Eu sempre acreditei que as bicicletas poderiam mudar o mundo, mas nunca imaginei que eu seria, na verdade, testemunha disso em primeira mão, especialmente no sul da África e em um dos países mais pobres desse continente, Malaui.

A bicicleta é a forma mais eficiente e econômica de viajar no Malaui. A sua mobilidade e adaptabilidade a torna um dos objetos mais importantes para aqueles que vivem à beira da pobreza. Apesar de custar cerca de US $ 50, ou 25 mil kwachas malauianas, uma bicicleta pode durar uma vida inteira, aguentar pedaladas infinitas e, finalmente, oferecer um pouco de alegria para quem anda nela.

© Antônio Abreu

Nesse país, viaja-se off-road, até mesmo durante a noite, na estrada principal que liga Mulanje a Blantyre, usando a bicicleta para várias finalidades: transportar madeira, folhas de alumínio, sofás, cana de açúcar, móveis e até mesmo como táxis. A bicicleta é simplesmente a forma mais pura de levar esperança, não só na África, mas em qualquer outro lugar. Estou começando a descobrir, enquanto viajo o mundo, que a bicicleta não é um transporte de um só propósito. Ela tem infinitas possibilidades.

Foi a minha primeira vez em solo africano e meus olhos não conseguiram acompanhar tudo o que acontecia ao redor. Crianças correndo atrás do nosso carro com os pés descalços, mulheres com bebês nas costas vendendo frutas frescas ou pessoas dançando nas ruas, não há nenhuma rotina ou calendário. Nenhum dia é igual aqui.

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Excitação e medo continuavam jogando em minha mente, mas aqui eu podia libertar minha mais selvagem imaginação. “Nós temos que continuar procurando novos desafios, os Alpes serão sempre os mesmos; já a África … você nunca sabe o que esperar”, diz meu parceiro de viagem, Axel, que cresceu na África do Sul e atualmente vive no sul do Tirol, na Áustria. Também se juntou a nós a italiana Sylvia, parceira de longa data de Axel e também uma montanhista afiada. Eu sempre quis visitar a África não como um turista, mas através da minha lente da câmera, escrevendo minhas ideias e memórias em um caderno. Estas palavras não se perdem no tempo ou no espaço e é exatamente isso que se sente quando você viaja e explora um novo local. Sem rede, sem conexões com a internet, sem e-mails ou meios de comunicação social, a África faz você se sentir conectado com a vida. Tudo parece ser acelerado em um ritmo que você vai demorar um pouco para alcançar. Mesmo quando você se acostuma a montar sua bicicleta descendo uma montanha, o ritmo de vida na África é além de todo o resto. O cheiro de sujeira no ar, a luz alaranjada do sol do meio da tarde, sinceros e brancos sorrisos e o dialeto malauiano me asseguram de que realmente estava em outro continente.

Abacates, bananas e mangas

Passamos os primeiros dias em torno da Montanha Mulanje, ficando em Likhubula Forest Lodge, nossa base para a missão. Planejamos, olhamos os mapas, procuramos guias, porteiros e um cozinheiro, analisamos infinitas possibilidades de rotas e verificamos as condições meteorológicas para os dias seguintes. Isso já era um teste para o nosso plano selvagem de subir e montar o Mount Mulanje (também chamado Mulanje Massif), localizado no sul de Malaui, próximo de Moçambique. Este grandão tem seu pico mais alto, Sapitwa, em 3.002 metros acima do nível do mar e uma rede de nove cabanas ligada por caminhadas, algumas delas bastante desafiadoras, especialmente se você estiver tentando levar sua mountain bike para o topo. Na verdade, Sapitwa significa “o lugar onde as pessoas não vão”, e há um par de histórias de pessoas que simplesmente desapareceram lá. A montanha é sagrada, mas temida por muitos que vivem em torno dela, destacando-se na savana africana, e tornando-se uma importante fonte de água da chuva para toda a comunidade.

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e mesmo não entendendo a língua, as suas expressões valeram a viagem toda.

Para o povo do Malaui, a montanha não é para ser conquistada, muito menos de bicicleta. “Na região de Mulanje, as pessoas andam de bicicleta para ir à escola e trabalhar. Mountain bike em Mulanje Mountain pode não ser uma boa ideia”, disse Elias, gerente de Likhubula Forest Lodge.

