E bastante relevante sabermos que a bicicleta é um dos veículos à disposição dos adultos, mas é essencial sabermos que ela é o único veículo condutível por crianças e adolescentes. Estamos falando de cerca de 18% da população brasileira (cerca de 37 milhões de pessoas), o que provavelmente coincide com quase 100% dos estudantes da educação básica (desde o primeiro ano do ensino fundamental até a formatura no ensino médio): pessoas que têm entre 7 e 17 anos de idade e que têm, ou poderiam ter, na bicicleta, uma aliada.

A conclusão é inevitável: a falta de investimentos em condições viárias seguras para o uso da bicicleta ensina aos estudantes que a administração pública não se importa em tornar a cidade acessível a eles. A simplicidade, a praticidade e o prazer de pedalar até a escola, plenamente factível e habitual outrora, torna-se cada vez mais uma atividade de risco, ao qual pais e mães não querem expor seus filhos.

Assim, a nossa perplexidade é incontível: como conseguimos construir uma sociedade que inibe e até impede que crianças possam ir à escola de bicicleta? Dizemos que estamos preparando nossos jovens para dirigir o país amanhã, mas eles não podem sequer dirigir uma bicicleta hoje!

É claro, não são todas as cidades que são repelentes a ciclistas – mas quais delas não estão seguindo o modelo automovelcêntrico? E mesmo que residam muito longe da escola para irem de bicicleta ou muito perto para justificar o seu uso, o trânsito perigoso dificulta as crianças de pedalar até a casa dos colegas para fazer a tarefa, até o campinho do bairro para jogar uma pelada ou até o mercado a pedido da mãe… São funções simples, mas importantes no âmbito do mundo infantil.

Ao afastar da criança a possibilidade dela escolher a bicicleta, a sociedade reduz a sua autonomia. A criança, e em muitos casos o adolescente, torna-se dependente de meios que não estão sob seu controle, seja o ônibus, seja o transporte escolar ou mesmo os próprios pais. A companhia, a hora de sair e de voltar, o trajeto e mesmo o destino tornam-se escolhas com alternativas muito limitadas.

E levar um petiz ou um púbere pra lá e pra cá também tem outros custos. O transporte público e o transporte escolar privado pesam na economia da maioria das famílias brasileiras. E mesmo que dinheiro não seja problema, permanece o tempo gasto pelos genitores em viagens exclusivas ou em desvios de trajeto para deixar e pegar a prole na escola, na casa da vovó, na natação ou no dentista. E tudo isso se soma para saturar ainda mais o sistema viário da cidade, o ar da natureza e a paciência de todo mundo.

Limitar a mobilidade de crianças e adolescentes significa restringir-lhes a cidade e tudo o que ela contém, especialmente seus espaços públicos e abertos. As crianças tornam-se seres confinados em caixas de alvenaria (casa, escola, comércio) e, transportando-os de uma a outra, caixas metálicas. A via pública, de espaço social e compartilhado, converte-se cada vez mais em espaço privado e segregado, ao qual vão se acostumando as pessoas desde a tenra idade.

A consequência mais perversa desse modelo de mobilidade urbana é a formação de novas gerações que almejam logo chegar à idade adulta para poderem se emancipar através da posse da sua própria caixa metálica. Esse esquema, concebido maliciosamente pelo mercado e executado corruptamente pelo estado, apesar de estar levando ao limite a capacidade viária além de outras consequências, só resiste firmemente devido a adesão servil dos indivíduos. Certo, esse sistema não deixa mesmo muitas alternativas, mas também não vemos muita gente engrossando as fileiras da contestação…

Enfim, se é difícil para os adultos pedalar nas nossas médias e grandes cidades, para as crianças e jovens isso é para além de temeroso. Vias ciclísticas exclusivas, acalmação do trânsito, sinalização, fiscalização e educação viária não é nenhum luxo: é a possibilidade de tornar a cidade um lugar tão bom de viver que não precisamos ter medo de deixar as crianças desfrutarem dela.