Ela foi pensada para ser um alívio no meio da primavera fria e úmida da Europa. Quando a temporada de ciclismo começa no norte do continente, no final de março, ainda há muita neve e São Pedro não costuma estar de muito bom humor. Por isso, em 1907, a Gazzetta dello Sport resolveu criar uma Clássica, ou seja, uma corrida longa, de um dia, entre Milão e Sanremo, na Itália. E nasceu a Clássica da Primavera, mais conhecida como – capriche no sotaque italiano – La Classicissima. Os sorvetes artesanais já estariam prontos, o sol queimaria a pele e os tifosi aplaudiriam os campeões com a paixão de quem passou o inverno entocado de frio.

Seria perfeito… se tudo ocorresse como planejado.

O desafio, como mandava o figurino naquele tempo, deveria ter proporções colossais. E os organizadores capricharam. O percurso impunha aos atletas aproximadamente 300 km, com uma forte subida pelo Passo del Turchino, uma montanha de 530 metros de altura. Nunca esqueça que naquela época as estradas italianas não eram o sonho que são hoje e que as bicicletas só viriam a ter câmbio quase duas décadas depois. Misture tudo isso aos paralelepípedos soltos, à lama e aos buracos e some com dezenas de ciclistas ávidos pela alta premiação em dinheiro. Sim, emocionante!

É claro que para ser considerada a pior corrida de todos os tempos, isso tudo não bastava. Era preciso mais, muito mais. Afinal, uma simples chuva não abalaria o espírito daqueles seres desumanos que se metiam a desafios tão intensos como este em cima de uma bicicleta.

O ano era 1910. Estavam inscritos 63 atletas. Muitos mais se apresentaram no dia, mas desistiram até mesmo da inscrição. A Milão-Sanremo naquele ano cobriria nada menos que 289 km. E então, ao contrário do sol nascendo no horizonte de Milão, o que se viu foi uma nevasca inesperada numa manhã que deveria ser primaveril. Da próxima vez que você estiver com preguiça de levantar da cama, lembre-se deste dia 3 de abril de 1910.

Eugène Christophe, um francês que tinha o rosto decorado por um imenso bigode, levantou-se da cama cedo. Tinha estado por apenas uma outra vez em Milão e conhecia poucas palavras do italiano. Dos 289 km do percurso daquele ano, só tinha rodado pelos 30 km iniciais. Não havia planilhas, altimetria, indicações de pontos de apoio, nada. A única informação confiável que Eugène tinha era do amigo Gustave Garrigou, que já havia pedalado antes no percurso e o alertara sobre a subida do Turchino. E por isso uma boa e longa conversa no café da manhã foi fundamental. Eugène e Gustave decidiram ali quais seriam as duas relações de marchas a usar – uma de cada lado da roda traseira, o que exigia sacar a roda e virá-la para mudar a marcha – e foram consultar o diretor da prova. Sim, mesmo com aquele tempo ruim, a corrida largaria, sem direito a reclamações. E o Passo do Turchino, lá no alto? “Sim, mesmo coberto de neve, passaremos por lá”, disse Alphonse Baugé, o diretor, também conhecido pelo apelido de Marechal.

Alphonse não podia ter sido mais preciso. Era uma montanha coberta de neve. As estradas estavam enlameadas e congeladas, e os ciclistas chacoalhavam ao longo dos buracos que apareciam a cada vinte metros. “Rodamos os primeiros 32 km em 56 minutos; os primeiros 53 km levaram uma hora e 50 minutos”, lembrou Eugène em entrevista décadas depois.

Então o pelotão chegou ao sopé do Turchino. As nuvens baixas amedrontaram os ciclistas, que logo começaram a sentir o frio vindo da montanha. Ninguém estava realmente preparado para aquilo, se é que havia como se preparar. As roupas de ciclismo naquele tempo eram de lã, e em poucos minutos de neblina e chuva não tinham mais função alguma a não ser adicionar peso ao corpo molhado do ciclista. Muitos já tremiam de frio quando deram de cara com um vento glacial. A neve parcialmente derretida sobre a estrada de terra batida entornava o caldo e formava uma lama quase intransponível.

Eugène recorda dos detalhes: “Não muito longe do topo, eu tive que descer da minha bicicleta, porque comecei a passar mal. Meus dedos estavam duros, meus pés entorpecidos, minhas pernas rígidas e eu tremia sem parar. Comecei a caminhar e a correr para que a circulação sanguínea voltasse de onde tinha fugido, mas tudo o que eu via era um descampado e tudo o que eu ouvia era uma sinfonia gutural encenada pelo vento naquele palco desolador. Eu teria ficado assustado se não estivesse acostumado com as provas de ciclocross”.

