Nos eximimos de culpa deslocando a responsabilidade para o outro.

“Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”… A música de Chico Buarque nos alça a flutuar “como se fosse um príncipe”; expondo o que todos nós já sentíamos, mas que nem sempre conseguimos expressar,  que é o fato de que a rua como espaço público, igualitário, no Brasil não é de todos. Podemos imaginar ser um príncipe com seu séquito de seguranças e sua limusine blindada, mas, se por um infortúnio da vida somarmo-nos as estatísticas  das vítimas do  asfalto a ferros neste país, não seremos mais do que  um número no rol de perdas (necessárias?) do trânsito.

A música retrata algo que o antropólogo Roberto DaMatta apontou em seu estudo sobre o trânsito em que  mostra como aprendemos, tacitamente, a hierarquia do espaço público. Em outras palavras, aprendemos que as ruas são de todos os iguais, mas com a ressalva de que “alguns são mais iguais que outros”.

Nossa herança aristocrática conduz-nos por ruas onde existir significa ser visto e “preferencial” é a condição de quem pode, não daquele comum que trafega quase pedindo licença e acenando alguma deferência, como o pobre do ciclista ou pedestre. No trânsito vale mais quem tem tamanho e marca. Não é à toa que as SUVs são preferência do público, seu status é superior em luxo e tamanho.

A imprudência e a incivilidade do trânsito no Brasil decorrem da ausência de uma visão igualitária de mundo. Em um espaço comum como as ruas, costumamos  reproduzir nossos mais primitivos instintos psicológicos; a saber: o individualismo, a competitividade e a agressão. Tal qual um nenê, queremos ser o “centro do mundo”, buscar o nosso prazer a qualquer custo e disputar espaço nem que isso envolva tirar o que é do outro ou “jogar” o nosso carro sobre  o pedestre, ciclista, motociclista ou os carros “inferiores” e desqualificados por sua marca,  ano de fabricação ou tamanho.

A situação se torna verdadeiramente grave quando percebemos que esta conduta não amadurece conforme os anos vão passando. O que pode justificar isso, visto que crescer e amadurecer, biopsicologicamente, não é uma opção, mas uma condição da vida? Voltemos a DaMatta que nos aponta um outro viés do comportamento do brasileiro que talvez explique esta conduta imatura no trânsito: a congênita prática de desrespeito às leis.

Este é um aspecto  contraditório, pois qualquer pesquisa com motoristas no Brasil aponta o não cumprimento das leis e a impunidade como um dos fatores geradores do caos. O mais intrigante é que a maior parte destes motoristas entende que a fiscalização deva ser mais efetiva sobre os outros, mas se sente extremamente ofendido quando é interpelado, pois aguarda em fila dupla o filho que sai da escola ou transita pela ciclovia ou pela direita que está vazia ou, ainda, quando é multado por estacionar em cima da calçada quando não ia demorar mais do que poucos minutos.

O fato é que há uma dificuldade imensa do brasileiro em obedecer às leis. A subordinação é tida por estes como uma inferiorização, pois aqui historicamente atrelamos as leis a quem deve subserviência que, no imaginário social, significa  ser o trabalhador braçal (o escravo no Brasil imperial). As elites, tidas aqui como qualquer ator da classe média ou alta, mandam. Despreza-se a questão óbvia de que aquele que manda também deve obediência às leis que regem a convivência social, principalmente na representação maior desta convivência que é o trânsito.

O fato é que boa parte das leis que orientam  esta  convivência social não foram introjetadas, isto é, tornadas verdades para cada um. A fala que vem dos nossos motoristas costuma apresentar a ideia de que cada um “respeita” o trânsito. Ora, respeitar não é o mesmo que obedecer, esta condição pode estar atrelada ao meu “bom humor” ou à existência de um fiscal de trânsito à minha frente, mas não é necessariamente uma conduta internalizada (ou visceral).

Não é somente aumentando o número de fiscais ou  reforçando a punição que resolveremos o problema do trânsito no Brasil, mas é sim criando  políticas de educação para trânsito que contemple o motorista, o pedestre, o ciclista, o motociclista, o caminhoneiro, a criança etc. Todos fazemos parte deste universo modal e a forma como atuamos neste campo, diz muito de nosso jeito de ser, de nossa cultura. Culpamos – muitas vezes com razão – o governo pelo extermínio compulsivo de vidas que ele promove, mas assim o fazendo nos eximimos de culpa deslocando a responsabilidade para o outro.

O fato é que somos tão culpados quanto nossos vizinhos que marcadamente usam o trânsito como expressão de poder, pois referendamos um jeito de ser motorista nos nossos pequenos gestos de intolerância e de hierarquização do espaço público. A humildade é um exercício de autoconhecimento, pena que poucos conseguem usar desta prática no trânsito.

O carro se transformou no melhor exemplo de um comportamento cultural… Ele é a marca de nossas diferenças, tanto pelo estilo quanto pela forma que o utilizamos. Enquanto não compreendermos que a nossa vida é única em uma sociedade que dependemos uns dos outros, continuaremos a dirigir como se fôssemos donos do espaço público sem entender que aquele que “morreu atrapalhando o tráfego” era mais uma vítima da nossa insensibilidade e ignorância.