Enquanto nos preparávamos para a grande aventura, no terceiro dia paramos em uma loja de artesanatos de madeira local em Likhubula. Um garoto, Keith, apaixonou-se pela mountain bike de Axel e perguntou se ele poderia dar um passeio com ela. Não posso colocar em palavras o sorriso e a expressão daquele menino ao ter seu pedido atendido. Ele sentiu a pura alegria e emoção apenas por ter a pequena chance de testar uma bicicleta de suspensão total, montada pela primeira vez em áreas planas e fáceis e, em seguida, ficando confiante o suficiente para descer dois pequenos degraus. “Talvez você seja o primeiro ciclista de Mulanje Mountain”, disse Sylvia.

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“Eu realmente gostaria de andar de bicicleta de montanha, obrigado pela oportunidade”, disse Keith, ainda maravilhado com a experiência. Em um par de segundos, os vinte artesãos pararam seus afazeres, curiosos sobre as bicicletas e sobre nosso plano. De Likhubula para o mercado de Mulanje, Sylvia e Axel juntaram-se aos moradores locais em uma espécie de corrida de rua. Quase todos pedalavam descalços e em uma velocidade só, mas os europeus não tiveram chance. “Os ciclistas malauianos são rápidos e fortes, usando suas bicicletas todos os dias, mas eles também são bondosos”, comentou Sylvia. “Quando eu perdia força para acompanhar seu ritmo, eles esperavam por mim e continuavam me motivando”.

Mais adiante paramos novamente em uma pequena aldeia ao lado de plantações de chá ao redor da montanha. Quatro meninas sorridentes apareceram. Pedi a uma delas que me mostrasse seu caderno escolar. As páginas sujas estavam cheias de contas simples de matemática e eu rapidamente confirmei que tudo estava correto, segurando meu polegar da mão direita para cima, me valendo de que esse é um idioma internacional. Aproveitei e registrei o momento com minha câmera. Mostrei a foto para elas na tela. Elas começaram a rir com alegria e curiosidade, querendo saber sobre aquele momento mágico.

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Continuando, nossos sentidos foram atraídos mais uma vez para os mercados locais, onde frutas e verduras são exibidos no chão de terra e rapidamente você ignora todos os conselhos de viagem que seu médico lhe deu. Abacate, verificar. Bananas, conferir. Arroz, verificar. Ervilhas, tomates, cenouras e mangas, conferir. Optamos por fazer compras no local para ter uma experiência completa sobre a cultura do Malaui. O nosso motorista, George, era quem nos apresentava para as pessoas e explicava o que estávamos fazendo ali. Todos ficavam surpresos ao saber, e mesmo não entendendo a língua, as suas expressões valeram a viagem toda. “Ela está dizendo que você é um pouco louco, mas desejando-lhe boa sorte”, traduziu George de uma mulher que carregava seu recém-nascido sonolento em suas costas. Crianças contornavam as bicicletas, apontando e tocando cuidadosamente os travões de disco, os pneus largos de 2.4 e o brilhante quadro, comparando com as bicicletas que estavam acostumadas a ver nas ruas. Sylvia perguntou a uma menina se ela queria dar um passeio. O sorriso dela foi tímido e ela parecia um pouco receosa, enquanto seus amigos insistiam para ela dar um passo adiante e aceitar, animadamente falando sua língua nativa. Sylvia a colocou sobre o selim. Seus pés minúsculos não alcançavam os pedais, mesmo assim ela era toda sorrisos durante uma volta de 100 metros em torno do mercado.

Para as crianças a vida na África parece não ser tão difícil. Mesmo assim, viver lá não é nada fácil, e essa experiência faz você humildemente se perguntar sobre o seu propósito neste mundo.

Ele sentiu a pura
alegria e emoção apenas por ter a pequena chance de testar uma bicicleta de suspensão total…

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“Mwadzuka bwanji” no pico Chambe

Uoown! Era começo do dia no Likhubula Forest Lodge, e logo iríamos enfrentar a Mulanje. No momento, não precisávamos de rádio, porque tínhamos a companhia de uma família de macacos que de vez em quando invadem o Lodge, em busca de frutas frescas. Ao fazer a mala, procuramos levar apenas o essencial: um par de calças, uma camiseta, um casaco PrimaLoft, um par de barras energéticas, água. Contratamos um cozinheiro e dois carregadores para nos ajudar com os alimentos e os sacos de dormir.

