Estavam em minha frente Tito Caloi e Caio Salerno. “Então Olinto, pode escolher!” Neste momento, meu dilema era parecido com o da maioria dos brasileiros que têm que escolher uma bicicleta para cicloturismo. Meus amigos alemães tem à disposição virtualmente o que desejarem em termos de bicicleta, podem inclusive mandar fazer um quadro com material e medidas únicas e escolher cada um dos equipamentos a ser colocado na bicicleta. Um produto assim chega a custar cerca de € 3.000,00.

Acredito que esta não é a realidade média do cicloturista brasileiro. Os catálogos da Tito Bikes e da Groove Bikes são um bom exemplo do que o mercado brasileiro oferece em bicicletas de qualidade. Gostaria de comentar as razões, alterações e cuidados que tivemos ao escolher a bicicleta para nossa viagem.

Material

Aço carbono, alumínio ou fibra de carbono?

O aço carbono é resistente e barato, mas seu peso o torna desaconselhável.

A fibra de carbono, ao contrário, é o material mais caro e leve de todos, entretanto me parece delicado para uma viagem. O quadro é feito para resistir até às provas mais duras de montanha, o problema é quando recebe impactos que não condizem com o pedalar, por exemplo: imaginem um quadro destes sendo transportado no topo de um ônibus no interior da Bolívia… Será que resistiria? Veja que até os apertos das peças em contato com o quadro devem ser feitos com o auxílio de um torquímetro para não provocar trincas. A diminuição no peso não me parece compatível com os riscos desnecessários que este material oferece.

Depois da volta ao mundo passei a utilizar quadros de qualidade feitos em alumínio e nunca tive problemas, apesar de não ser o material considerado ideal, acredito que seja, em nosso país, o de melhor custo benefício.

Freios

Após aprender mais sobre seu funcionamento, vejo os discos mecânicos como melhor opção. Percebi que são mais fáceis de regular que os V-brakes e não causam o desgaste e quebra prematura dos aros. Como desvantagem, percebi que o desgaste das pastilhas é mais rápido que o desgaste de sapatas de qualidade de um V-brake e, por fim, assumo o risco da dificuldade para encontrar peças de reposição.

Se sua bicicleta já possui V-brakes ou disco mecânico não vejo a necessidade de trocar, pois cada um tem vantagens e desvantagens, entretanto, desaconselho freios a disco hidráulicos pelo mesmo motivo dos quadros de fibra de carbono: suas vantagens são incompatíveis com os riscos que apresentam em uma viagem. Por exemplo: que tal se o cabo de freio dobra durante o transporte no avião? Claro, tudo pode ser consertado, mas deverá ter cabos reserva e óleo em sua bagagem. Todo esse risco de transtorno é para que mesmo? Para frear como uma bicicleta de downhill? Não sinto necessidade de tanto poder de frenagem.

Câmbio

Seguindo o mesmo raciocínio, uma marca líder de mercado pode não ser a melhor, mas optar por ela auxilia na hora de encontrar peças de reposição.

No geral, a longevidade não é a principal qualidade dos grupos de alta gama, que costumam durar pouco. Câmbios com muitas marchas só funcionam bem quando estão rigorosamente limpos e lubrificados, coisa rara em nosso estilo de viagem.

Optamos por um Shimano Acera de 27 velocidades, sendo que a coroa menor possui 22 dentes e a engrenagem maior da roda livre (catraca) possui 34 dentes. Esta combinação, juntamente com o aro 26, fornece a redução que necessitamos para pedalar carregados por altas montanhas.

Tamanho do aro

26, 27,5 ou 29? Bem, este tema me parece mais polêmico que a “pena de morte” ou a “legalização do aborto”…

O discutível desempenho, comodidade e conforto proporcionados por um ou outro tamanho de roda ficam em segundo plano diante da necessidade que um cicloturista tem de encontrar peças de reposição em uma grande viagem.

Nosso circuito passa por locais pouco desenvolvidos e o modelo mais estabelecido é melhor que o mais moderno, pois, em tese, será mais fácil encontrar peças de reposição, se necessário.

