Rota cicloturística histórica às margens do Rio São Francisco, em Alagoas.

Quando D. Pedro II, no ano de 1859, veio a Alagoas participar de uma expedição, ele estava, em outros tempos, exercendo o seu lado radical e aventureiro. Adentrar o sertão subindo o rio São Francisco de barco e algumas partes a cavalo, numa região ainda repleta de indígenas e muito pouco explorada, era certamente um feito para poucos corajosos.

Nosso último monarca registrou através de desenhos e um diário detalhes riquíssimos sobre a natureza, o povo e a vida daquela região, os quais ousamos redescobrir revivendo esta incrível aventura em cinco dias. Desta vez, o formato seria uma expedição cicloturística, munidos de minimalistas alforjes com itens indispensáveis sobre nossas Mountain Bikes. Que tal?

Os tempos são outros, mas por mais incrível que pareça a região ainda guarda toda a sua natureza rica, selvagem, a “brutalidade” do clima e do terreno que o Imperador por lá encontrou.

© Sérgio Novis

Naquela quarta-feira da semana que antecede o São João e seus festejos tão tradicionais em nossa região nordeste, fiquei surpreso com a mensagem do Paulo Pinto, carioca, radicado nas Alagoas, velho companheiro das trilhas e integrante do Singletrack Adventure, nosso grupo de pedal em Maceió e regiões adjacentes. Ele simplesmente dizia no whatsApp: “Eu e alguns poucos amigos de Recife, iremos nesta sexta realizar o Caminho do Imperador, subindo o Rio São Francisco em quatro ou cinco dias. Topa?”

Pouca informação e muita coisa para se pensar em um dia e meio que me restava, mas a ideia era tentadora, ainda mais conhecendo o Paulo, que assim como eu, munido de um GPS, não se cansa de inovar e sempre acrescentar partes novas e interessantes, inclusive na mais conhecida das trilhas.

© Sérgio Novis

Imaginei um percurso de cinco dias, totalmente novo para mim e com uma pegada histórico-cultural, num trajeto que atravessa as três regiões do nosso estado, Alagoas: Atlântica, Agreste e Sertão.

Como diz o Visa e a minha esposa, Dani, que mesmo sem pedalar sempre me apoia: “A vida é agora!”, e assim, logo tratei de me colocar livre e disponível para mais esta aventura.

Na quinta à noite, conheci num restaurante italiano os meus outros companheiros de viagem, vindos do Recife, e a impressão que tive deles foi a melhor possível. Não costumo errar com o meu “feeling” em relação às pessoas, e pude constatar isto nos dias em que se deu nossa cicloviagem, na qual o companheirismo e a sinergia do grupo foram melhores do que se possa desejar.

© Sérgio Novis

Eis o grupo: João Bonfim, cabra da peste nascido em Petrolina, um entusiasta do cicloturismo, membro de alguns grupos de pedal em Recife, assim como também a Graça. Esta alagoana, há muito radicada em Pernambuco, levava a inseparável bandeira deste estado durante toda a viagem presa em sua bike. Por último o Marcelo, um uruguaio totalmente abrasileirado, com o coração catarinense (ou seria gaúcho?), que pende por Pernambuco quando se trata de nordeste. O Marcelo tem um currículo cicloturístico dos mais invejados e em se tratando de América do Sul, principalmente Brasil, fica difícil imaginar um roteiro onde ele não tenha ainda trilhado com a sua bike.

Por questão de logística e comodidade, escolhemos iniciar a nossa viagem em Penedo, mas pode-se também cumprir a trajetória da expedição original, partindo-se de Piaçabuçu, 22 km antes de Penedo, com trecho de rodovia asfaltada entre estes dois municípios. Vamos ao roteiro realizado.

© Sérgio Novis

DIA 1
De Penedo a Porto Real do Colégio – 50 km

“O local é muito bonito. Creio que deverá estar aqui a capital da província”. Frase de D. Pedro II entre 14 e 15 de outubro de 1850, referindo-se a Penedo.

Estava absolutamente certo nosso Imperador quando fez menção à beleza de Penedo, com o seu casario antigo, igrejas e conventos barrocos, ladeiras de calçamento e vista privilegiada do rio São Francisco. Após a nossa breve viagem de ônibus, não podíamos iniciar o pedal sem um tempo para curtir e apreciar as belezas desta cidade ribeirinha, onde o tempo parece não ter pressa e o passado ecoa em cada esquina. Aproveitamos, também, para nos abastecer de água e tomar um bom café da manhã na lanchonete do hotel São Francisco.

Diferentemente de outros grupos de pedal que simplesmente fazem “a pedalada do São Francisco” ou “Pedalada do Sertão”, tentando vencer os 240 km entre Penedo e Piranhas no menor tempo possível, nosso grupo parecia querer justamente o contrário. Dentro de um ritmo razoável de pedalada, queríamos fazer este trajeto no maior tempo possível, apreciando, curtindo, fotografando, entendendo a história, aprendendo com o povo simples e hospitaleiro dos povoados e cidades pelas quais passamos.