A esta altura, nenhum dos ciclistas sabia em que posição se encontrava na prova. Ninguém via ninguém. A neblina espessa impedia que atletas a mais de cinco metros de distância sequer vissem a silhueta um do outro.

No topo do Turchino, Eugène entrou no túnel que finalizava a transição e perguntou a um soigneur qual a distância até o líder. Seis minutos, foi a resposta. Na verdade, Cyrille van Hauwaert estava ainda dentro do túnel e tinha estado ali nos últimos seis minutos se recuperando do frio. Nem mesmo o soigneur tinha percebido. Van Hauwaert tinha desistido. Já encapuzado com um sobretudo, queria pouca conversa.

O céu começava a se abrir, mas para a maioria dos ciclistas o dano já estava feito. E a neve, apesar de deixar a paisagem bonita, tinha 20 cm de profundidade na maior parte da estrada. Apesar de a descida ter começado, o empurra-bike continuava interminável. Eugène continuou no lento passo que as condições climáticas lhe permitiam, mas para seu desespero, de uma hora para outra começaram fortes cólicas abdominais. “Eu tive que parar com algo que parecia uma cãibra no estômago. Parei dobrado sobre a bicicleta, com uma mão no guidão e outra na barriga, até que caí em colapso numa rocha no lado esquerdo da estrada. O frio era implacável e tudo o que eu conseguia fazer era mover a cabeça um pouco para a direita ou para a esquerda”.

Foi então que Eugène viu uma pequena casa a pouca distância dali. Sem forças, pensou no prêmio perdido, no contrato com a fabricante da bicicleta, nos 300 francos de bônus, em tudo o que aquilo lhe proporcionaria, até que do meio da nevasca um morador veio em sua salvação. O multicampeão francês de ciclocross, vencedor de diversas clássicas e de etapas importantes do Tour de France, teve de ser carregado no ombro do agricultor que o acudiu. A pequena casa, para onde foi levado, era na verdade uma pousada de viajantes. O proprietário, sem perguntar nada, despiu Eugène completamente e o enrolou num cobertor. Eugène pediu aqua caldo – água quente – e apontou para algumas garrafas de rum. Foi a sua salvação.

“Fiz então alguns exercícios para me aquecer e minha vida voltou ao corpo. Eu queria retomar a corrida, mas o proprietário não me ouvia e apenas apontava para a neve que ainda caía lá fora. E então van Hauwaert e Ernest Paul chegaram. Eles estavam tão congelados que colocaram as mãos nas chamas sem sentirem dor. Ernest havia perdido uma sapatilha e não tinha nem notado!”
Eugène passou pouco mais de vinte e cinco minutos na pousada, o que tiraria hoje qualquer um da disputa pelo título da Classicissima. Mas, dadas as condições desumanas naquele dia, apenas quatro seres humanos cobertos de lama passaram sobre suas bicicletas em direção a Sanremo. O espírito esportivo falou mais alto que o senso de responsabilidade, e Eugène, sob os protestos dos demais colegas, saiu novamente no severo ambiente de montanha direção à estrada.

Um a um, todos foram superados e, no ponto de controle em Savona, ninguém acreditou quando viu Eugène Christophe sozinho. A torcida sequer o reconheceu. Eugène trocou de bicicleta e seguiu pelos próximos 100 km, já com o gosto da vitória na boca, porque ninguém mais teria a menor condição de alcançá-lo.

Eram seis horas da tarde quando o calvário chegou ao fim, totalizando 12 horas e 24 minutos de prova. Uma hora depois chegou o segundo colocado, Giovanni Cocchi e pouco depois o terceiro, Giovanni Marchese. Enrico Sala, o quarto e último colocado, chegou mais de duas horas depois de Eugène. Sim, dos 63 ciclistas que largaram, apenas quatro concluíram a pior corrida de todos os tempos.

Em 2001, quase um século depois, quando o mau tempo voltou a assolar os ciclistas na Milão-Sanremo, os diretores da prova foram mais benevolentes e cancelaram o trecho do Turchino. Les Woodland, o célebre jornalista britânico, resumiu bem: “a direção da prova até poderia ter mandado os ciclistas atravessarem a montanha. Mas não mandaram. Porque homens como Eugène não nascem mais”.