Não tenho “bola de cristal”, mas comungo com os que acreditam que o aro 26 continuará sendo fabricado, mas as bicicletas deste modelo virão com equipamentos cada vez mais simples.

Faz mais de 20 anos que viajo de bicicleta e pude facilmente resistir aos argumentos do Tito para escolher o aro 27,5, até o momento em que seu sobrenome fez diferença e me trouxe uma informação que desconhecia, abrindo minha visão para um futuro próximo. Ele disse: “Olinto, este número “27,5”, não é escolhido ao acaso… É o mesmo tamanho de aro das antigas Barra Forte”.

Apesar de ainda preferir o aro 26, vejo que a substituição pelo aro 27,5 não oferecerá grandes problemas, já que em caso de necessidade poderei encontrar aro, raio, pneu e câmara de Barra Forte com facilidade, anulando as supostas desvantagens do sistema moderno.

Ao final, escolhi o aro 26 pois acredito que ainda é o mais comum.

Assim que recebemos as bicicletas começamos os testes e trabalhos de preparação.

© Rafaela Asprino

Depois de pedalar por um tempo chequei os seguintes itens:

  • Parafusos: checagem e reaperto geral.
  • Câmbios: funcionaram perfeitamente sem a necessidade de qualquer ajuste, isso é raro em uma bicicleta nova.
  • Rolamentos: todos os rolamentos estavam macios e sem folga.
  • Rodas: no geral, as rodas novas vêm com os raios pouco apertados, apertei bem e centrei com cuidado cada uma delas com o auxílio do meu amigo Thosi.
  • Entre o aro e a câmara de ar existe um protetor que pode causar furos na câmara por ser de má qualidade ou estar mal colocado. No caso da Tito Bikes a fita protetora laranja funcionou perfeitamente.
© Rafaela Asprino

Alterações

  • Selim: acredito que o componente mais personalizado de uma bicicleta é o selim. Cada um tem uma preferência, e trocamos os originais pelos nossos.
  • Pneus: um cicloturista não deveria economizar na compra de pneus, principalmente os traseiros, que foram substituídos por Schwalbe Marathon XR 26-2,25.
  • Espelho retrovisor: apesar de ser um equipamento obrigatório por lei, é pouco utilizado pelos ciclistas brasileiros. Independentemente da lei, o espelho retrovisor é imprescindível para manter-nos seguros durante eventuais caminhos movimentados. Instalamos o espelho que costumamos utilizar em nosso dia a dia.

E agora, o item mais polêmico… Substituímos o amortecedor por um garfo rígido. Mas por que fizeram isso, Olinto?

Bem, vamos para um pouco de história… Fiz a volta ao mundo com uma bicicleta de garfo rígido, mas em todas as outras viagens utilizei amortecedores. Quando viajei pelo Peru, pela primeira vez utilizei amortecedores com blocagem de acionamento no próprio guidão. Percebi que se travasse o amortecedor em uma subida o rendimento era muito melhor, entretanto, em quase todas as descidas simplesmente esquecia de destravar. Logo compreendi que o amortecedor pode facilmente prejudicar e, em meu caso, ajudava tão pouco que nem percebia quando estava travado.

A melhora em dirigibilidade que o amortecedor oferece só é relevante quando estamos em uma velocidade que evito alcançar em uma viagem. Se deixo a bicicleta ganhar velocidade descendo por caminhos ruins, aumento o risco de acidente e posso comprometer o equipamento que carrego. E o “conforto”? Bem, não acho que iria mudar muito minha situação diante daquelas costelas de vaca que enfrentamos pelo caminho.

Na troca de um amortecedor por um garfo ganhei cerca de 1,8 kg. Prefiro carregar este peso em água ou comida.

Para adaptar o disco no garfo é necessário uma peça igual à utilizada no disco traseiro.

O garfo novo vem sem corte, com a espiga inteira (parte de cima do garfo). Com anéis alongadores pudemos alterar a postura de pedalar.

Mesa e guidão

A postura de quem pratica mountain bike é “agressiva”, pois subentende terrenos muito acidentados, pedras etc. Por isso uma bicicleta de montanha coloca o ciclista olhando diretamente para o chão à sua frente, o guidão é aberto para que o “momento” seja maior, conferindo mais poder a quem maneja. Este não é o caso em uma viagem de bicicleta, por isso optamos por mudar pequenas peças e conseguir uma postura melhor para o tipo de pedal que queremos.

