Um mapa à minha frente: Os relatos das cicloviagens de Luã Olsen

Um caminhão desses de porte imenso acaba de surgir no meu retrovisor e aguardo pacientemente no lado extremo do bordo da pista esperando o momento em que ele passe por mim e atire uma gigantesca onda de poeira marrom que imediatamente me faz perder a vista e entrar num acesso de tosse, ao mesmo tempo em que suas partículas são depositadas em minha roupa já suja e na toalha de banho que secava amarrada no bagageiro.

© Luã Olsen

É dessa forma que Luã Olsen inicia o capítulo 2 de seu livro Interiores, deixando transparecer as dificuldades do caminho e assumindo a dramaticidade narrativa: pela primeira vez sozinho em uma viagem de bicicleta após despedir-se dos aventureiros que, junto com ele, iniciaram suas experiências em cicloviagem pelo Vale Europeu catarinense. Agora o caminho guia para o Planalto Norte, região de alta altitude e se estenderá pelo próximo mês em 1780 km, de acordo com a sinopse que lemos logo no início.

© Luã Olsen

Não é à toa que o capítulo que aqui iniciamos chama-se “Impulso”: fugindo dos dias combinados para aquela expedição entre amigos e, mesmo desconsiderando as condições lastimáveis de sua bicicleta Helga de treze anos de idade, Luã ouviu o chamado da estrada, esse canto da sereia que nos faz seguir por trechos infindáveis, repletos de encontros e desencontros. Ou, para fazer jus aos outros dois capítulos, caminhos permeados por “Emoção” e “Instinto”.

Atravessando o Vale Europeu, o primeiro circuito do Brasil especialmente planejado para ser percorrido em bicicleta, o relato passa a ser orientado na busca da Serra do Rio do Rastro, quando as altas altitudes encontram novamente a planície, resultando em um cenário sublime de curvas asfaltadas que bailam em bela composição. Para chegar lá, é necessário cruzar Santa Catarina de norte a sul e nesse percurso somos levados por acampamentos nos mais diversos lugares, desde igrejas à postos de combustível e campos de futebol, como também alojamento nas Corporações de Bombeiros e em Centros de Tradição Gaúcha. Dessa forma, assim como o próprio viajante, sentimos tudo com mais intensidade ao notar a firme filosofia (ao menos nessa viagem) de evitar o pagamento de campings e hospedagens. Isso não significa que não sejamos convidados a todo momento para entrar em cafés e fazer brindes comemorativos nas cidades que são alcançadas.

© Luã Olsen

Em Bocaina do Sul, os bares precisavam fechar entre as 22h e 22:05h, e uma viatura da polícia passou avisando que eu “tava atrasado”. Então as portas se fecharam, a clientela entrou no bar e uma meia-luz se fez. Ali, no meu canto, depois de contar a história da viagem para o proprietário, a mulher dele veio me perguntar se eu gostaria de jantar com eles. Aceitei e, em um cômodo apertado por detrás do balcão, espremido por uma escada que levava ao quarto, no pavimento superior, sentei-me numa das banquetas e, com o prato no colo, jantei. Jantei emocionado, claro. A mulher sentava noutro canto e o filho pequeno pra cima e pra baixo com o prato na mão. O marido cuidava dos beberrões no balcão. Feijão com chuchu, arroz e um pedaço de carne de algum outro dia era o prato da noite.

© Luã Olsen

E então acompanhamos seu retorno à Florianópolis, sua cidade de origem, depois de um grande trecho pelas pequenas cidades de diversas regiões do estado. Claro que após toda essa experiência, a vontade de sair novamente já vinha sendo estimulada pela semente que germinava em seu interior. Não tardaria para a chegada do próximo verão. E foi para angariar fundos para a nova travessia que Luã começou a escrever seus relatos:

“Resolvi escrever e foi em cinco dias e quatro noites regadas a café que escrevi as 94 páginas do primeiro livreto, levei numa copiadora, desenhamos um mapa que imprimimos em um material mais nobre, de gramatura maior, numa destacada cor amarela, colocamos dois grampos prendendo o miolo e estava feito o livreto: saí vendendo por dez reais nas casas, ruas e cafés”, conta o autor. “Despachei pelos correios para diversas partes do país e recebi um feedback bastante positivo, de pessoas que tinham viajado por causa desse relato, coisa que achei incrível”. Com o dinheiro das vendas, Luã comprou uma câmera fotográfica, alguns equipamentos e, por ter um objeto que representasse a viagem, conseguiu ainda alguns apoios de empresas de Florianópolis.

© Luã Olsen

Isso foi em 2012, narrativa que seria desenvolvida e assumiria as dimensões atuais em 2017, levando o nome de Interiores. O autor, que na época era estudante de Arquitetura e Urbanismo na UFSC, hoje formado, escreveu um projeto relacionando sua área de interesse com a viagem e seguiu em direção ao Uruguai visitando casas construídas de forma alternativa, com sua nova bicicleta, agora batizada de Hagar e assim passou 40 dias e mais 2115 km em direção ao sul.

