Eu já pedalava todo santo dia havia quatro anos. Usava a bike para ir trabalhar, beber com os amigos, fazer compras e todo o resto. Por isso, achei que já era hora de expandir meus horizontes e encarar a minha primeira cicloviagem.

A oportunidade bateu à minha porta quando uma amiga dos tempos em que eu morava em Barcelona me convidou para o seu casamento. E por que não chegar lá pedalando? Mesmo inexperiente nas estradas, decidi encarar o desafio.“Já era hora de expandir meus horizontes e encarar a minha primeira cicloviagem.”

Foi uma loucura. Quando comprei a passagem de avião, faltavam os alforjes, a barraca, a rota e noções de mecânica (eu mal sabia trocar um pneu). Eu só tinha a bicicleta. Foram meses de planejamento cheios de angústia, correria, ansiedade e noites mal dormidas para providenciar tudo a tempo. 

No final, fechei o roteiro em duas etapas. Na primeira, pegaria a Avenue Verte, uma famosa rota cicloviária que liga Londres a Paris. Depois, desceria de Toulouse até Barcelona.

Em agosto de 2017, parti para a minha aventura.

Parte 1

Inglaterra

As primeiras pedaladas começaram num chuvoso e frio 19 de agosto, diante da Abadia de Westminster, coração da capital inglesa. Pedalando apenas por ciclovias e ciclo rotas que compõem o Avenue Verte, vi de perto vários cartões postais da cidade, como o Big Ben, o Parlamento, o rio Tâmisa e a usina nuclear Battersea, capa do álbum Animals, do Pink Floyd, minha banda favorita.

Usando meu celular como navegador, cheguei apenas no fim da tarde à Redhill, 40 km do ponto de partida. Lá fiquei na casa da simpática sul-africana Ailsa, que conheci pelo site WarmShowers, uma comunidade de pessoas que hospedam cicloviajantes sem cobrar um centavo: pelo mais puro altruísmo.

Nos dois dias seguintes me deparei com muitas subidas e descidas e paisagens de tirar o fôlego. Passei por florestas onde não havia sinal de celular (logo, sem orientação para o meu GPS) nem supermercados para saciar a fome. Pedalei por longas estradas rurais em que via a todo momento ovelhas pastando em imensos campos amarelados pelo frio, imagens dignas de uma pintura. Vilarejos históricos, como o de East Grinstead e algumas igrejas medievais eram paradas obrigatórias para “turistar” ou para encher as minhas garrafas de água.

No final da tarde do terceiro dia cheguei ao litoral, mais especificamente em Newhaven, onde pegaria a balsa até Dieppe, na França. Seguindo meus instintos, decidi passar a noite num camping e só atravessar o Canal da Mancha no final do dia seguinte. Que bela decisão!

Acordei debaixo de um céu azul e um calor de mais de 20 graus, uma coisa inédita até então na viagem (sim, o clima inglês é tão ruim quanto dizem). Tempo perfeito para ver de perto, com toda a sua exuberância, um dos lugares mais bonitos que já conheci: as Seven Sisters, uma formação rochosa de falésias de calcário. Eram enormes penhascos brancos como giz que contrastavam com o mar verde azulado lá embaixo. Um espetáculo.

© Flávio Dagli

Parte 2

Norte da França

Foi só atravessar o Canal da Mancha que tudo mudou. Na França, me deparei com mudanças de fuso-horário, clima, arquitetura, cultura e, claro, idioma. Eu não sabia, mas estava começando a etapa mais marcante de toda a viagem.

“Em poucos quilômetros, eu já estava encantado com a paisagem.“

Meu desembarque na Normandia, norte da França, aconteceu na fria madrugada do dia 23 de agosto. Improvisei um café da manhã no chão da estação de trem, único abrigo que encontrei para o vento forte que cortava a madrugada, esperei o dia clarear e segui viagem.

Em poucos quilômetros, eu já estava encantado com a paisagem. Eram vastas planícies verdes, cobertas por plantações e criações de gado. Vacas e vilarejos com suas igrejas medievais foram surgindo por toda a ciclovia plana, asfaltada e reta que marca o trecho normando do Avenue Verte. Me sentindo seguro, e com a temperatura subindo ao longo do dia, tirei camiseta, luvas e até o capacete e fui pedalando tranquilo, tentando curtir cada segundo.

© Flávio Dagli

O mais difícil era achar alguém que falasse qualquer coisa em inglês. Por isso, tive que apelar para a boa educação e a simpatia para me comunicar, principalmente quando eu tinha que pedir que enchessem as minhas garrafas de água ou que me dessem orientações de caminho. A frase decorada previamente “Bonjour! Je ne parle pas français”, acompanhada por um grande sorriso, era a porta de entrada para todas as necessidades. E deu certo. Várias vezes me deram água gelada para me refrescar no calor de quase 30 graus. Isso sem contar o esforço enorme de praticamente todas as pessoas para me ensinar caminhos por meio de poucas palavras e muitos gestos.

Cheguei em Paris depois de seis dias na França. Chorando, finalmente diante da catedral de Notre-Dame, fiz uma celebração bem discreta e silenciosa do fim da primeira parte da viagem. Afinal de contas, eu sabia que ainda tinha muito chão até Barcelona, então era hora de recuperar as energias para recolocar o pedal na estrada.

