É na pequena cidade de San Andrés Itzapa, no departamento de Chimaltenango, na Guatemala, que Carlos Marroquin mora com sua família. Ele possui um negócio que tem duas faces: uma é a da tradicional loja que vende bicicletas e presta serviços de manutenção; a outra é, provavelmente, algo muito diferente de tudo que você já viu: a construção de máquinas a partir de bicicletas abandonadas, com preços acessíveis para os guatemaltecos das áreas rurais menos favorecidas.

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

Carlos nasceu de uma família agrícola de San Andrés Itzapa, em janeiro de 1974. Único filho homem, e mais novo de cinco, recaíram sobre seus ombros grandes responsabilidades, desde cedo. “Meus pais trabalhavam na costa do Pacífico, no comércio de café e frutas, e só passavam os fins de semana em casa. Eu e minhas irmãs trabalhávamos nas terras da família, no cultivo de hortaliças e criação de animais”, relembra Carlos.

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

A vida em família foi desestabilizada, como a de muitos guatemaltecos, pelo fantasma da Guerra Civil da Guatemala, conflito armado que ocorreu entre 1960 e 1996. Com o pai recebendo ameaças de morte, a família Marroquin fugiu para a costa do Pacífico e lá viveu na clandestinidade até o fim da guerra.

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

A volta para San Andrés Itzapa se deu só depois que os acordos de paz foram assinados. Ele diz: “junto com os sobreviventes da guerra, lutamos para recomeçar, recuperar nossas terras e nossa casa. Em pouco tempo, a comunidade internacional se sensibilizou com a situação do nosso país, e uma enxurrada de agências de ajuda internacional e ONGs se espalharam por toda a Guatemala”.

Foi justamente o trabalho de uma dessas ONGs que lhe trouxe um novo propósito e uma nova esperança…

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

O início

Em 1999, a Pedal Canadá começou a trabalhar em Itzapa. O grupo de voluntários projetava máquinas agrícolas a partir de bicicletas inutilizadas doadas à ONG no hemisfério norte, com o propósito de aliviar o árduo trabalho das viúvas da guerra. Assim que conheceu o trabalho, Carlos se sensibilizou e se envolveu rapidamente. “Tornei-me voluntário e viajei para comunidades remotas, testemunhando o sofrimento das mulheres e crianças que lutavam pela sobrevivência das aldeias dizimadas. Eu vi na tecnologia movida a pedal um futuro melhor para essas famílias”, afirma.

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

Carlos contribuiu voluntariamente com o Pedal Canadá até 2001, quando foi criada a ONG nacional Maya Pedal para dar continuidade ao trabalho iniciado pelos canadenses. Nesta nova etapa, ele assumiu a posição de mecânico chefe. Os trabalhos realizados tornaram San Andrés Itzapa reconhecida internacionalmente por seu impacto positivo e criatividade sustentável. “Em 2012”, diz Carlos, “renunciei ao cargo na Maya Pedal e iniciei um novo empreendimento, chamado Bici-Tec. Nesta empresa seguimos a mesma essência dos trabalhos anteriores: temos o intuito de aumentar as oportunidades econômicas e reduzir a pobreza nas zonas rurais da Guatemala através da concepção, produção e distribuição, a preços acessíveis, de bicimáquinas, uma tecnologia culturalmente apropriada e não poluente. E, a partir deste ano, vamos compartilhar os conhecimentos sobre esta tecnologia em produção de bicimáquinas em um curso para estudantes guatemaltecos e internacionais”.

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

Mas, afinal, o que são estas bicimáquinas?

Máquinas feitas de bicicleta

Imagine uma mulher viúva, mãe de cinco filhos, que precisa cuidar dos afazeres do lar e, ao mesmo tempo, lidar com os trabalhos típicos da zona rural, como recolher água nos poços, por exemplo. No departamento de Chimaltenango, há inúmeros casos assim. Mesmo com uma manivela boa e um bom sistema de roldanas ou polias, a ação de puxar o balde cheio de água dos poços profundos leva, em média, três minutos. “Uma bicibomba pode puxar o balde cheio para cima em 30 segundos”, comemora Carlos.

“Eu vi na tecnologia movida a pedal um futuro melhor”

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

Uma bicimáquina é uma máquina movida a pedal, construída a partir da estrutura de uma bicicleta inutilizada, que oferece uma alternativa mais rápida, sem custo com energia elétrica ou combustível, para tarefas pesadas ou entediantes que, de outra forma, seriam executadas manualmente. Na empresa de Carlos, as bicicletas continuam sendo importadas de ONGs que tem por objetivo recolher e dar uma nova utilidade a bikes abandonadas em países como Canadá e EUA. Segundo Carlos, “essas máquinas permitem que os agricultores diminuam o tempo de processamento em algumas tarefas, e possam se dedicar a outros afazeres e aumentar suas receitas. Bicimáquinas são um meio termo entre o artesanal e o industrial, oferecendo uma solução livre de emissões e eficiente para tarefas árduas, sem tirar o elemento humano da equação”. Ele mesmo corta, solda, desenha, monta e transforma uma bicicleta velha em uma máquina.

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

A bicibomba para usar em poços, por exemplo, pode recolher de 5 a 10 litros de água por minuto em um poço com até 30 metros de profundidade, reduzindo significativamente o tempo e o trabalho envolvido na coleta de água para o uso diário. O conceito é simplesmente adaptar o sistema para substituir a manivela pelo pedal. Carlos relata: “uma dessas bicibombas foi instalada em uma escola rural no norte de Cruz Quiché. Um sistema de tubos ligados à bomba fornece água para os vasos sanitários e para as pias da escola”.

Bicimáquina é uma máquina movida a pedal, construída a partir da estrutura de uma bicicleta inutilizada

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

Outra bicimáquina bastante popular é a debulhadora de milhos. Muito prática para a produção na agricultura familiar, esta máquina economiza muitos dias de trabalho manual durante a colheita. A bici-moinho, uma “usina” que mói qualquer tipo de grão ou comida, é base para a debulhadora de milhos, de forma que a família que quiser as duas máquinas pode comprar uma unidade, com peças intercambiáveis.
O bici-liquidificador alcança uma velocidade de 6.400 rotações por minuto no processamento de alimentos. Segundo Carlos, “esta máquina cria oportunidades econômicas para as famílias e está sendo usado para a produção de produtos que vão desde bebidas frescas até shampoos orgânicos”. O mesmo ocorre com a bicimáquina que remove a casca dos grãos de café. “A potência dela é de quatro sacas por hora. Esta ajuda à produção permite que os agricultores produzam seu próprio café e obtenham melhores retornos sobre seus cultivos”, diz. Outros exemplos são a máquina de ralar coco ou a descascadora de nozes, que permitem ao agricultor vender o produto final com um lucro maior do que o produto bruto.

© David Branigan Colaboração: Sarah Claudette

Com uma visão incrível e capacidade de sonhar grande – e realizar -, Carlos é uma inspiração para todos nós em termos de solidariedade e criatividade. Além disso, soube se utilizar de uma máquina realmente incrível e que melhor aproveita a energia humana, a bicicleta, para servir a uma causa tão merecedora como a ajuda às famílias rurais pobres da Guatemala. Uma máquina que, mesmo velha e abandonada, pode renascer com uma nova forma, para cumprir o mesmo objetivo: oferecer liberdade e uma nova realidade ao seu usuário.