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Uma mulher, duas rodas, três mil km

Uma mulher, duas rodas, três mil km

De Barcelona a Macedônia em bicicleta

A mulher, a liberdade e a bicicleta não compartilham somente o artigo feminino que as define. Existe uma relação entre esses três elementos que se constrói pouco a pouco: a primeira atinge a segunda por meio da terceira. Essa é a história de uma mulher, sobre duas rodas, percorrendo três mil quilômetros.

© Marina Thaler

Muitos foram os motivos que me levaram a escolher a Croácia como ponto final dessa viagem. Eu queria rever as praias de pedras, o azul turquesa singular do Adriático, caminhar pelos labirintos das ruas da Dalmácia e, acima de tudo, rever bons amigos croatas que haviam compartilhado um teto comigo no passado. Bom, talvez esse tenha sido o grande motivo, o motivo inicial. Porém o que me fez continuar pedalando para além dos 1.800 km que separam Barcelona da Croácia… bom, esse eu encontrei na estrada, pedalando.

No final dessa empreitada de 3 meses, passei por 8 países com a “Rocinante dos Bálcãs”, apelido carinhoso que dei a minha magrela em homenagem ao fiel companheiro de Dom Quixote. Juntas, conhecemos Espanha, França, Itália, Eslovênia, Croácia, Montenegro, Albânia e Macedônia, e passamos por lagos, rios e grande parte da costa mediterrânea. Vivemos o verão das nossas vidas.

© Marina Thaler

A bicicleta e o começo da saga

A “Rocinante” era aquela que me levava pro trabalho todos os dias: uma antiga Peugeot laranja, fabricada em 1975. O sapato não era uma sapatilha de ciclismo, mas um par de papetes e, nos alforjes comprados de segunda mão, carreguei as vicissitudes da inexperiência somadas à vontade de conhecer o desconhecido.

Eu nunca havia viajado de bicicleta sozinha e nunca havia feito acampamento selvagem sozinha. Então, para que um fosse o empurrão do outro, convidei Bruno e assim partimos juntos de Barcelona em um dia quente de verão e, com ele, fui até Frejús, na França (cerca de 800 km).

© Marina Thaler

Minha experiência de cicloturismo se resumia a uma pequena aventura pelo litoral uruguaio em 2016, o que garantiu que a troca de câmara de ar não fosse um completo pesadelo, exceto quando precisei trocar a câmara na Albânia; não fosse pela misericórdia e simpatia de um senhor colecionador de quinquilharias que me salvou com um câmara 29” produzida na antiga União Soviética, talvez a viagem tivesse acabado ali mesmo. Os primeiros quilômetros foram alucinantes: pedalar pela Costa Brava, na Espanha, é um deleite para os olhos, mas nem tanto para as pernas. São infinitos sobes e desces, que sempre acabam em uma praia de mar azul turquesa. Duzentos quilômetros e cinco dias depois, cruzamos a primeira fronteira e voilá! Estávamos na França! A emoção de cruzar uma fronteira libera uma rajada de endorfina inexplicável. Quem é cicloturista sabe como é especial o “dia de cruzar fronteira”.

© Marina Thaler

No meu diário, assim descrevi um dos dias dessa viagem: “60km, 60m de desnível, 35°C, Sant Antoni de Calonge-Empuriabrava (Espanha): dia tranquilinho, apenas uma subida mais puxada, depois a uma longa plenitude plana! Apesar de ser um lugar muito lindo, de termos cruzados longas distâncias em meio a belíssimas plantações de girassóis, Empuriabrava é tipo um parque, uma reserva natural, absolutamente cheia de mosquitos durante o verão. Não havia muitas possibilidades de camping selvagem, por incrível que pareça. Nossas opções eram: um espaço entre tonéis de lixo ou ao lado de uma estação de água e esgoto mal cheirosa. Pois foi aí mesmo que acampamos, afinal de contas viajar sem dinheiro nem sempre é tão divertido quanto parece”. Nem tudo são flores no Velho Continente. Nem sempre é fácil encontrar um lugar para simplesmente colocar a sua barraca e passar a noite – o famoso camping selvagem – além do fato de que cada país tem suas próprias leis a respeito da prática. Apesar disso, o também conhecido como camping livre alivia o orçamento da viagem e é o meu mais grande aliado nessa (e em outras) aventuras. Vale ressaltar que os aplicativos do Couchsurfing e Warmshowers incentivam a hospedagem solidária para viajantes, além de estreitar laços entre pessoas de diferentes países e culturas.  Entre camping livre, hospedagem solidária e convites aleatórios de bons samaritanos, os gastos que tive com hospedagem se resumiram em 7 noites, das 90 que viajei.  

