O ponto mais alto da nossa pedalada toca as nuvens aos 750 metros de altura. Para chegar a uma das menores repúblicas do mundo, a de San Marino, na Itália, é preciso enfrentar ladeiras sinuosas. A subida exige o ritmo cadenciado da respiração e cobra horas de exercício aeróbico.

O desafio é talhado para os que têm porte atlético. Mas para os amadores, como eu, que têm mais paixão do que treino, também é possível conquistar, no pedal, a minúscula San Marino. A bordo da minha e-bike, venci as curvas íngremes alternando os botões de velocidade. No plano, usava o modo econômico. Quando as pernas fraquejavam, modo “turbo” pra que te quero! A pequena bateria da e-bike dá velocidade e coragem a qualquer alma aventureira e o ciclismo assistido nos leva aonde antes somente os atletas alcançavam. Lá em cima, olhando o imenso vale que se confronta com o país, meu fôlego se acalmou lentamente. Na Itália, a pedalada sempre termina com vinho, massa e boa companhia. 

© Teresa Garcia

 Os passeios de bike rendem duas generosas recompensas: fotos e amizades. Ambas podem ser perenes, para a sorte de quem pedala. Voltei da minha viagem à Itália com 1.500 mil fotos no celular. Isso não é nenhuma façanha, considerando que a memória digital é ilimitada. O que conta mesmo é o número pequeno – mas de enorme significado – das amizades seladas. Quando chegamos ao aeroporto de Bologna – minha filha Julia e eu –, fomos ao bar indicado como ponto de encontro dos ciclistas. Pedimos nosso café curto – na verdade, minúsculo para os padrões brasileiros – e rapidamente localizamos o motorista que nos levaria à primeira cidade da nossa jornada: Riccione, no coração da Emilia Romagna. Pagamos a conta, pegamos as malas e lá estávamos na estrada, ao lado de desconhecidos, com trajetórias diversas.

© Teresa Garcia

A primeira pessoa que me chamou a atenção foi uma mulher muito elegante e que em poucas frases fazia fluir um raciocínio bastante articulado. Ali estava Cristina Ricciardi, mãe de dois filhos, casada com um homem alto, magro, de atitudes sempre rápidas e igualmente generosas. O engenheiro Pedro e a empreendedora Cristina espelham a imagem de um casal harmônico, em perfeita sintonia. Sentada perto da Kika, estava mais uma personagem dessa história: a contadora Luciane Tessaro tem uma risada contagiante e coleciona um repertório de histórias divertidas. Quando entrei na van, ela e o casal conversavam animadamente e eu não imaginava o impacto que eles me causariam poucas horas depois.

Para quem está acostumado às cidades altas e encasteladas da Itália, é uma surpresa chegar em Riccione. O pequeno município de pouco mais de 30 mil habitantes fica no litoral e recebe os visitantes por amplas avenidas, esbanjando uma geografia plana, com prédios modernos que contrastam com a arquitetura dos burgos. A van que nos transportava parou em frente do Hotel Dory. Quando fomos retirar as malas, veio a surpresa. Nosso colega Pedro Ricciardi nos ajudou com as bagagens e em seguida retirou, cuidadosamente, um grande volume protegido por uma case preta. Pelo formato não tive dúvida do que era. Ele havia trazido a própria bicicleta, uma Specialized Tarmac SWorks.  Em seguida, ele retirou outra peça. Outra bike de velocidade. Da forma cautelosa como ele manuseou aquelas duas preciosidades, desconfiei que eu havia me integrado a uma turma muito avançada. Disfarcei o susto e reagi rapidamente, já me defendendo de possíveis fiascos: “já percebi que temos profissionais no grupo. Aviso que sou da turma dos amadores”. Pedro sorriu generosamente e em seguida conversou com a outra colega, Luciane, que para aumentar meu pânico, demonstrou que também fazia parte da turma dos pós-graduados. Eu já havia pedalado em grupo na Itália e não tinha conhecido ninguém que levasse o pedal tão a sério. No passeio que eu havia feito há um ano, a maioria alugou os modelos com bateria. Desta vez três pessoas estavam ali para enfrentar tudo só com pernas e pulmões. Me senti em desvantagem. Olhei para o lado e uma outra colega me confortou: “faço parte do seu time”. Senti um sopro de confiança. Era a voz da empresária Susana Abrantes, uma simpática mineira, apaixonada por tecnologia e que durante as pedaladas me acompanhou na retaguarda, desconfio que por compaixão, já que sempre esteve em vantagem sobre mim. Susana viajou para a Itália junto com o advogado Bene Negri, também mineiro, e que – como eu – odeia as baixas temperaturas. Enfrentamos, solidários, os dias chuvosos.  Para completar o grupo havia o casal Márcia e Marcelo. Márcia Boaventura é administradora e Marcelo Negrão é personal trainer.  Os dois sempre estavam juntos, um protegendo o outro durante todos os passeios. Ambos também exibiam boa performance atlética. Guiando a turma havia a doce Giuliana Guerreiro e o simpático Alessandro Piazi. Alessandro é um homem de poucas palavras e de gestos carinhosos. Bom motorista, cuidadoso na estrada, aliviou nosso cansaço nos dias em que precisamos terminar os passeios a bordo da van que ele dirigiu durante toda a semana para nos dar apoio. Giuliana é um misto de atleta e anjo da guarda. Ela me protegeu nos cruzamentos perigosos, corrigiu minha postura e me passou informações preciosas sobre como melhorar a performance pedalando. Não é à toa que é formada em administração. É uma profissional assertiva. E ainda tivemos, por um dia, a ajuda do guia Giacomo Vincenzi.  Pronto, estava formada a turma que enfrentaria durante uma semana estradas de terra e de asfalto, retas e curvas, subidas pesadas e descidas em alta velocidade. 