Optamos por subir pelo caminho ‘Skyline’, o menos percorrido, que nos levaria à cabana Chambe, a 1.850 metros de altura. O sol do meio-dia queimava todo o ar ao redor e cada sopro de oxigênio corroía, mas Duncan, nosso guia, lembrou que à noite as temperaturas ficam negativas durante o inverno, o que no momento parecia ser algo impossível de acontecer naquele lugar. Pernoitamos duas noites na cabana Chambe, explorando a área e planejando nossa volta para Likhubula. Axel foi na frente com a bicicleta nas costas, animado, já analisando linhas e removendo pequenas pedras. “Isso vai ser bastante desafiador, mas pelo menos nós temos uma trilha íngreme e técnica”, disse ele, focado novamente em uphill com velocidade, que eu realmente lutava para conseguir acompanhar. Quando finalmente o grupo decidiu desacelerar para almoçar uma barra energética, testemunhamos algo que apenas a África poderia nos mostrar em sua plenitude. Um casal africano surgiu no caminho. Ele tinha um facão na mão direita e ela um cesto na cabeça. “De jeito nenhum. Ela se move de forma tão suave e elegante, com a cesta em sua cabeça e eu estou lutando o tempo todo para subir”, disse Sylvia se movendo em direção a eles.

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Para as crianças a vida na África parece não ser tão difícil…Para as crianças a vida na África parece não ser tão difícil…

Eles sorriram para nós e Duncan os cumprimentou em sua língua nativa. Durante boa parte da subida eu gemi, e esta mulher, em seus 40 anos, carregando muito peso sobre a cabeça, com os pés descalços, parecia tão branda e feliz. Nós decidimos voltar ao caminho, seguindo o ritmo deles. O homem, que trabalha na manutenção das estradas na montanha, a fim de proteger cedros e a vida selvagem, tinha um pequeno saco de plástico para coletar todas as lagartas peludas e coloridas que ele podia encontrar. Seriam o seu jantar.

Enquanto o sol desaparecia e a noite assumia, finalmente chegamos ao nosso abrigo, a cabana Chambe. Uma xícara de chá local foi suficiente para saciar a alma e aquecer nossos pés enquanto sentávamos em escadas velhas de cedro fora do abrigo, debaixo de um céu cheio de estrelas. Não havia chuveiro nem eletricidade e o banheiro era um buraco no chão, mas eu nunca me senti tão completo. Este cenário e esse momento me levaram a coisas que eu nunca tinha vivido e eu tinha de me adaptar rapidamente.

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Atrás da cabana havia dois cedros, os últimos que resistem ao desmatamento maciço, devido à indústria da madeira, um dos maiores problemas que Mulanje não pode resolver por conta própria ou por conta do governo. O cedro é uma madeira extremamente valiosa e é considerado desde 1984 a árvore oficial do Malaui. O governo do Malaui e o Mulanje Mountain Conservation Trust, financiado pelo Banco Mundial, tentam reflorestar áreas com a espécie, no entanto Duncan lembrou-nos que “o cedro não pode ser plantado, cresce por si mesmo”, e que essa é a razão pela qual ser quase impossível manter-se com a demanda das comunidades locais e cortadores de árvores ilegais, que constantemente passavam por nós durante nossas caminhadas e passeios. Triste de se ouvir as previsões indicarem que em alguns anos os cortadores de árvores ilegais irão destruir os refúgios de montanha em busca de cedro.

Antes de dormir, mais um chá quente, e jogamos Bao, um jogo local que é basicamente xadrez africano, até nossas velas acabarem. Enquanto Benjamin, um de nossos porteiros, nos ensinava a jogar, Duncan nos contou a história sobre “o velho trator que ficava fora da cabana, desgastado pela chuva, sol e tempo. Anos atrás, eles queriam construir as estradas e precisavam de um trator no topo da montanha. Então, nós desmontamos todas as peças, bateria, rodas, cabos, e levamos até o topo, peça por peça”. A África nunca para de me surpreender.

