Início dos anos 50, beirava meus 14 ou 15 anos.

A Gráfica Barão ficava em Olímpia, na Rua Jorge Tibiriçá 1.263, onde Barão meu pai me ensinou o primeiro ofício: tipógrafo. Caju era um garoto amigo, da mesma idade, que também se iniciava no mister.

Monte Azul era uma cidade próxima, cerca de 45km, pra onde se ia ou de trem, pela bitola estreita da extinta São Paulo Goiás ou pela estradinha rural de terra que serpenteava entre cafezais, passando pelas porteiras que anunciavam, em escrita a cal, as Casas Pernambucanas.

Lá, Caju tinha uns tios e primos, donos de um hotel ao lado da Estação, que lhe venderam uma magrela.

Diante das fontes de tipos distribuídos entre caixas altas e baixas, enquanto compúnhamos tipo a tipo no componedor, Caju levantou o problema de não saber como ir buscar a magrela. Aventura à vista, me ofereci, desde que me pagasse a passagem de trem já que a hospedagem sairia de graça.

Acordo fechado, me preparei. Sairia de Olímpia à tardinha após o expediente, tomaria a Maria Fumaça e chegaria à noitinha em Monte Azul, dormiria no Hotel dos primos e sairia bem cedinho, aí pelas 5 ou 5,30h pra chegar em Olímpia ainda com tempo de iniciar o expediente na Gráfica, às 8 horas da manhã. Orieta, minha mãe, se preocupou, se exaltou, recriminou, discursou, mas de nada adiantou, pois o Barão, meu pai, me estimulou, pois assim fazer fazia parte do aprender o ofício do viver.

Andar de Maria Fumaça era um tesão, ainda mais de graça! Resfolegando uma fumaça preta e soltando uma brasa miúda que entrava pelas frestas das janelas, queimando a roupa e os cabelos, a fornalha chiando sobre os trilhos seguia apitando e parando pra carregar e descarregar gente e carga nas estações de Álvora, Severínia, Marcondésia e finalmente Monte Azul, meu destino. Cada estação uma atração, pois ali, no horário do trem, a moçada de banho tomado, a roupinha passada e Baracchini no sovaco se reunia para o footing.

No hotel, a pouca luz acentuava as paredes escuras e num canto ainda mais escuro, atrás da porta emperrada da despensa me apresentaram uma carcaça que chamavam de bicicleta. Eu a examinei com cuidado e pena, mas muito tenso, pois imaginava que os primos iam me entregar uma bike em condições de enfrentar a estrada.

A ferrugem se espalhava pelo quadro, pedais e corrente. Do que restava da pintura, deu pra perceber que já fora uma clássica Phillips inglesa dos anos 30/40. Óleo, não havia, mas tive sorte de arrumar um resto de graxa pra lambuzar a corrente, o volante e a catraca 18. Com uma bomba precária consegui encher as câmaras que se encontravam “no chão”, mas não estavam furadas. As sapatas gastas já deixavam o metal cantar em contato com o aro. A campainha funcionava.

Mal dormi, pois o desafio tomara uma dimensão maior. Pelas 5 horas, ainda escuros o hotel e o dia, todas as almas dormiam, de maneira que ninguém havia pra dizer um bom dia ou um desejo de boa viagem. Abri a porta da geladeira, encontrei apenas um copo com leite pelo meio, debaixo de uma crosta de nata que engoli e de lá me mandei.

Ainda na madrugada escura, em mangas de camisa enfrentando o vento frio ouvi um pio de coruja e atento, a vislumbrei sobre o portão de ferro do cemitério, à esquerda da estrada, pouco antes de Marcondésia. Aumentou o frio e o vento. Me vieram à mente todas as almas penadas, assombrações, mulas sem cabeça, fantasmas e miasmas que me rondavam desde os tempos de criança, quando na fazenda, à beira da fogueira em noites de lua, ouvia as histórias tenebrosas dos contadores de causos que fascinavam, atemorizavam e alimentavam minhas fantasias e meus medos.

Fechei os olhos, invoquei meus anjos, queimei as pernas e passei ventando. As almas dormiam em paz. Fui me acalmando, o coração compassando, o dia clareando, a magrela rangendo até me perceber chegando.

A velha Phillips era outra, eu a percebi valente, inteira, como que rejuvenescida, radiante pela missão cumprida e querendo mais, pois já alquebrada e gasta, não se imaginava capaz de enfrentar a trilha Monte Azul/Olímpia.

A velha Phillips me estava agradecida, eu a acariciei também grato e emocionado. Hoje, relembrando este momento de cumplicidade entre o menino jovem e a bicicleta, minhas imagens se misturam, se transformam e ressurgem. Aquela bicicleta sou eu hoje.

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