Alguns meses após o retorno, um problema de saúde foi descoberto e o viajante foi diagnosticado com Linfoma Não-Hodgkin. Como não poderia deixar de ser, Luã usou de suas novas condições para escrever seu segundo relato: intercalando as memórias de viagem e suas condições de saúde, usando o tema da casa e da viagem como pontes para sua condição atual. Assim iniciou o tratamento de quimioterapia e radioterapia que o acompanharia pelos próximos oito meses, trabalhando a escrita nos intervalos, quando se sentia bem.

Escrevo em um quarto de teto baixo e paredes mudas. Do lado de fora, o sol castiga: assentam tijolos com o mesmo e estridente radinho de pilha de todos os dias, estímulo ritmado aos trabalhadores. Escrevo motivado pelo intervalo de minhas dores de cabeça, que vem em batidas descompassadas. As náuseas passaram e posso, contente, ter uma caneca de café aqui comigo. Faz dez dias que estou instalado em um quarto de hóspedes na casa de parentes próximos. Como disse, as paredes não querem conversa. Pendurei um mapa à minha frente, janela pra mente. Já estamos novamente no início do verão. Há dez meses cheguei de Buenos Aires, como se verá. Há um mês me falaram de um linfoma: nome carinhoso pra câncer.

© Luã Olsen

Depois das palavras de abertura, somos levados a um hotel abandonado em um pedaço inicial de orla uruguaia, talvez uma metáfora para o vazio que assolava o escritor ao iniciar seu relato. Ao entrar em um dos cômodos da velha construção ali, viu escrito em grandiosas letras na parede a frase que daria título ao livro: TU, YO Y LA LUNA.

Assim fez-se o segundo relato, TU, YO Y LA LUNA, permeado pelos acasos do caminho e da vida. As memórias surgem sem saber de todo o peso que carregam e que depositarão nas páginas seguintes, cruzando cidades à beira do atlântico, os dias tão quentes, mas noites que se tornavam cada vez mais frias.

Acordei com o barulho de algum animal desconhecido para mim. Repetitivo e incômodo. Até o amanhecer, não consegui mais me aninhar. Percebi o frio que fazia e então desisti de usar o casaco como travesseiro e o vesti junto também da blusa de lã e da calça colegial. Minhas costas já doíam de tanto me encolher em tremedeira, no chão duro de penitência. Agradeci os primeiros raios de sol, logo cedo. As árvores não permitiam que o calor aquecesse alguma coisa. Ao menos poderia me levantar. A manhã congelava do lado de fora, porém era menos frio do que o interior da barraca. Vesti a capa de chuva, como último suplício. Joguei o saco de dormir nas costas e esperei que a caldeira aquecesse a água dos chuveiros.

© Luã Olsen

O acaso é parte integrante desses relatos. Assim também foi durante a travessia por Santa Catarina, quando sem ter como registrar os lugares por onde pedalava, já que não tinha máquina fotográfica quando ficou sozinho, contou com a sorte de viajantes que passavam pelo caminho fotografando e enviando-lhe o registro por e-mail. Os carimbos dos órgãos oficiais, como prefeituras e bombeiros, foram inseridos na narrativa, de modo a comprovar sua passagem em provas documentais. “Se você for esperar as condições ideais para viajar, achar que é necessário ter a melhor bicicleta, a câmera com melhor definição, todas as coordenadas previamente estabelecidas, você não vai viajar. E se viajar, pode ser que não tenha tanta emoção assim.”

© Luã Olsen

E foi ao acaso que em uma feira de publicações independentes em São Paulo, em 2018, pude adquirir diretamente de suas mãos esses livretos e trocar uma ideia com o catarinense. Criou um selo, Helicoidal, com o qual vem publicando seus livros. Contou que tinha acabado de voltar de uma travessia pela Patagônia argentina e chilena e deduzi que já estivesse bem dos problemas de saúde que o assolaram no passado. “Sim, minha médica deu o aval e lá fui eu, cinco anos depois de ter voltado do Uruguai, passei quatro meses ainda mais ao sul, ainda com mais frio. Saí de Buenos Aires, fui ao sul do Chile e retornei à Santiago.”

© Luã Olsen

Seus livretos têm o formato “de bolso”, são bons para serem carregados agora em nossas aventuras, são simpáticos e nos atraem a atenção. “Apesar de cada viagem ser única, sinto que há uma evolução em minha escrita. Há coisas que precisavam ser contadas daquela forma inicial, como um primeiro passo numa aventura, de forma direta, sem muitos rodeios, sem muito planejamento. Mas agora tenho alguns métodos, começo a escrever quando já há um certo distanciamento da viagem, quando as pequenas escolhas, os pequenos encontros e as decisões que tomamos assumem proporções maiores do que se mostravam naquele momento. Depois de um ano ou dois é que começo a escrever”. Entendi seus métodos, afinal a paciência deve ser uma virtude para quem resolve viajar longas distâncias sobre duas rodas impulsionadas pela energia de seu próprio corpo. E depois, ainda, é necessário energia extra para compartilhar essas experiências, revivendo tudo aquilo pelo que se passou.

