“A vingança do discípulo de Shaolin”

Assim como um motorista cuidadoso sempre olha o nível do óleo do motor do carro, antes de sair para uma viagem, um cicloturista deveria observar a lubrificação da corrente.

Atualmente existe uma gama de lubrificantes especiais e específicos para a corrente de bicicleta. Alguns são feitos para uso em terrenos arenosos, outros resistem à água, outros são feitos com base de cera de abelha e assim por diante.

Em grandes viagens por países de diferentes níveis socioeconômicos será difícil encontrar produtos tão específicos. Carregar consigo grande quantidade de óleo me parece um risco. Risco na hora de tomar um avião (líquidos podem ser considerados materiais perigosos) e risco de sujar ou estragar outros equipamentos em sua bagagem, isso sem falar no aumento do peso a ser carregado até começar a pedalada efetivamente (enquanto está em aeroportos e rodoviárias).

Óleos grossos possuem alto índice de “atrito viscoso”, ou seja, como uma “cola”, o óleo grosso “rouba” a força das pedaladas, além disto, ele aglutina mais grãos de areia e terra, que ajuda a desgastar prematuramente o conjunto de transmissão.

Por essas razões sempre utilizamos óleo fino para lubrificar a corrente (óleo de máquina de costura, por exemplo). Comum e barato, pode ser encontrado em qualquer lugar do mundo, sendo fácil comprá-lo quando chegar ao local onde for começar a pedalar, evitando os riscos e constrangimentos no transporte.

Cada vez que pedalo na chuva, o óleo fino se vai com as gotas de água e preciso lubrificar a corrente novamente. O que parece ser uma desvantagem na verdade facilita muito o dia a dia da viagem, pois este tipo de óleo é fácil de retirar das mãos ou das roupas após uma manutenção. Lembre-se de que, numa viagem, nem sempre terá água em abundância.

Mesmo retirando o excesso após cada lubrificação, de vez em quando, nas paradas de descanso, retiro com um pauzinho a poeira e a terra que vão se aglutinando junto ao óleo na corrente e nas engrenagens.

Conforme relatei na última matéria sobre manutenção em viagens, as sábias palavras de meu amigo francês me influenciaram a observar cuidadosamente a lubrificação de toda a bicicleta até que um dia o acaso me fez duvidar da necessidade de todo esse verdadeiro ritual místico.

Em nossa viagem por Ladakh, sabíamos que teríamos que trocar de avião duas vezes, passaríamos por vários aparelhos de raio-X, traslados em aeroportos e, chegando a Deli, ainda teríamos que carregar todo o equipamento até o táxi, ônibus etc. Sabe-se lá como seriam estes procedimentos num país como a Índia.

Para aliviar o peso nesses traslados, deixamos para comprar vários pequenos produtos como pasta de dentes, sabonete, shampoo, óleo para corrente, entre outros, na cidade de Manali, onde montaríamos a bicicleta e começaríamos nosso pedal propriamente dito.

Quando chegamos a Manali, a tensão era grande, pois não tínhamos certeza do que iríamos encontrar em nosso caminho, não sabíamos quais facilidades nem quais dificuldades estavam por vir. Felizmente Manali é um centro de abastecimento para toda a região e pudemos encontrar tudo, excetuando-se óleo fino.

Talvez eu não tenha me expressado corretamente e os indianos não compreenderam minha necessidade, ou simplesmente tenha procurado o produto em local errado. O fato é que todos diziam que somente na saída da cidade havia uma mecânica de motocicletas em que poderia encontrar óleo para corrente. Sendo assim, deixamos para comprar óleo no dia em que começássemos a pedalar quando saíssemos da cidade.

Depois de descansar e nos preparar por três dias, com todo nosso equipamento montado nas bicicletas, começamos a viagem e finalmente passamos em frente a tal da oficina de motos.

Quando perguntei ao indiano se ele tinha óleo para corrente, ele respondeu “yes Sir!”, e balançou a cabeça da forma típica afirmativa indiana (como uma boia sinalizadora balança em água turbulenta).

Bem, na verdade o que ele trouxe foi uma lata de um litro com óleo de câmbio. Argumentei que era um óleo muito grosso para minha corrente e o indiano comentou: “in Ladakh, there is too much sand Sir. We use no oil on the chain”. (Em Ladakh tem muita areia. Aqui a gente não usa óleo na corrente).

Consegui negociar uma pequena garrafa PET com 250 ml de óleo. Amarrei a garrafinha no canote de selim e segui viagem pensando se iria ou não utilizar aquele óleo tão grosso.

Enquanto subia lentamente o Rothang-la (3.978 metros de altitude) comecei a filosofar sobre este assunto.