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“O local é muito bonito. Creio que deverá estar aqui a capital da província”

D. Pedro II

Depois que deixamos Penedo para trás, após um breve trecho de asfalto, pedalamos por entre as trilhas e estradões de barro que compõem o caminho entre as cidades visitadas pelo Imperador, a bordo do vapor Pirajá e em lombo de animais, caminho este reconstituído no ano de 2009, após 150 anos da expedição original, pelo herdeiro da família real, o príncipe D. João de Orleans e Bragança.

A paisagem é muito bonita, com algumas áreas de mata atlântica preservada, plantações de cana de açúcar, pastagens de gado e, mais precisamente naquela região, lagoas e várzeas onde arroz é plantado. O primeiro trecho da viagem é razoavelmente plano, passa por alguns povoados (Mariseiro, Xinharé, Tapera, Barra e Castro), onde é possível encontrar água e lanches rápidos pra consumir durante o percurso. Nosso primeiro “pouso” foi na cidade de Propriá, em Sergipe, pois em comparação à alagoana Porto Real do Colégio, oferece melhores opções de refeições e acomodação. (Obs: existem restaurantes à margem da rodovia, logo após a passagem da divisa de estado, junto à ponte do “Velho Chico”, onde comemos uma deliciosa peixada de surubim num local simples com preço “honesto”).

É preciso muito cuidado para se atravessar esta ponte que separa os dois estados, pois ela é estreita, com tráfego de ônibus e caminhões, sem local apropriado para pedalar e a lateral, onde se poderia passar a pé, está com várias placas de cimento soltas, através das quais se avista o rio, muitos e muitos metros abaixo, durante esta travessia sinistra.

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DIA 2
De Porto Real do Colégio a Traipú – 60 km

“Apareceram-me bastante descendentes dos índios de raça já bastante cruzada trazendo alguns cocares de penas com seus arcos e flechas.” – Frase de D. Pedro II, em 16 de outubro de 1859, referindo-se a Porto Real do Colégio.

Acordamos em Propriá com o tempo bastante fechado, chuvoso, antes de cruzarmos a fronteira do estado em mais uma perigosa travessia da ponte sobre o rio São Francisco, para então atravessarmos a cidade de Porto Real do Colégio, com a igreja matriz Nossa Senhora da Conceição e um pequeno porto fluvial.

Logo na saída da cidade, debaixo de bastante chuva, pegamos um trecho de asfalto, que vai até a cidade de São Brás, passando por uma área denominada Tibirí, que recentemente teve grande valorização imobiliária, repleta de sítios e casas de alto padrão na beira do rio. A partir deste ponto, voltamos à trilha de barro e com a mudança de ecossistema adentramos a região do agreste, com vegetação mais rasteira e presença de pedras no caminho, o que conferiu às trilhas maior dificuldade técnica, singletracks com elevações, curvas rápidas e uma certa dose de adrenalina, já que a condição era de chuva e muita lama escorregadia. Tudo isto agravado pelo peso extra dos nossos alforjes.

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Passamos por vários povoados nos quais a descendência indígena mencionada por D. Pedro II pode ainda ser bastante observada, seja nas feições do povo local e na presença de diversas reservas naquela área. Vale ressaltar a beleza da Lagoa Comprida, que antecede o povoado de mesmo nome. A chuva fina, apesar de dificultar o percurso tornando a terra bem mais grudenta e pesada pra se pedalar, amenizava o calor que nos meses de verão chega a incomodar muito a partir dali, pra quem está rumando em direção ao sertão da forma que estávamos. Ter visto aquela região tão verde foi também, de certa forma, um privilégio.

Houve um trecho de aproximadamente 1 km onde tivemos que atravessar as bikes com o auxílio de canoa motorizada, pois havia um pequeno rio bem à nossa frente. Durante todo o resto da viagem, a chegada no destino onde iríamos passar a noite foi com o auxílio de lanternas na bike, pois para nós o caminho era mais importante que o destino. Íamos sem pressa, descansando quando queríamos, proseando com o povo das fazendas e arruados, além de ter tempo para curtir o visual da região.

Passamos a noite numa pousada muito aconchegante, uma espécie de hospedagem domiciliar, onde jantamos deliciosamente acompanhados da família que administra o estabelecimento, com o nome que faz jus a toda esta hospitalidade: Pousada Minha Casa, Sua Casa.

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DIA 3
De Traipú a Pão de Açúcar – 70 km

“Depois de orar na Matriz, fui dar um passeio às lagoas, onde plantam arroz e colhi diferentes plantas e flores do campo” – Frase de D. Pedro II entre 16 e 17 de outubro de 1859, em Traipú.

