Com tantos incentivos para viver de maneira individualista e virtual, as famílias têm sofrido com a carência de interação e a falta de diálogo. Nesse contexto, uma atividade ao ar livre, como andar de bicicleta, pode ser um bom pretexto para um programa saudável com os familiares.

Um dos fatores que mais influencia em nossa felicidade e bem-estar, segundos estudos e pesquisas diversas, é o convívio com a família. A Associação Americana do Coração, por exemplo, comprovou que idosos têm uma recuperação bem mais rápida após um derrame se estiverem acompanhados por parentes. A Universidade de Oregon, EUA, também evidenciou que bebês que têm pais com dificuldades de relacionamento sofrem mais com distúrbios de sono.

De fato, a família é – ou deveria ser – a organização mais valiosa e importante para nós. É essencial cultivar o relacionamento com nossos entes queridos, aprofundar os laços que nos ligam e despender o tempo necessário para aproveitar bons momentos com qualidade ao lado das pessoas que nos estruturam.

Mas como ter um bom convívio familiar, em um mundo que incentiva o individualismo e até o distanciamento entre as pessoas? A virtualidade das relações toma conta inclusive da família; as tecnologias que permitem aproximar quem está longe, também afastam quem está perto. Para driblar um pouco essa negligência que adotamos em nossa postura sociável dentro da própria família, muitos buscam realizar programas ou tarefas em conjunto, como o ato de andar de bicicleta. Pedalar é uma atividade física prazerosa, que já traz muitos benefícios para pessoas de todas as idades: quanto mais representa quando utilizada para reunir os familiares?

Saliente-se que apenas executar qualquer tarefa em conjunto não é a solução: é preciso que ela permita um bom diálogo, momentos de compartilhamento de experiências e sentimentos, admiração e respeito mútuo, bom-humor, afeto e disponibilidade. A bicicleta possibilita esses momentos em uma atmosfera de lazer, o que também é importante para que os familiares percebam que podem se divertir juntos, e que não devem ser companhia apenas nos momentos difíceis.

Em um mundo agitado, divertir-se com uma criança – e como uma criança – tem o efeito de deixar o dia mais leve, tirar a tensão e experimentar uma liberdade criativa e espontânea que a maioria vai perdendo conforme envelhece. Para as crianças, a brincadeira é uma maneira de descobrir o mundo, desenvolver-se nos níveis sociais, físicos e psíquicos. Brincando, ela aprende a se comportar diante de outras pessoas, descobre talentos e vocações, desenvolve sua espontaneidade, entende que às vezes precisa tolerar e compreender o outro, tudo isso de maneira prazerosa.

“Brincar de bicicleta” também é uma oportunidade educativa. Os adultos podem aproveitar uma volta de bike para ensinar os direitos e deveres no trânsito, conhecer e aprender sobre os lugares visitados e até mesmo sobre pequenos ajustes na magrela. O vovô e a vovó também podem participar. Ele pode contribuir com sua experiência na hora de fazer um pequeno ajuste, e ela pode contar algumas histórias. A bicicleta permite que pessoas de várias faixas etárias possam interagir, vivenciar e compartilhar alegria, prazer e descontração. Além disso, o exercício físico e a interação social são muito importantes para os idosos.

Superando dificuldades

Márcio Aurélio Lemos, de Volta Redonda-RJ, decidiu voltar a utilizar a bicicleta como forma de extravasar os problemas do dia a dia. “Eu, meu irmão Reginaldo Lemos, e mais oito amigos, fundamos o Clube Adventure Bike e Trekking, em 2003”, lembra ele. Mas o início não foi fácil. “Havia conflitos com a esposa, até que comprei uma bicicleta para ela – mas ela não gostou da bike. Certa vez, pensei em comprar uma bicicleta nova pra mim e, na loja, encontrei uma bici que era a cara dela; a aquisição foi tão boa que ela se apaixonou pelo pedal, e aquele quadro continua sendo usado até hoje”.

Quando a esposa, Dilian Gomes Antunes, já havia sido conquistada para pedalar, o filho, Marlon, ganhou uma cross, aos cinco anos. “Mas ele não pode usá-la nem dois meses”, diz Márcio. “Foi detectado um problema cardíaco e ele se submeteu a uma cirurgia. Durante seis meses, não podia fazer nenhum esforço”, complementa. Durante as revisitas ao hospital, Márcio mandava um recado para o médico, através de Dilian. “Eu sempre lembrava minha esposa de perguntar ao médico se o Marlon já podia andar de bike. Quando o médico liberou, explicamos para ele que ‘andar de bike’ não significava dar umas voltinhas na praça, mas sim realizar passeios de dezenas de quilômetros. Hoje, aos 10 anos, Marlon participa de passeios de até 50 km em ritmo leve. Matheus, o caçula, também já tem sua própria bike. Adoramos incentivar as pessoas a pedalar, e sabemos que estamos fazendo a nossa parte para formar uma nova geração de ciclistas em Volta Redonda-RJ”.

