A jovem que fez, sozinha, a Serra do Espinhaço, de Diamantina/MG à Chapada Diamantina/BA

Em 2019 fiquei sabendo do lançamento do guia de cicloturismo Serra do Espinhaço pelo casal Olinto e Rafaela, e na hora ele se tornou um destino dos sonhos. O planejado era fazê-lo em 2020, mas em razão da pandemia, adiei a realização. Mas, em junho de 2021, com a pandemia mais controlada, resolvi pegar a estrada.

© Cândida Brenner de Azevedo

A Serra do Espinhaço é um trajeto que liga Diamantina/MG à Chapada Diamantina/BA. O caminho evita, sempre que possível, o asfalto, sendo realizado por estradas de terra e areia. São em torno de 1000km de Diamantina/MG à Mucugê/BA e, de bônus, há a possibilidade de fazer a volta ao Parque da Chapada Diamantina/BA, o que acresce mais de 200km ao percurso.

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Fiz o trajeto em 30 dias, contando o deslocamento da cidade onde moro até o ponto inicial da travessia e o retorno para casa. Pedalei mais de 1200km.

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Resolvi encarar essa aventura sozinha: só a bike e eu. Fiz o planejamento da viagem de modo que não precisasse levar equipamento de camping, pois queria viajar o mais leve possível. Pelo que li e assisti, o trajeto não seria moleza.

Fui de avião até Belo Horizonte. De lá, Rayanne, amiga que o cicloturismo me presenteou, me deu carona até Diamantina e de quebra pedalou comigo no primeiro dia da aventura. Iniciar esse desafio com a companhia de uma amiga foi muito especial, a felicidade tomou conta da gente.

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Ao iniciar o pedal eu comecei a ter ideia do desafio que vinha pela frente e das surpresas que teria no caminho. Quando dou as primeiras pedaladas nas viagens, um filme passa na minha cabeça; tudo que li, vi e ouvi sobre o trajeto vem à tona e uma energia maravilhosa toma conta de mim. O sentimento do sonho sendo vivido é inexplicável.

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A beleza das paisagens da Serra do Espinhaço e do seu entorno me surpreenderam, e não imaginei que fosse tão encantador. As montanhas, a vegetação e as estradas de terra e areia formam uma composição perfeita para ser apreciada. A minha expectativa era de que, como pedalaria no sertão, as paisagens não seriam tão bonitas e que o auge da viagem seria a chegada à Chapada Diamantina. Ainda bem que minha expectativa estava errada. Eu simplesmente fiquei surpresa com a beleza e os encantos do caminho. É difícil descrever o que vi, nem as fotos revelam a real beleza do lugar. Mas posso dizer que tudo era perfeito.

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A Serra do Espinhaço me acompanhou em quase todo o percurso, às vezes mais tímida, outras, revelando sua potência total. Eu sou apaixonada por montanhas, então, estava no lugar certo. Ao redor da Serra foram criados muitos parques, estaduais, municipais e nacionais, e neles há cachoeiras maravilhosas, além de fauna e flora protegidas por correrem risco de extinção.

O trajeto tem pontos bem duros, com subidas íngremes, estradas em péssimo estado de conservação, muitas pedras soltas, costeletas de vaca e até singletracks. Mas todo o esforço é recompensado pela paisagem, pela hospitalidade do povo e pela sensação de se estar fazendo o que ama.

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O caminho, por atravessar estados, possibilita que a gente comemore o avançar das pedaladas e sinta o gosto da conquista em vários pontos do caminho. Quando cruzei a fronteira entre Minas Gerais e Bahia, me dei conta de que estava progredindo, que estava conquistando o caminho.

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Quando entrei na Bahia, tive mais contato com pessoas durante os pedais, passei por mais moradores e tive bastante contato com a mineração. Em uma ocasião, no trajeto de Licínio de Almeida a Caetité, peguei um trânsito intenso de caminhões carregando minérios, pois em Licínio de Almeida há ferrovia ativa. O tráfego era tanto que um caminhão pipa ficava molhando a estrada, caso contrário era impossível enxergar. A estrada era de terra e a poeira que os caminhões levantavam impedia a visão. E essa poeira é bem diferente, ela é mais escura e gruda na pele, é difícil de removê-la. O legal desse dia é que me tornei amiga de todos os caminhoneiros. O motorista do caminhão pipa me ajudou jogando mais água perto de onde eu estava.

© Cândida Brenner de Azevedo

Quando faltavam uns 120km para chegar em Mucugê/BA, por onde entraria na Chapada Diamantina, tive uma lesão na virilha. Eu não sou de reclamar de dor ou de desistir no meio do caminho, mas a dor era tanta que eu cheguei a pensar que teria que abandonar a viagem. Resolvi ficar um dia parada para ver se melhorava e revi o trajeto do próximo dia para pedalar pelo asfalto, pois a trepidação da estrada de chão piorava a lesão. O descanso ajudou, mas não estava 100%. Mesmo assim, peguei a estrada, fazendo o desvio pelo asfalto. A dor nas primeiras pedaladas era intensa, via estrelinhas, mas continuei. Nesse meio tempo, dois ciclistas passaram por mim e começaram a conversar, perguntaram de onde vinha, para onde ia e me acompanharam por uns 20km. Conversar com eles me distraiu. Quando eles seguiram o seu caminho, a dor já não era tão intensa. Logo pensei, é o universo conspirando para que eu realize meu sonho e complete o caminho.