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Na manhã seguinte, Chambe Peak (Cume Chambe) estava firme na nossa frente e parecia maior do que no dia anterior, especialmente quando o sol batia diretamente nele. “Mwadzuka bwanji?” (que significa “você acordou bem?”), Duncan perguntou, enquanto comíamos mingau com frutas do mercado local. Começamos a subida no início da manhã, tentando conquistar os 2.600 metros de rocha sólida e granito. Literalmente escalamos sem cordas algumas das partes mais difíceis do caminho. Como sabia que iríamos estar de volta no final do dia para a cabana, deixei de levar alguns itens. Quando a exaustão supera seu corpo e mente, cada grama conta. A subida foi difícil, mas Axel e Sylvia reconheceram que o downhill vale a pena. Era mais sobre a conquista da montanha, lutando contra os ventos que sopravam selvagens de todos os lados, cortando seus lábios e queimando sua pele. Incerteza conclui a aventura. Perto do cume entendemos que alguns trajetos seriam impossíveis de se passar, devido à declividade, risco e exposição, o que poderia fazer você apreciar a savana africana de uma maneira diferente. Axel já estava pronto para descer. Ele lentamente soltou a alavanca do travão dianteiro, e manteve tudo sob controle, lutando contra o medo de rolar montanha abaixo. Isso não seria muito divertido. A bicicleta rolou lentamente quase na borda da rocha. Podíamos quase ouvir o coração dele bater mais rápido, como se seus sentidos tentassem processar a encosta, tentando encontrar a melhor maneira de fazer a descida.

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O sol do meio-dia queimava todo o ar ao redor…

Não havia como voltar atrás agora. Essa montanha nunca tinha sido percorrida de bicicleta e Axel fez todo o caminho. “Isto é além dos meus sonhos”, dizia ele sorrindo. De volta, nosso cozinheiro, Dan, surpreendeu-nos com o jantar: frango, arroz e legumes. Mesmo a comida estando maravilhosa por si, tudo fica com um gosto melhor quando você tem um dia cheio de emoções e aventuras.

Na manhã seguinte enfrentamos o ‘Skyline’ mais uma vez, desta vez no caminho para baixo. Embora a trilha fosse bem técnica, íngreme e exposta, andar por esse caminho completou a experiência. Não é possível montar todo o caminho em uma corrida só, mas eu gentilmente desafiei Axel e Sylvia a fazê-lo no futuro. Eles não deixam um obstáculo detê-los, mesmo quando voltam três, quatro, cinco vezes para experimentá-lo, analisar minuciosamente cada pedra e raiz do caminho. “Será que eles têm montanhas como essa na Europa também?”, inocentemente perguntou Duncan, filmando Axel e Sylvia com seu velho Nokia. Concordei com a cabeça, mostrando-lhe algumas fotos dos Alpes com neve no meu celular, atiçando sua curiosidade. As grandes escadas de pedra de dias atrás se transformaram apenas em uma descida selvagem, indicada apenas para especialistas.

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A meio caminho pela trilha encontramos um garoto magro que corria no sentido oposto. Mais tarde, descobrimos que o menino de onze anos treinava na trilha para uma corrida que acontece todos os anos desde 1996. Nós lhe damos um pacote de bolachas de chocolate e alguns amendoins. Ele sorriu e continuou correndo morro abaixo, não surpreendentemente mais rápido do que as bicicletas, saltando sobre rochas afiadas com os pés descalços. “É por isso que os africanos dominam os Jogos Olímpicos”, pensei comigo mesmo. Depois de três dias sem chuveiro, terminamos o dia em Nkalamba Falls, na parte inferior do ‘Skyline’. Mergulhar nessas águas frias permaneceu como um dos sentimentos mais surpreendentes da viagem, especialmente quando o seu corpo se sente cansado, sua mente se sente fraca, mas o seu coração se sente orgulhoso.

Nesses momentos você entende que vale a pena o caminho para desfrutar aqueles minutos de downhill.

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1.212 passos para a trilha perfeita

A próxima expedição começou com um caminho acidentado para Fort Lister, em torno do maciço Mulanje. Nos últimos dois quilômetros de estrada começamos a notar as crianças correndo o mais rápido que podiam, gritando e chamando a gente para se juntar a eles em uma perseguição insana à van de George. Mais de cinquenta crianças muito curiosas de todos os tamanhos e idades nos recepcionaram em sua aldeia perto de Fort Lister.