© Luã Olsen

“Cada uma dessas viagens só termina realmente ao finalizarmos a confecção do livreto. É quando pensamos qual é a melhor forma de colocá-lo no papel, como será seu mapa. Um livro de viagem sem um mapa simplesmente não é um livro de viagem. Vou novamente atrás dos colaboradores que tem participado nas edições anteriores, desde o projeto gráfico até a serigrafia da capa. Participo de todas as etapas. Imprimimos uma tiragem limitada de 300 unidades.”

Peguei novamente o outro livreto depositado à mesa, o primeiro, analisando sua materialidade. Há realmente um trabalho interessante de design: a capa rígida e escura é como uma barreira que devemos atravessar para chegar a seu miolo colorido de páginas amarelas, que na primeira versão, das quatro noites regadas a café, ilustrava a capa. No verso, como um poema, as frases vem quebradas como se fossem versos:

Pareceria ingênuo para alguns, sem sentido para outros. Também crianças, divertidas e simpáticas nos seguiam com seus olhares. Brincadeiras infantis. Nesse interior do interior do estado, pelas estradinhas escondidas conectando campos verdes e esparsas casas em curvas que se perdem bailando os morros, a simpatia do habitante que se identifica, cumprimenta e deseja boa sorte pelo caminho, nos ensinando algo que demoraremos, ainda, a entender.

“Não sou muito fã das grandes narrativas, das voltas ao mundo. Eu jamais conseguiria escrever o relato de uma volta ao mundo, ainda mais feita em bicicleta. Precisaria de anos de viagem e ainda mais tempo para escrever”, comenta sorrindo. “Assim, o que eu tenho feito são pequenas viagens que vão continuando aos poucos ao longo dos tempos. A primeira foi um reconhecimento pelo meu estado, de minhas condições. A segunda foi de Floripa até Buenos Aires e, na última, segui de ônibus novamente até Buenos Aires de onde parti pela Argentina. As pessoas tendem a pensar que uma aventura precisa de grandes dimensões. Mas é você que dá a proporção, mesmo à pequena travessia. Tem gente que faz grandes aventuras e não percebe nada, nem fora nem dentro de si”.

© Luã Olsen

Já se passaram dois anos de sua experiência pela Patagônia, penso que está na hora de sair alguma coisa escrita e envio-lhe um e-mail. Recebo a informação de que está escrevendo durante esse período de quarentena, fechado em sua casa, com um mapa pendurado na parede de seu quarto: “Estou empolgado, na medida do possível é claro, acabamos criando novos hábitos, escrevo todas as manhãs. Será um bom relato, deverá sair em 2021. Por enquanto, fizemos uma nova edição de TU, YO Y LA LUNA, mais 100 exemplares, imprimimos em um papel de melhor qualidade, fizemos correções, vamos ficando mais exigentes…”

Aguardamos. Já é o suficiente pra despertar minha curiosidade. Se você sentiu a comichão nos pés, como eu, a empolgação de querer sair viajando, não pense duas vezes antes de apoiar esse incrível trabalho, e envie uma mensagem para o autor no contato informado aqui embaixo. Se você já leu seus relatos, entre em contato para dizer o que achou. Ao menos na leitura, por enquanto, nesses tempos de isolamento em que vivemos, é possível ir bastante longe em nossa imaginação. Mas atenção: para quem espera um relato com a velocidade calma e vagarosa de uma bicicleta rodando por dias de trechos aparentemente intermináveis, apesar de curtos ao serem feitos por outros veículos, pode se surpreender com a velocidade com que somos guiados: devoramos os livros, ao passo que somos também devorados.


INFORMAÇÕES TÉCNICAS

#1 INTERIORES (2017)

R$45,00

182 páginas.

Formato de bolso (14,3 x 10,3 cm).

Capa em papel chumbo, com detalhes em serigrafia e baixo relevo.

Miolo em papel Super Bond amarelo 75 g/m².

Mapa impresso em papel Canson amarelo 120 g/m².

#2 TU, YO Y LA LUNA (2014)

2ª edição: 2020

R$45,00

216 páginas.

Formato de bolso (14,3 x 10,3 cm).

Capa em papel canson azul 180 g/m² com detalhes em serigrafia.

Miolo em papel Pólen Soft 80 g/m².

Mapa impresso em papel vegetal 180 g/m².

CONTATO

Helicoidal:
oficina.helicoidal@gmail.com

Instagram.com/oficina.helicoidal

Luã Olsen:

lua.olsen.arq@gmail.com

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