ao mesmo tempo, uma inspiração inusitada para uma música-tema que o Kraftwerk soube traduzir com elegância e precisão para seu próprio idioma.