Após uma hora de ‘bike-testing’ com elas, era hora de subir 1.200 metros para o nosso abrigo, Sombani, a 2.100 metros de altura. Nos despedimos e seguimos o singletrack, ziguezagueando entre a grama selvagem. “Zikomo, zikomo (obrigado) “, dissemos a toda a aldeia que nos acolheu. Tomamos uma rota curta, mas muito íngreme, que nos levou ao topo do lado norte de Mulanje. No nosso caminho, encontramos um grupo de estudantes universitários americanos que se voluntariaram por três meses no Malaui, ensinando matemática e inglês para jovens de 14 a 19 anos. “Eles têm muita fome de aprender coisas novas e há mentes brilhantes. Eles só querem educação”, disse uma das garotas da Universidade de Michigan, alegando que nem sempre apreciamos o quão sortudos somos. É verdade.

Ele sorriu e continuou correndo morro abaixo, não surpreendentemente mais rápido do que as bicicletas.

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“1.212 degraus até o topo”, disse Sylvia, lendo o esculpido de uma escada de granito no caminho para Sombani. Esse número ficou saltando em sua cabeça e eu comecei a contar cada novo passo para ver se meu cansaço desaparecia. Não funcionou. Finalmente chegamos a um nível que se desenrolava dentro de um enorme vale. Picos enormes de ambos os lados nos cercavam, e um singletrack mostrava ser o destino do dia. “Olhe, olhe!”, disse Duncan: “cortadores ilegais de árvores!” Todo mundo estava de pé e cuidadosamente analisava cada movimento, tentando entender qual grupo era o mais assustado, os cortadores de árvores ou nós.

Depois de uns minutos em dúvida, eles simplesmente deixaram as placas de cedro no chão, correram e se esconderam, supondo que estávamos lá para multá-los. “É uma realidade que ninguém quer ver, mas está acontecendo”, disse Duncan com os olhos no singletrack mais uma vez. “O governo e o Departamento Florestal não têm recursos suficientes para vigiar toda a montanha”, completou Benjamin.

Sombani é uma das mais pequenas cabanas na área, que pode abrigar cerca de cinco pessoas em verdadeiro conforto, mas nós não podíamos imaginar que naquela noite o pequeno refúgio acomodaria catorze pessoas, incluindo duas crianças: um grupo de austríacos e alemães e uma família dos Estados Unidos. Dormimos apertados, ombros com ombros, sob uma noite congelante em Mulanje. No dia seguinte, passamos para a cabana Thuchila, a cerca de seis horas de distância. Sob o sol quente, chegamos a 2.500 metros de altura. A trilha, em seguida, levou-nos a um trecho de pedras soltas que Axel e Sylvia amaram verdadeiramente. Nesses momentos você entende que vale a pena o caminho para desfrutar aqueles minutos de downhill. Três horas mais tarde, chegamos à cabana Chinzama, perfeitamente localizada no coração da montanha, perto de Ruo Rio, e no timing perfeito para comer um pouco de manteiga de amendoim com sanduíches de mel que Sylvia tinha preparado de manhã. “Você acha que vai chover, Duncan?”, pergunto. “Lembre-se António, aqui não é Malaui, você está em Mulanje Mountain e o tempo muda muito rápido por aqui. Mulanje tem suas próprias regras e às vezes ele fica louco”, ele responde de forma dramática. Ele estava certo. Coloquei o casaco e a capa de chuva na mochila e comecei a caminhar novamente. Em minutos, os enormes picos na minha frente desapareceram, cobertos de névoa densa. O vento soprou mais forte e pequenas gotas de chuva bateram nas pernas e no rosto, as únicas partes expostas ao tempo naquele momento. O corpo humano é extremamente frágil sob as leis de sobrevivência da natureza.

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Quando a montanha está ferida, todo mundo sofre com isso.

Caminhando lentamente na trilha, deu para ver faixas de serpentes; patas de aves e marcas de pés descalços, além de marcas de pneu da bicicleta de Axel, o primeiro a passar na trilha. Essa marca de pneu é agora parte da paisagem. Então, chegamos na cruz, o que significa que estávamos, basicamente, a meio caminho do nosso próximo refúgio. O dia estava escuro e pesado. As montanhas olhavam mal e assustadoramente e a tripulação cansou. Quando a esperança está quase perdida, a natureza surpreende mais uma vez revelando sua verdadeira beleza. O sol brilhou mais uma vez criando perfeitamente raios crepusculares ao longo do planalto africano. Estar em uma posição perfeita para observar um pôr do sol vale mais que mil palavras.