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No primeiro dia de pedalada, o céu amanheceu nublado. A imprensa italiana repercutia as baixas temperaturas numa primavera atípica, no meio de maio, com os termômetros oscilando entre 10 e 12 graus. A sensação térmica era menor ainda, o que nos obrigou a vestir blusas de manga comprida embaixo dos casacos corta-vento. Na garagem do hotel Dory não havia carros, mas centenas de bicicletas. Ali – minha filha e eu testamos nossas e-bikes, ajustamos os bancos e abastecemos as garrafinhas com água (o hotel oferece uma boa infraestrutura aos ciclistas). Começava uma experiência que combinava esporte, turismo e camaradagem. Depois de pedalar quase uma hora, chegamos em Santarcangelo di Romagna, uma cidade com pouco mais de 20 mil habitantes. Santarcangelo recebe os visitantes através de um grande portal que reverencia Clemente XIII, o papa que dirigiu a Igreja Católica no século XVIII. O portal dá acesso a uma espaçosa praça, cercada por prédios públicos e uma escola municipal. Para nossa surpresa, o chão estava colorido. A praça abrigava uma feira de flores. Cactos, mudas de árvores e plantas de toda espécie davam cor a uma manhã cinzenta. Foi ali nossa primeira de muitas paradas para fotos e interjeições de admiração. 

Nossas pedaladas foram intercaladas por cafés, chocolate quente e pequenas refeições. Experimentamos queijos variados em Mondaino, numa loja de degustação encrustada na Via Panorâmica, onde, para chegar, era preciso aquecer muito o corpo.  Sim, em algumas paradas havia taças de vinho tinto também. Mas nenhum excesso calórico (ou etílico) alterou nosso peso, considerando que por dia enfrentávamos de 50 a 90 km de estrada. Parece muito, mas é uma quilometragem razoável para quem está acostumado a pedalar. Os passeios começam sempre com um trecho longo, seguido de uma breve pausa para descanso. Mais uma esticada e, por fim, momentos de recompensa. Na maioria das vezes o grupo se reunia para as refeições. Algumas vezes jantamos nos hoteis, a maioria com ótimo atendimento ou em bons restaurantes indicados pelos organizadores do evento. A empresa que promoveu nosso passeio é comandada pela brasileira Cecília Rocha Mendes. Cecília vive na Itália há mais de 20 anos. Ela tem um diferencial sobre seus concorrentes: é uma excelente ciclista, possui um gosto refinado para vinhos, é sensível às manifestações culturais e tem uma habilidade natural, espontânea, no trato humano. Estas características dão a ela uma facilidade para conciliar interesses e desenhar um programa que agrade a maioria dos ciclistas. Cecília também se sentava na nossa mesa, trazendo informações sobre a cultura e culinária italianas. Juntos dela fomos tecendo laços afetivos.  

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A intensa troca de vivências do grupo me fez perceber que é possível moldar afinidades em um curto período de tempo. Não é preciso mais que três ou quatro dias juntos para identificar convergência de interesses e costurar amizades que podem se estender vida afora. Formamos um grupo com ciclistas de São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte e Rio. Não sei quando voltaremos a nos encontrar, mas no pouco tempo em que ficamos juntos brindamos muitas vezes à vida e rimos como adolescentes. Pedro virou Pedrito, Julia virou Juju, Cristina era Kika, Luciane, a Lu, e Susane, a Su, só pra rimar! Marcelo amava Márcia, que deu risada com a Kika, que pedalava no pelotão da frente com o Pedrito, que protegeu a Juju do frio, que deu dicas de redes sociais pra turma. Susana sabia tudo de tecnologia, que compartilhou com Bene, que tomou café com a Lu, que dividiu uma garrafa de champagne comigo e que mais não conto. 