Parte 3

Sudoeste da França

Depois de passar um dia inteiro derretendo no calor seco que fazia na capital francesa, peguei um trem até Toulouse, de onde começaria a segunda etapa da viagem até Barcelona (eu não tinha tempo para percorrer esses mais de 700 km de bike: o casamento da minha amiga não esperaria). Paguei uma taxa de 10 euros para embarcar a magrela, que foi muito bem acomodada num espaço logo ao lado da minha cabine.

Cheguei em Toulouse na manhã de 30 de agosto com um pouco de frio e chuva fina. Como depois descobri, a cidade, assim como todo o sudoeste francês, é totalmente diferente do que havia visto até então naquele país. A atmosfera mediterrânea, seja pelo clima mais abafado ou pelos edifícios de até três andares com suas sacadas discretas frente às ruas, me faziam sentir mais na Espanha do que na França.

Porém, o frio e o tempo chuvoso me fizeram desistir dos meus planos de fazer turismo na cidade e tratei de cair na estrada. Agora era hora de dar adeus às placas do Avenue Verte e seguir a rota traçada ainda no Brasil. Eu iria margear o Canal du Midi, um canal artificial inaugurado em 1681 para transporte de mercadorias.

No trajeto, me deparei com barcos com bandeiras de vários países passando ao meu lado, em geral tripulados por pessoas de meia idade, aparentemente curtindo as férias. Do caminho, também via plantações de girassóis e, mais adiante, inúmeros vinhedos, paisagens que faziam a viagem mais do que agradável enquanto, na ciclovia, eu cruzava com vários bicigrinos que seguiam o caminho dos Pirineus até Santiago de Compostela.

Depois de vários quilômetros, o solo de terra batida foi ficando cada vez mais irregular, fazendo com que a magrela, com pneus super calibrados e garfo rígido, pulasse intensamente. A coisa toda degringolou no segundo dia, quando eu não conseguia pedalar a mais de 12 km/h e via cada vez mais longe o alcance da meta de chegar a Barcelona pelas minhas próprias pernas (só me restavam sete dias).

Cheguei finalmente à linda Carcassonne e sua gigantesca e encantadora cidadela medieval depois de murchar os pneus e ver meu rendimento melhorar. Mas os trancos e barrancos já tinham me irritado demais. Por isso, abandonei a minha rota original e joguei a sorte para o Google Maps, que traçou um caminho me colocando em estradas movimentadas. Apesar dos carros voando a 90 km/h à minha esquerda, o resultado foi ótimo. Num asfalto liso como um tapete, atingi quase 30 km/h em vários trechos, mesmo com os quase 20 kg de roupas, comida, itens de camping e de sobrevivência.

© Flávio Dagli

“Uma viagem que com certeza marcou um ponto de virada na minha vida.”

Ao chegar em Narbonne, outra bela cidade histórica, dei início à parte litorânea da viagem. Foram três dias de pedal derretendo de calor pela costa mediterrânea. Ao final de cada dia, eu era recompensado com um belo e merecido banho de mar ou de piscina (sim, boa parte dos campings locais tem piscinas). Tirando o vento contrário, que quase me derrubou da bike algumas vezes, segui num ritmo tranquilo sentido sul, em direção à Espanha. Mal sabia eu que a moleza logo acabaria com a chegada dos temidos Pirineus, a cadeia de montanhas que divide a França e o país vizinho.

As subidas começaram logo depois da simpática, colorida e hiper turística cidadezinha costeira de Banyuls-sur-Mer. Fui em ritmo de tartaruga até chegar em Cerberè, o último município francês antes da fronteira. Eu não sabia que, vencida a primeira pirambeira, ainda teria que superar outras três até finalmente poder esticar as pernas em um camping catalão. E assim foi. Depois de um total de mais de 800 metros de subidas acumuladas, finalmente cheguei à Llançá, já na Catalunha. As minhas pernas nunca mais seriam as mesmas na viagem.

© Flávio Dagli

Parte 4

Espanha

Na Espanha, com exceção de um pequeno trecho, quase toda a viagem foi feita por estradas. Eu já tinha perdido o medo e minha pressa de visitar meus amigos em Barcelona acabou falando mais alto que a prudência. Felizmente, deu tudo certo.

Assim como ocorreu nos outros países, os motoristas me respeitaram o tempo todo. Mesmo quando eu estava no acostamento, sempre deixavam uma faixa livre entre eles e a minha bike na hora de fazer as ultrapassagens.

Mais uma vez, as paisagens eram lindas. O mar reluzente na costa ou os intermináveis vinhedos mais para dentro do país foram meus companheiros nesses últimos três dias de aventura.

No camping da cidade de Canet del Mar, o recepcionista foi claro: “agora só faltam 60 km para Barcelona”. Dormi como um bebê depois da que eu sabia ser a última cerveja do meu período de estrada. Na NII, rodovia nacional espanhola, voei baixo na reta final. Mantendo o mar sempre à minha esquerda, atingi uma média de quase 19 km/h, num último esforço das minhas pernas já acabadas.

Aos poucos a paisagem foi se tornando familiar. Praias que por muito tempo fizeram parte do meu dia a dia agora me traziam vários flashbacks. Fui vendo a aglomeração urbana ganhar força à medida que me aproximava da capital catalã até que, por volta das 13h do dia 06 de setembro, cheguei finalmente à Sagrada Família, o ponto final dessa aventura particular.

Dessa vez não chorei. Com um sorriso de orelha a orelha, liguei para os meus pais e para meus amigos no Brasil. Eu queria compartilhar a alegria por ter concluído aquela loucura de 1.375 km rodados em 18 dias.