Axel e Sylvia fizeram a parte inferior da fuga, lutando para ficar sobre os pedais e atingindo Thuchila, um abrigo construído em 1901. Ali, uma xícara de chá quente delicadamente preparada pelo nosso cozinheiro. Uma noite aquecida e uma boa refeição para esquecer o esgotamento do dia. Estávamos motivados para o último dia de aventura.

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Axel e Sylvia foram os primeiros a trazer bicicletas para o topo da Mulanje, buscando o caminho mais íngreme. Em nosso último dia na montanha, descobrimos o tipo de trilha que honestamente não se encaixa no estilo dos ciclistas de média montanha. O trajeto começou em Thuchila, descendo para o nosso destino final, Phalombe, e Duncan nos prometeu piscinas naturais com água limpa do Rio Thuchila, seguido por uma cerveja gelada para terminar a viagem. Devagar e com técnica perfeita, Axel rolou para baixo em algumas partes quase impossíveis de fuga, confirmando sua alegria quando completava mais um obstáculo intimidante. A sombra substituiu o sol quando entramos em uma floresta úmida. No escuro, seria um lugar quase impossível para percorrer se não houvesse um singletrack da base da montanha até o topo.

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De tempos em tempos, Axel e Sylvia tinham que parar para verificar a trilha e o que vinha depois, para manter tudo sob controle. “Depois disso, é muito íngreme, mas pelo o que eu vejo e como você monta a bicicleta, você consegue”, disse Duncan. O verde escuro da vegetação alta e seca agora era em tons marrons, com terra árida e pedras grandes. Alguns trechos estavam à beira da verticalidade e eu tive que usar minhas mãos para segurar. “Este é o território do Axel”, disse Sylvia, cansada dos últimos dias, e, literalmente, tentando sobreviver ao último dia na montanha sem ferimentos graves.

As palavras exposição, vertical e técnica não devem ser utilizadas na mesma frase. A trilha não é para todos e podemos facilmente assimilar as ruas de Malaui, onde há sempre uma surpresa esperando por você na próxima esquina, e esperamos que ela seja boa. As bicicletas também estavam um pouco cansadas de todo o massacre da viagem, guinchando de dor de tempos em tempos. Depois de limpar praticamente cada pedaço de singletrack exposto, continuamos indo para a civilização. Nove quilômetros de trilhas em um caminho perfeitamente desenhado, dentro da floresta seca africana, nos separavam de piscinas naturais mais uma vez. Não havia necessidade de pedalar ou frear, o fluxo era o segredo aqui. “Depois das seções loucas no topo da montanha, este é apenas um doce”, disse Sylvia pedalando a fuga empoeirada. Mesmo com todo mundo cansado, incluindo nosso guia, Mulanje continuava rígida, dura e imutável. Eu adoraria dizer que conquistei a montanha, mas foi a montanha que nos conquistou.

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Em nosso último dia em Malaui, os moradores de Tchete, uma pequena aldeia de Mulanje, realizaram uma dança tradicional para nós. Tudo começou devagar, com quatro crianças tocando bateria e mulheres cantando em ritmo lento, seguido de algumas peças de teatro que representavam os problemas do país, mas também o poder da comunidade para superá-los. Uma hora mais tarde, já estávamos camuflados dentro da aldeia, pulando freneticamente, suando e dançando tão forte que uma nuvem de poeira deslizava no ar. “A vila inteira está aqui para vocês. Obrigado por visitar Malaui e nossa comunidade”, disse Maxwell, o jovem mensageiro do chefe. O ritmo parou ao pôr do sol, quando a cerimônia trouxe à tona um assunto muito sério sobre a Mulanje: água potável e corte de árvores, com a aldeia inteira sentada no chão, ouvindo as pessoas mais sábias. “Temos que proteger o que temos de melhor. É nossa missão proteger a montanha. Quando a montanha está ferida, todo mundo sofre com isso”, disse uma mulher segurando um recém-nascido. A vida é dura por aqui, mas o povo do Malaui enfrenta as dificuldades com sorrisos e esperança, sabendo que a montanha é a fonte para a sua vida.

Eu adoraria dizer que conquistei a montanha, mas foi a montanha que nos conquistou.

© Antônio Abreu