Márcio Aurélio Lemos e família. © Arquivo Pessoal

Em Todas as fases da vida

Uirá Lourenço é servidor público em Brasília-DF. Sua esposa, Ronieli, iniciou as pedaladas por sua influência. Antes, não sentia muita segurança e ia só na garupa; depois, acostumou-se e passou a pedalar no dia a dia. Os filhos Cauã e Iuri aprenderam a pedalar com menos de quatro anos e vão para a escola pedalando ou nas cadeirinhas da bicicleta do pai.

O hábito de utilizar a bicicleta foi adquirido quando Uirá morou no exterior. Ele diz: “morei na Suíça e na Alemanha, e conheci países com longa tradição no uso de bicicleta (inclusive Holanda e Dinamarca). Percebi que o uso da bicicleta como meio de transporte é mais uma questão cultural do que meramente uma questão de infraestrutura da cidade. Quando vieram a esposa e os filhos, a reação natural foi continuar a usar a bicicleta”.

Mesmo durante a gravidez, a família não abandonou as bicicletas e Ronieli só parou de pedalar quando estava com mais de sete meses. Uirá conta: “A relação da família com a bicicleta é umbilical; nossos filhos já iam na bicicleta quando eram bebês. A bicicleta está presente em todas as fases da nossa vida. Por algum tempo, íamos os quatro na mesma bicicleta (modelo normal), com uma cadeirinha na frente em que o Cauã ia. Na garupa, iam a Roni e o Iuri – mais novo – atracado no colo. Depois, passei a levar os dois em duas cadeirinhas na minha bicicleta. A Roni ia na bicicleta dobrável dela. Hoje, além dessa opção, ainda temos uma tandem com duas cadeirinhas, ou nos trajetos mais curtos como ir à escola ou ao supermercado, todos vão pedalando”.

Ronieli afirma que o estilo de vida é exemplo a ser seguido. “É muito bom fazer parte de uma família ciclística. Tanto nos passeios quanto em trajetos do dia a dia, conversamos, brincamos de apostar corrida, cantamos, rimos. Enfim, são momentos especiais. Acho importante mostrar para os meus filhos que, apesar de morarmos em uma cidade feita para automóveis, é possível adotarmos um estilo de vida saudável. Pedalar faz bem, não polui e é divertido – foi fácil convencê-los disso -, diferente do que acontece em nossa vida social. Muitos admiram nossa luta por espaço nas ruas, porém, o aprendizado não sai da teoria”, diz Ronieli.

Os benefícios desse hábito são muitos. Para Uirá, “o mais legal da vida ciclística em família é a integração, o fortalecimento do vínculo familiar. Na bicicleta, interagimos, cantamos, os filhos nos abraçam, conversam e adoram pedalar. Nas pedaladas, é comum pararmos para ver pássaros, calangos e árvores. Também coletamos flores e frutas. Cada parada é uma experiência, uma interação com a natureza. Outro aspecto bastante positivo da bicicleta é a saúde. O Cauã e o Iuri são bastante ativos e dificilmente terão problema com excesso de peso. Explicamos a eles os benefícios da bicicleta e da atividade física regular. A possibilidade de conhecer outras pessoas e fazer amigos também é algo bastante diferente da tendência de isolamento propiciada pelo carro. Já fizemos amigos nos trajetos de bicicleta, pessoas com quem temos contato até hoje. A reação das pessoas e dos amiguinhos na escola é, em geral, bastante positiva. Outros colegas se contagiaram com a bicicleta. Até os pais de um coleguinha da escola passaram a usar bicicleta no dia a dia, após nos conhecer”.

Uirá Lourenço e família. © Arquivo Pessoal

Juntos, não só nos dias de pedal

Rogério Dutra Pereira, de São Paulo- SP, pedala há 30 anos. Sua esposa, Melissa Silva Pereira, e o filho, Victor do Vale Pereira, seguiram o mesmo caminho. “Quando tínhamos nosso filho pequeno, percebíamos a importância de estimular seu desenvolvimento motor. Andar de bicicleta foi uma das atividades que descobrimos ser para ele muito desafiadora e que mobilizava a todos, pois incentivava estarmos juntos”, diz Rogério.