Todo este ar bucólico presente no diário do Imperador pode ser sentido na exuberância da paisagem que se descortina à medida que saímos de Traipú em direção a Pão de Açúcar, chegando ao sertão. Lá, as pastagens e o gado dão lugar às cabras, à cana, aos cactos, às mangueiras frondosas e aos umbuzeiros com suas deliciosas frutas.

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Este foi o trecho mais difícil e penoso do percurso, com uma altimetria de aproximadamente 1.300 metros, apesar de não termos de fato subido nenhuma grande serra. Ocorre que, apenas, não há nada plano! O rio São Francisco corre numa espécie de cânion e para se ter acesso a qualquer cidade nas suas margens precisa-se descer os morros, para somente depois termos que subir tudo de novo até o próximo povoado. Foi assim com a cidade de Entremontes, onde almoçamos um delicioso tucunaré recém-pescado, e com o povoado da Ilha do Ferro, famoso por suas rendas e esculturas em madeira, ambos imperdíveis.

Neste trecho existem algumas subidas longas e bastante íngremes, para as quais o ciclista deve estar bem preparado fisicamente.

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Dia 4
De Pão de Açúcar a Piranhas – 65 km

“Tirei uma vista à pressa do rio junto a Piranhas de Cima, através da grade de pau da janela do meu quarto, e depois dormi até o jantar.” – Frase de D. Pedro II, em 18 de outubro de 1859, em Piranhas.

Partimos cedo de Pão de Açúcar, seguindo pela rua que beira o rio, repleta de mercados de peixe e feiras livres, onde se comercializa animais vivos como galinhas d’Angola, cabras e jegues. Mais adiante, um furo num dos pneus da minha bike nos lembrou que não adianta ter pressa. Recomendo fortemente aos ciclistas que ao pedalar pelo sertão, utilizem pneu com selante ou ao menos uma fita anti-furo.

© Sérgio Novis

Algumas subidas intermináveis pela frente e se alcança um estradão de barro com superfície bastante irregular devido ao constante fluxo de veículos. A vibração contínua, aos poucos, se transforma em desconforto, para logo mais virar tortura. O que ameniza é o belo visual do rio lá em baixo. Em alguns trechos, e para a nossa sorte, com o tempo nublado não havia o calor acima de 40 graus típico desta região de Alagoas. No caso é questão de escolher entre a “costela de vaca” na pista, mais acentuada após chuvas ocasionais de inverno, ou o poeirão e o calor do verão neste trecho, onde a “rodagem” de barro é a única opção de trajeto para carros ou bikes.

Nesta parte do percurso, além de estarmos seguindo os passos do Imperador D. Pedro II, mantem-se muito viva a história do Cangaço, pois do outro lado do rio, em Sergipe, existe a trilha da Grota de Angicos, onde Lampião, Maria Bonita e seu bando foram emboscados e mortos. Em toda esta região, de Pão de Açúcar a Piranhas, vale tirar uma prosa com os habitantes locais, muitos deles descendentes dos próprios cangaceiros, lendas vivas do sertão do nordeste.

© Sérgio Novis

Chegando em Piranhas, cidade encrustada na beira de morros de pedra, às margens do rio São Francisco, já se sente um ar de que todo esforço valeu a pena, pois o local é muito bonito, bem cuidado, com ótima infraestrutura turística, boa gastronomia e de quebra pegamos um forrózinho pé-de-serra que acontecia na cidade naquela noite de São João. A cidade de Piranhas é um ótimo local para se encerrar a aventura, embora a expedição original do Imperador tenha continuado até Delmiro Gouveia e as cachoeiras rio acima (Paulo Afonso), que nem mais existem após a construção das hidrelétricas.

Lá em Piranhas é onde se encontra mais conforto e amenidades para o merecido descanso depois de quatro dias ininterruptos de pedal. Fomos muito bem recebidos na confortável e charmosa pousada O Canto, que frente a todo aquele cansaço acumulado nos pareceu um verdadeiro oásis. Se o visitante tiver oportunidade de conhecer o dono da pousada, Celso Rodrigues, vai estar diante de um profundo conhecedor da história do Cangaço com todos os seus meandros e detalhes. Uma verdadeira aula de história.

© Sérgio Novis

No quinto dia, já sem os alforjes e com as bikes um tanto mais leves, aproveitamos para conhecer a hidrelétrica de Xingó e subir por uma incrível trilha, toda em singletracks, por onde outrora existia a ferrovia que ligava Piranhas com o resto de Alagoas, hoje apenas lembrada pela belíssima estação ferroviária transformada em museu e uma “Maria Fumaça” em exposição, onde antes se iniciava a ferrovia.

Atravessamos a ponte que liga Alagoas a Sergipe (Canindé do São Francisco), visitamos o lago acima da represa e retornamos pela trilha do lado de Sergipe até a margem oposta à cidade de Piranhas, quando tivemos que acenar para uma canoa nos atravessar o rio, que naquela região é bastante claro, fundo e com fortes corredeiras.