Estivemos em lugares igualmente lindos e com características muito distintas. Em Santarcangelo encontramos um museu de botão. Milhares de peças enfeitam as paredes do salão onde as portas estão sempre abertas ao público. O museu ocupa um pequeno prédio numa das ladeiras da cidade. Uma poltrona, salpicada de botões, estava entre as peças que chamaram a atenção dos visitantes.  

© Teresa Garcia

Quando chegamos de bike em Fiorenzuola di Focara, um lugarejo com atmosfera desértica, vimos poucas pessoas na rua. Era um dia gelado e o vento cortava nosso rosto. As casas estavam fechadas e um sereno fino insistia em umedecer nossas cabeças. As ruas vazias nos facilitaram apreciar o arranjo de linhas nos calçamentos. A combinação de arcos de círculos demonstrava o capricho de quem montou aquele assentamento romano, erguido entre os séculos X e XII. No alto de Fiorenzuola di Focara, fica a igreja de Sant Andrea que abriga um campanário construído para orientar os marinheiros que se aproximavam do continente pelo mar Adriático.

© Teresa Garcia

A cidade de Urbino é Patrimônio Mundial da Humanidade, decretado pela Unesco. Seus prédios e muralhas, erguidos no alto de uma colina, mostram a imponência arquitetônica do período renascentista. A larga avenida que dá acesso à cidade nos arrasta para séculos passados, ao tempo onde ali viveu o consagrado pintor Rafael Sanzio.

Urbino é uma cidade universitária, o que também lhe confere uma atmosfera de modernidade. A Universidade de Libera foi criada em 1506, mas ainda se reinventa atraindo jovens estudantes de todo o país. Os antigos prédios de Urbino contrastam com a efervescência jovem que transita nas ruas cobertas de pedras. Durante uma manhã que estivemos lá, admiramos as vitrines das ruas estreitas até chegarmos a um mirante que descortina um grande vale de um lado e o aglomerado de antigos prédios do outro. 

Montados em bikes, passamos pela reserva Gola del Furlo, uma represa que margeia montanhas rochosas, participamos de uma “caça a trufas” em Acqualagna, exploramos as simpáticas ruas da pequena Montegridolfo e visitamos uma adega que harmoniza vinhos e artes em San Clemente. Ali pudemos degustar boa safra de vinho tinto e apreciar obras de artistas consagrados como Yves Klein, Bruno Catalano e Mirella Guasti. 

© Teresa Garcia
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Enquanto escrevo esse texto, revejo fotos e lembranças. As imagens se refrescam no meu cérebro e despertam sensações muito agradáveis. Escrever me obriga a vasculhar manhãs e tardes no pedal. Pedalar nos permite sugar os aromas que cobrem as estradas. De bike, sentimos as mudanças da temperatura e o perfume que escapa de uma pequena panificadora à beira da estrada. Repensando a viagem, voltei ao momento que mais me encantou. Nem me recordo em que cidade estávamos, mas enfrentávamos uma subida pesada. Porém, quem sobe, desce, e por alguns quilômetros deslizamos, ladeira abaixo, numa pista de pouco movimento. Íamos controlando o freio num suave ajuste para afastar o perigo sem perder a emoção que a velocidade oferece. Minha filha passou por mim. Eu a vi dobrar uma curva à minha frente. Por um bom tempo pedalei sozinha, longe do resto do grupo. Em um instante a estrada mergulhou na mata fechada. A luz diminuiu e subitamente ouvi um forte trinado. Pareciam dezenas, centenas de pássaros cantando juntos. Um gorjeio coletivo. Eu descia a 40 quilômetros e o vento roçava meu rosto. Os pássaros não paravam de cantar. Parecia que haviam ensaiado um cortejo para nos ver passar. Senti o cheiro molhado da floresta. Algumas plumas salpicavam o ar. Pólens caíam das árvores. Durante alguns segundos fiquei mergulhada em uma magia. Uma conjugação de música, aroma e imagens. Tive a exata sensação de estar vivendo um momento absolutamente único na vida. Cheguei ao final da estrada e reencontrei minha filha, Julia, me aguardando radiante. “Você viu aquilo?” ela perguntou. “Você ouviu os pássaros e as flores que caíam na nossa frente? Incrível, demais, irado, irado”, ela repetia! Tive vontade de fechar os olhos e me eternizar naquele segundo. São nestes momentos que pedalar nos leva ao lugar mais distante. Pedalar pode nos levar até a infância!

© Teresa Garcia