Um pedal de Toulouse a Marseillan, na França, margeando o Canal du Midi, o mais antigo canal marítimo da Europa ainda em funcionamento.

Tenho por hábito fazer as coisas sozinho, notadamente viagens. Os psicólogos de plantão têm, certamente, explicação negativa para este tipo de comportamento humano. Acontece que gosto de me movimentar livremente, quer pelos meus interesses (cemitérios, ruínas, grandes catedrais e pequeninas e antigas igrejinhas), ou minha pressa em determinadas situações, ou minha habitual falta de fome e sede em viagens, ou minhas frequentes paradas para fotografar… Então, pouca gente me aguenta, voo solo. Nem por isso, me considero um misantropo.

Porém, não se pode ser rígido. Devemos estar abertos a oportunidades de fazermos coisas que sequer sonhávamos. Graças a organizadores, podemos experimentar algo que nem saberíamos por onde começar – e com conforto “VIP”!

© Nilceu Mario Moro

E assim foi. Um colega dos tempos de ciclismo de estrada, o Agenor Brandalise, apresentou-me ao pessoal da Bike Ativa, agência de cicloturismo, que estava intermediando um pacote para pedalar ao longo do Canal de Midi, na França, organizado e guiado pela Solo Bikes, empresa espanhola também especializada em cicloturismo.

Num rampante de decisão precipitada, comprei a passagem para Madri. Três meses de antecedência, que era pra não poder voltar atrás.

Madri é uma das portas de entrada na Europa e lá nos esperava o pessoal da Solo Bikes. Os fantásticos, velozes e confortáveis trens de alta velocidade europeus nos levaram para Toulouse, onde começaria nossa pedalada até Marseillan, às margens do Mar Mediterrâneo.

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Toulouse, além do início do pedal, foi o ponto de convergência e reunião do nosso grupo, todos brasileiros: Andréa, Tatiana, Eliane, Michele, Cida, Luciano (da Bike Ativa), Tom, Zacaria, Agenor e eu, além dos três guias espanhóis: Pilar, Angel e Paco.

Perambulamos pela linda Toulouse e, de trem, fui visitar a cidade medieval de Albi, cidade natal do pintor Toulouse Lautrec e onde se destaca a magnífica categral de Sta. Cecile. As oportunidades de conhecer coisas novas numa grande viagem são únicas e, mesmo assim, fica o sentimento de que não se viu tudo…

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O Canal de Midi

Nosso principal ponto turístico seria o Canal de Midi. Às voltas com a pirataria marítima nos anos de 1500 e 1600 e o crescente comércio de trigo e demais produtos, as cidades do Oeste da França sofriam para se comunicar política, militar e comercialmente com as cidades do leste do país, pois o afunilamento da comunicação do Oceano Atlântico com o Mar Mediterrâneo pelo Estreito de Gibraltar favorecia os assaltos às embarcações francesas… O mesmo acontecia ao tentarem contornar pelo sul, a Península Ibérica.

Como não havia rios navegáveis que atravessassem o país e que comunicassem os dois mares de maneira desejada, os franceses desafiaram a natureza e construíram o seu próprio rio, “O Canal de Midi” ou “O Canal de Dois Mares”, como também é chamado.

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Trata-se de uma fantástica obra de engenharia civil e hidráulica construída entre 1662 e 1681 e que, desde 1996, é tombada pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.

Coube o maior mérito desta obra ao engenheiro autodidata Pierre-Paul Riquet, que iniciou o projeto construindo uma maquete e elaborando projetos do traçado do canal, eclusas, túneis e desaquadutos, tendo que estabilizar entre os dois extremos do canal, através de eclusas, um desnível de 190 metros para propiciar uma navegação horizontal tranquila.

A grosso modo, o Canal foi aberto na base da pá e picareta, onde trabalharam cerca de 12 mil operários.

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O Canal de Midi tem:

  • 63 eclusas
  • 126 pontes
  • 55 aquedutos (alimentadores ou drenagem de água)
  • 07 pontes-canal (rio sobre rio!)
  • 06 barragens
  • 01 túnel
  • 246 quilômetros de extensão.

Por conta das eclusas, a navegação pelo Canal se faz de maneira tranquila, como num lago plácido.

De Toulouse foi aberto outro canal para receber água do rio Garonne para alimentar o Midi e, por ser o Garonne navegável, completar a ligação com o Oceano Atlântico.

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Início do “Tour” Rumo ao Mediterrâneo

Partimos de Toulouse a Castelnaudary, num itinerário de 66 km, sempre que possível, margeando o Canal. O caminho é de terra e deve ser um pouco complicado com chuva. É uma via estreita que raras vezes chega a acomodar um automóvel. O percurso é plano e fácil, haja visto o desnível de apenas 190 metros em 246 km de extensão.

Em Castelnaudary provamos o prato tradicional francês “cassoulet”, para a tristeza dos demais frequentadores do restaurante não acostumados com a presença de brasileiros reunidos tomando vinho… Caras feias foi o que não faltou a nos “mirar”.