© Cândida Brenner de Azevedo

Uma das grandes emoções da viagem foi a visão das montanhas que formam a Chapada Diamantina. Eu tinha terminado uma serra de 25km, estava exausta, com a visão até meio turva de tanto esforço. Quando contornei a última curva, levantei a cabeça e ao fundo avistei as imponentes montanhas da Chapada Diamantina. Foi emocionante. Todo o cansaço sumiu, fiquei admirando a visão e pensando em tudo que tinha vivido no caminho até ali. Foi incrível!

© Cândida Brenner de Azevedo

Outra emoção vivida nesse mesmo dia foi a chegada em Mucugê/BA. Alcançando essa cidade eu tinha concluído a Transespinhaço, pedalando de Diamantina/MG à Chapada Diamantina/BA, por mais de 1000km. Esse dia foi especial, muitas emoções e sentimentos de realização. Como é bom poder realizar sonhos, e ainda mais quando é com o seu esforço (literalmente), pedalando cada centímetro de estrada. Eu era a felicidade em pessoa. Que sentimentos gostosos de serem sentidos.

Em Mucugê, descansei, comemorei a conquista e verifiquei se seria possível dar a volta ao Parque da Chapada Diamantina. Eu não tinha tantos dias quanto gostaria, mas resolvi percorrê-lo mesmo assim, ciente de que não conseguiria visitar todos os lugares que pretendia. Como eu começaria e terminaria o pedal em Mucugê, reorganizei a bagagem e levei apenas o estritamente necessário, para viajar ainda mais leve.

© Cândida Brenner de Azevedo

O pedal pelo Parque foi incrível, com paisagens deslumbrantes, travessia de rios e riachos, estradas boas e terríveis. De quebra, até consegui fazer um trekking até o mirante do Vale do Pati. Apesar de ter sido feita em pouco tempo, aproveitei bastante e fiquei com vontade de voltar para percorrer e visitar outros caminhos.

A aventura foi concluída com sucesso! Mas é claro que tive alguns imprevistos no caminho, mas confesso que eles não foram muitos e que só lembranças boas ficaram. Vou contar um pouquinho dos perrengues.

© Cândida Brenner de Azevedo

Como comentei antes, não levei equipamento de camping para a viagem, dormia em cidades ou comunidades que sabia que tinham alguma forma de hospedagem. Ocorre que a telefonia móvel e internet são bem precárias na maioria dos lugares por onde passei e a comunicação para a reserva da hospedagem é algo bem complicado, em especial nas comunidades. Por isso, no início da viagem, eu não consegui contato com vários locais onde pernoitaria. Mas, mesmo assim eu ia, chegava no lugar e tudo dava certo. Até o dia que, em razão da pandemia, a hospedagem domiciliar não estava sendo feita. Tinha sido um dia muito duro de pedal, a cidade ou comunidade mais próxima estava a 40km, e esses 40km envolviam uma altimetria alta. Eu não tinha condições de continuar a pedalar.

Pedi ajuda para encontrar alguém que me levasse para a próxima cidade de carro, mas nessa procura vi uma casa abandonada, e perguntei para a senhora que estava me ajudando se eu não poderia dormir nela. A senhora hesitou no início, pela casa estar abandonada, mas ao final concordou. Depois desse episódio ainda tive problema em conseguir pouso em outra comunidade, o que me obrigou a pedalar quase 100km, mas como eu disse antes, nessas viagens eu aprendo que posso ir além dos meus limites.

© Cândida Brenner de Azevedo

Mas em toda a viagem acho que o maior susto que levei depois rendeu muitas risadas. Em uma parte do trajeto eu tinha que cruzar o rio Jequitinhonha. É um rio bem largo e no ponto onde estava, tinha duas possibilidades de cruzá-lo, caminhando, em um ponto onde ele é baixo, ou em uma balsa a propulsão humana. Fui até o local onde o rio fica mais baixo, mas achei que estava alto e que não valia a pena arriscar atravessá-lo a pé. Então me dirigi por uma trilha de areia até a balsa. A balsa estava chegando. Apressei o passo para que o balseiro me visse e esperasse. Nisso, a estrada que eu estava desabou e a bike e eu caímos no rio. Eu levei um susto tão grande. Eu não entendia o que tinha acontecido. A bike e eu ficamos presas em uns galhos e eu não conseguia me soltar. Que sensação terrível. O balseiro veio correndo nos socorrer. Depois do susto, dei boas risadas da situação.

Espero que esse relato sirva de inspiração para que você busque a realização de seus sonhos, mesmo que para isso tenha que caminhar sozinho.

© Cândida Brenner de Azevedo
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