Com o tempo, os sobrinhos se uniram nessa atividade prazerosa. Depois, veio a ideia de praticar o cicloturismo para manter o hábito familiar. Rogério relembra: “a viagem para a Alemanha surgiu como um grande desafio. A bicicleta permitiu conhecer uma parte de outro continente e explorar aspectos das cidades que até então passavam despercebidas. Cada viagem guarda sua beleza e importância. Nas primeiras expedições, quando as crianças ainda eram pequenas e inexperientes no pedal, dependíamos de adultos que se dispusessem a pedalar para apoiar, incentivar e orientar o pedal, e também de quem não pedalava para, com um carro de apoio, garantir a hidratação e dar a opção para que as crianças desistissem pelo caminho sem que isso se tornasse um problema. Hoje, temos uma turminha bem disposta para o pedal. As crianças reconhecem a possibilidade dos primos e amigos reutilizarem a bicicleta e acaba que sempre tem alguém com quem pedalar”.

Natália Pereira Quinalha, sobrinha de Rogério, foi uma das integrantes da família que se deixou apaixonar pelo pedal. Ela diz: “o pedal em família foi uma maneira que encontramos de passar o tempo juntos e ao mesmo tempo praticar algo saudável. A bicicleta não foi algo que nos uniu apenas nos dias da pedalada, mas também nos dias de reuniões familiares, quando relembramos os tombos, os acontecimentos e aprendizados que adquirimos. Por meio do pedal foi possível conhecer a história e fatos curiosos da nossa região, assistimos várias vezes o pôr-do-sol maravilhoso nos dando aquela energia para completarmos a pedalada e encontramos paisagens fantásticas proporcionadas pela natureza. A pessoa que me tornei hoje foi graças ao esporte, não só pela interação com a família, mas também por aprender a ter um objetivo, nunca desistir, ter paciência etc. Aprendi que, se da maneira que se está tentando não está dando certo, troque de marcha, faça de outro jeito”.

Leonardo S. Pereira e família. © Arquivo Pessoal

As aventuras de Leozinho

Quando Leonardo Silva Pereira, de São Paulo-SP, casou-se com Ana Nívea, há 14 anos, ele procurou na bicicleta uma forma de manter a atividade física de um recém-casado. “Como morava às margens do minhocão”, explica Leonardo, “pedalava aos domingos de manhã. Nas férias, as pedaladas eram mais longas, nas estradas de terra ao redor de Tabapuã-SP, uma pequena cidade no interior. Com o tempo, outros viram no pedal uma forma de iniciarem uma atividade física, bem como uma forma diferente de integração e entretenimento entre os familiares. Primeiro foi o patriarca da família, Sr. Álvaro, hoje com 65 anos, aposentado, que após 40 anos sem subir na bicicleta, começou a me acompanhar nas pedaladas pelo interior há cerca de oito anos, e hoje pedala uma hora todos os dias. Nossa família também se mobilizou para conseguir a inscrição do Gregório, meu primo, no World Bike Tour, no qual participou com uma handbike e foi uma grande conquista, um presente bastante estimulante”.

Quando o filho Leozinho chegou, Leonardo fez questão de, desde cedo, incentivá-lo a pedalar. Ele relata que a infraestrutura, mesmo destinada apenas ao lazer, ajudou: “no início ele me acompanhava ainda na cadeirinha, depois com suas próprias bicicletas. Nossa cidade deu algum avanço no incentivo ao uso da bicicleta. A ciclofaixa aos domingos e as ciclovias possibilitaram que os passeios familiares, antes realizados no Parque Villa-Lobos, se estendessem por outras partes da cidade. O Leozinho cresceu junto com essa realidade. Com cinco anos começou a percorrer pequenos trajetos na ciclofaixa e hoje, com sete, ele me acompanha em qualquer percurso, no seu ritmo, que gira na média de 12 km/h. Sua persistência serviu de exemplo e incentivo para que sua mãe e sua irmã também começassem a nos acompanhar, criando um verdadeiro passeio familiar”.

Com o companheirismo e os ensinamentos proporcionados, as famílias ciclísticas garantem a propagação da cultura da bicicleta para as próximas gerações, mostrando os benefícios da bike não só para os seus filhos, mas para toda a família e comunidade. O prazer de conhecer, viajar em uma velocidade compatível com as percepções humanas, praticar um exercício físico, estar ao ar livre, aliado à integração familiar, ensejam qualidade de vida aos participantes. No próximo final de semana, ao invés de televisão, que tal convidar os seus familiares para um pedal?

Rogério D. Pereira e família. © Arquivo Pessoal

A família é – ou deveria ser – a organização mais valiosa e importante para nós.

© Catherine Yeulet