Sim, viajar sem grana pode ser bem divertido e te garante situações que certamente o dinheiro não te proporciona. Certa vez, quando passava pela Baía de Kotor, em Montenegro, conheci uma família sérvia que passava férias no litoral. Eles me convidaram para acampar no seu jardim e o convite terminou sendo um final de semana todo com direito a um quarto dentro da casa e presente da vovó quando finalmente me deixaram seguir viagem. Outra vez, já esgotada pelas terríveis subidas e pelo calor sufocante, não tive forças para remendar a câmara que havia furado pela terceira vez no dia, e fui socorrida por um senhor croata que, além de muito simpático e me convidar para uma cerveja, era um ex-ciclista fanático. Terminei conhecendo sua família e passando uma noite na sua casa. Revi amigos pelo caminho, e foi como se eu estivesse um pouco em casa outra vez. Quando Bruno se foi e eu segui viagem sozinha, um novo capítulo começou, completamente diferente.

© Marina Thaler

Ele partiu, partiu…

“Mas você não tem medo? O que a sua família pensa disso? Cadê o seu namorado/marido?”. Infelizmente, essas foram as perguntas que eu mais escutei. Apesar disso, um estranho sentimento de gratidão passa pela minha cabeça cada vez que me fazem essas perguntas. São elas que me levam adiante, que me fazer cruzar fronteiras, seguir adiante com sonhos. Eu tenho medo, mas aprendi a lidar com ele. Eu converso com o meu medo, e o convenço de que o mundo ainda é um bom lugar. É claro que viajar de bicicleta tem um seu aspecto físico, mas é a empreitada psicológica a mais desafiadora aqui. São horas e mais horas pedalando, sozinha, em silêncio, escutando os seus pensamentos mais loucos, que no cotidiano não têm tempo de escapar. E é aí que a gente aprende a conversar com os nossos medos e temores, é quando você se vê frente a frente consigo mesmo que alguma coisa acontece (no meu coração). Aos poucos, o corpo vai se adaptando e, talvez o mais importante, a mente vai se acalmando. O medo já não é o seu maior inimigo e pedalar se torna a minha maior terapia.

© Marina Thaler

Se passaram alguns dias até que, de fato, eu pudesse me acostumar com o caso de estar sozinha. Cruzei timidamente da França para a Itália depois de ter compartilhado o dia de pedalada com a Brigitt – a única cicloviajante solo com quem cruzei nessa aventura. Chegar na Itália pode ser uma alegria ou um tormento: a “bagunça”, os ruídos e os péssimos motoristas fizeram o meu coração já saudoso da cidade de São Paulo bater mais forte. As ciclofaixas tão respeitadas e funcionais da França haviam ficado para trás, dando espaço às estradas estreitas e sinuosas da costa da Ligúria. Verdade seja dita: passei muito rápido pela Itália. Meu objetivo era a Croácia e estava logo ali. No afã de “chegar”, pedalei mais de 100 km por alguns dias seguidos, até que finalmente (depois de cruzar os poucos quilômetros do litoral da Eslováquia), cheguei! No caderninho da vida, anotei “Dia 29, km 1814,22. MÃE, CHEGUEI! Hoje foi um dia daqueles de anotar no caderninho. Seis meses atrás, vir até a Croácia de bicicleta parecia um plano desses de criança, meio sem pé nem cabeça. Eu nunca cheguei a planejar muito, acho que sempre fui adepta do “deixa a estrada te mostrar o caminho”. Eis que então, um mês e mais de mil quilômetros depois, ela me mostrou que a vida se faz dia após dia, que sim, as pessoas são boas, que os sobes e desces são metáforas dessa vida louca e que não há limites para a vontade verdadeira”.

Nunca confie na bateria do seu celular, o analógico nunca falha! © Marina Thaler

E justo quando as pernas estavam começando a adaptar-se ao ritmo da viagem, eu “cheguei”. Mas afinal, o que é chegar? “Na próxima fronteira eu paro”, “a próxima cidade vai ser a última”… E foi assim que eu continuei por mais 1.200 km, cruzando a Croácia de ponta a ponta, conhecendo todas as praias do litoral de Montenegro, entrando na Albânia (que, confesso, antes dessa viagem eu sequer sabia apontar no mapa onde estava), e finalmente terminando essa odisseia em Skopje, na Macedônia.

© Marina Thaler

Quando a alma é nômade, os amigos são o porto seguro, a âncora, a casa. Os novos amigos que se fazem ao longo do caminho são, principalmente, o motivo pelo qual a viagem continua. Como essas, são centenas as anedotas que foram se acumulando ao longo desses 3.000 km. Palavras nunca serão suficientes para agradecer cada um que abriu a sua casa para mim, que me convidou para um cerveja gelada em um verão tão quente, que imprimiu um mapa de 27 páginas para que eu não me perdesse, que contatou amigos para que eu pudesse ter onde dormir em uma outra cidade, e principalmente agradecer a todos que me perguntaram se eu não tenho medo de viajar de bicicleta sozinha. Vocês me fazem acreditar num mundo melhor e me levam adiante.

Esse pequeno relato de viagem não tem nenhuma intenção pretensiosa de autopromoção. É uma tentativa de mostrar que nós, mulheres, podemos e vamos viajar sozinhas de bicicleta!