Sabíamos que teríamos pela frente muitas estradas com areia, pó, terra e, pelo menos uma vez por dia, atravessaríamos algum rio com a bicicleta, lavando toda a relação. © Rafaela Asprino

Sabíamos que teríamos pela frente muitas estradas com areia, pó, terra e, pelo menos uma vez por dia, atravessaríamos algum rio com a bicicleta, lavando toda a relação. Lembrei-me da época em que viajava com uma moto dois tempos (Yamaha DT-180), as pessoas diziam que se não fosse possível encontrar nenhum tipo de óleo dois tempos para por junto com a gasolina, deveria usar óleo de cozinha, mas nunca deveria deixar sem óleo. O óleo é vital para o motor.

Por outro lado, lembrei-me de uma história contada por um grande amigo, Zé Maurício. Estava em sua casa em Ouro Preto quando ele comentou que um sujeito destruiu uma coroa em um único dia de pedal: “o cara tinha acabado de trocar sua coroa por uma “top de linha” toda em alumínio e foi pedalar na região da Serra do Cipó”.

Zé estava cursando Engenharia e acabei recebendo uma aula sobre o assunto: “na Serra do Cipó é comum encontrar areia de Quartzito, que é uma rocha formada por cerca de 75% de Quartzo que, aliás, é o mineral mais abundante da Terra (com cerca de 12% do volume). Veja, segundo a escala de Mohs, que quantifica a dureza dos minerais de “1” a “10”, o Quartzo está no nível “7”, ou seja, só perde em dureza para o Topázio, o Corindon e o Diamante, que está sozinho no topo da lista de dureza dos minerais existentes em nosso planeta. Sendo assim, não é difícil desgastar uma coroa de alumínio pedalando com areia de Quartzito incrustrada na corrente”.

Por várias vezes, conversando com outros cicloturistas, ouvi dizer de uma tática para conservar a corrente em regiões com muita areia: “nunca lubrificar a corrente”.

Sem óleo a areia não gruda e o desgaste do ferro com ferro é menor que ferro com óleo e areia. Apesar de fazer sentido, nunca tive a coragem de fazer isso, afinal o óleo é tão barato e o ruído da corrente sem ele parece que irá destruir a bicicleta.

Pela primeira vez na vida decidimos usar a tática de deixar o conjunto de transmissão totalmente sem óleo e, rapidamente, percebi as vantagens do sistema.

Atravessamos vários rios de degelo, mas, no geral, a região é desértica e arenosa. Sem óleo na corrente não tive que desperdiçar água para limpar as mãos após consertar uma câmara de ar ou realizar alguma manutenção. Não me preocupei em comprar óleo, nem lubrificar a corrente, tampouco retirar as pelotas de areia com óleo impregnadas nas engrenagens.

Confesso que, a princípio, o ruído de metal contra metal era enervante, mas logo passou. Depois de umas semanas pedalando, o ruído voltou de forma ainda mais enervante. Antes de jogar fora a garrafinha com óleo de motor, coloquei um pouco na corrente e o barulho se foi. Depois de passarmos por alguns rios a corrente voltou a ficar limpa e o barulho ficou suportável pelo resto da viagem.

© Rafaela Asprino

Chegando ao Brasil fomos à bicicletaria de nosso amigo Thosi e, sem dizer nada, pedi para que avaliasse a corrente.

O Thosi pegou seu medidor de desgaste de corrente e disse de forma educada: “É… Está na hora de trocar”.

Com um sorriso desafiador acrescentei: “mas isso eu sei, quero que você me diga quantos quilômetros pedalei com esta corrente”.

Ele mediu novamente, coçou a cabeça e disse: “chutando, eu diria que rodou cerca de 4.000 a 4.500 km”.

Abri um sorriso satisfeito e cumprimentei meu amigo, pois apesar de não acertar ele chegou muito perto. Rodamos cerca de 1.500 km em treinos no Brasil e 2.000 km na viagem por Ladakh. Ou seja, o sistema seco não desgastou a relação muito mais que o normal. O suposto aumento do desgaste causado pelo atrito metal contra metal foi compensado pela eliminação do desgaste causado pela retenção de poeira e grãos de areia no sistema.

Claro que esta história não tem a pretensão de realizar uma prova científica das vantagens, mitos ou desvantagens de lubrificar a corrente. Mais que se libertar do sistema clássico e rígido de boa conservação do conjunto de transmissão, nossa intenção é mostrar a incrível durabilidade e capacidade desta máquina chamada bicicleta.

Para finalizar, deixo aqui outra foto do dia em que entreguei minha bicicleta no Museu da Bicicleta de Joinville (MUBI). Observem bem o conjunto de transmissão… Na próxima oportunidade conto como consegui fazer com que permanecesse nesse estado após pedalar mais de 25.000 km.