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Nos 40 km do dia seguinte, visitamos rapidamente Bran, conhecida por ter sido um dos locais onde mais se acentuou a caça às bruxas: centenas de pessoas foram à fogueira no período da Santa Inquisição. Um dos episódios mais cruéis das Cruzadas, lideradas por Simon de Montfort, ocorreu nesta cidade onde este líder mandou cegar, cortar os narizes e os lábios de cem pessoas, com exceção de um “sortudo” que deixou um dos olhos sem vazar para que pudesse conduzir os demais aleijados para uma cidade vizinha que pretendia também dominar; para servir de alerta.

Deixamos a atualmente pacata Bran e terminamos o dia de pedal em Carcassone. É fantástica a “La Citè” com suas muralhas duplas. A antiga cidade ficava protegida dentro das muralhas. Hoje uma grande e moderna cidade desenvolveu-se extramuros.

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Carcassone começou como uma colônia romana em 118 a.C. Apesar de uma cansativa subida da colina onde se situa estrategicamente a “La Citè”, é obrigatória a visita de dia e à noite.

Continuamos margeando o Canal de Midi por mais 61 km desde Carcassone até Le Somail. Ao longo do Canal são plantados cerca de 40 mil plátanos, grandes árvores alinhadas com a função de proteger as margens contra a erosão. Vê-se, ao longo do percurso, estas árvores sendo cortadas e replantadas numa exímia manutenção deste Patrimônio da Humanidade.

© Nilceu Mario Moro

Há muita navegação pelo Canal, onde barcos de todos os tamanhos, por lazer ou a trabalho, ali navegam a velocidade baixíssima (6 a 8 nós) a fim de evitar marolas que prejudicariam e erodiriam as margens.

Há famílias inteiras que literalmente moram nestes barcos atracados às margens próximos às cidades e vilarejos. Invariavelmente há mais de uma bicicleta nos conveses de todos os barcos.

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Há os “peniches”, pequenos barcos à diesel. Você pode alugar um deles, com muita comodidade e conforto (cozinha, chuveiro, talheres, aquecedor, ar condicionado) ao preço de 440 euros por seis noites e, mediante um curso rápido de marinheiro, poderá sair navegando o seu próprio barco.

A cultura europeia é totalmente diferente da nossa de uma maneira geral com respeito às bicicletas. Vimos, ao longo do caminho, “pobres” crianças longe dos “games” e “smartphones”… Tadinhas…

Vê-se ao longo do trajeto, rio (o Canal) passando por cima de rio. Também, por estarmos numa região fortemente vinícola, tem-se contato com vinhedos de onde saem os famosos vinho franceses. Passamos pelo único túnel do Canal, lembrando que é uma engenharia de 1670.

Saímos de Le Somail e chegamos na grande cidade de Bezier com sua maravilhosa catedral, totalizando 44 km. Pouco antes de Bezier, há uma grande atração turística. É Fonseranes, onde há uma série de nove eclusas onde, numa curta distância, uma embarcação é baixada ou elevada a 21 metros de altura.

© Nilceu Mario Moro

De Bezier a Marseillan são mais 35 km. Passamos por Agde, mais uma das muitas cidades de origem medieval nesta viagem. Finalmente, chegamos ao Mar Mediterrâneo, final do Canal de Midi.

Marseillan é uma bonita e badalada região litorânea francesa. Muito bem frequentada por pessoas (homens e mulheres) que à miúde dispensam a parte de cima dos seus trajes de banho.

O saldo deste enorme passeio foi altamente positivo. De volta a Madri, aproveitamos para conhecer um pouco das riquezas de Barcelona, Toledo, Segóvia e a própria Madri. Se houver interesse do leitor em saber mais sobre a viagem, pode acessar meu blog: moronil.blogspot.com. Experiências sem compartilhamentos são experiências egoístas e incompletas.

© Nilceu Mario Moro

Bicicleta: levar ou alugar?

Apesar de pesada ou desajeitada, não há problemas em levar sua bicicleta numa viagem aérea, sem pagar excesso, pois ela não ultrapassa nem em peso e nem em dimensões o volume máximo permitido, pelo menos pelas normas aéreas brasileiras. Já li casos de pessoas que viajaram pela Ibéria e que na ida levaram a bicicleta gratuitamente, mas na volta, pela mesma empresa, tiveram que pagar cerca de US$ 70, sob a legislação e normas do país e da empresa no exterior. Há a opção, às vezes vantajosa e cômoda, de se alugar uma bicicleta no local, porém, no meu caso, optei pela gostosa “fidelidade” com a minha magrela. Se você tiver a nota fiscal da sua bicicleta, leve. Na volta, eu caí na “aleatória” da Polícia Federal brasileira e tive que provar que saí do Brasil com ela. Se você não tiver a nota fiscal, registre, na saída do país, detalhadamente a marca, modelo e número do quadro para não ter que pagar imposto sobre a bicicleta e multa por tentar burlar o fisco, injusta e inocentemente.

© Nilceu Mario Moro

AGÊNCIAS

Bike Ativa
Curitiba – PR
bikeativa.com.br

SOLO BIKE
Espanha
solobike.es