Na “De Bike” de Bauru o Sr. José Arnaldo nos ajudou a conseguir a postura ideal. Trocamos a mesa original por uma mais alta e coloquei um guidão mais alto da Groove. A Rafa manteve o guidão original, só cortou as extremidades e instalou um bar end.

Estas pequenas e simples alterações foram cruciais para transformar a bicicleta de montanha em uma bicicleta de viagem. Em nosso caso, como costumamos pedalar por caminhos de terra com muitas dificuldades, uma postura entre o mountain bike e o touring bike é ideal. Nas fotos “antes e depois” podemos observar melhor o resultado.

Mas Olinto, não acha que a bicicleta ficou estranha? Será que não é perigoso esta espiga tão alta?

Nas fotos ao lado do “antes e depois” podemos observar melhor o resultado./ Mesas da bicicleta de Rafaela, Olinto e a original, respectivamente. © Rafaela Asprino
© Rafaela Asprino

Bicicleta e roupa estranha não são problemas para mim, afinal sempre estou em um lugar com usos e costumes diferentes do meu. Me acostumei a ser visto como estranho, melhor que utilizar uma bicicleta boliviana.

Esta é a segunda viagem que utilizo toda a extensão da espiga do garfo rígido, acredito que para o uso que faço, ela não sofre grande esforço. No começo parecia estranho por ser algo novo, mas logo reconheci o conforto. Aliás, esta é a palavra-chave, cada um deve buscar uma postura “confortável” para viajar, pois passará muito tempo nessa posição.

Peças que acrescentamos à bicicleta original:

Me acostumei a ser visto como estranho. Melhor que utilizar uma bicicleta boliviana. © Rafaela Asprino

Descanso ou pezinho: esse acessório auxilia muito enquanto guardamos o equipamento nos alforjes e em paradas durante o percurso, sua utilidade compensa o peso extra. Para os que argumentam que sempre existe algum local para apoiar a bicicleta, convido para um passeio no deserto e logo verão que não é bem assim.

Instalamos pedaleiras nos pedais. © Rafaela Asprino

Pedaleiras: costumamos fazer caminhadas e preferimos carregar somente um bom calçado que sirva para caminhar e pedalar, por isso instalamos pedaleiras nos pedais.

Transformamos nossas bicicletas em um verdadeiro caminhão pipa. © Rafaela Asprino

Bagageiros: uma das partes mais importantes para uma viagem de bicicleta. Buscamos um modelo de tubo, com solda forte e com apoio extra para evitar que o alforje torça e encoste na roda.

Bagageiro: buscamos um modelo de tubo, com solda forte e com apoio extra para evitar que o alforje torça e encoste na roda.© Rafaela Asprino

Suporte de garrafas: prevíamos grandes travessias por locais sem água. Alguns colegas, principalmente os que carregam dois pares de alforjes, costumam carregar um grande galão sobre o bagageiro. Nós optamos por suportes especiais para garrafas PET de até dois litros. Suportes de qualidade são caros e difíceis de encontrar no Brasil. Um cicloturista mais hábil poderá adaptar um com o suporte para extintor de incêndio de Kombi e um par de abraçadeiras.

Com isso conseguimos transformar nossas bicicletas em um verdadeiro caminhão pipa, e facilmente distribuímos o peso de 8 litros de água por toda a bicicleta. Nas condições de nossa viagem este estoque chegou a durar por três dias.

Parafuso do bagageiro

Este equipamento tão ínfimo causou o maior problema mecânico de minha última viagem. Não consegui retirar o parafuso e tive que improvisar, veja abaixo como ficou.

Pesquisei medidas para evitar este problema. Meu amigo Fabio Fes disse que é provável que a folga do parafuso tenha ocasionado a quebra. Se tivesse pelo menos utilizado arruelas de pressão manteria a pressão do parafuso. Apesar de sempre revisar os parafusos, é provável que ele esteja certo, mas acredito que se o parafuso fosse mais forte isso também não aconteceria.

No geral, os parafusos utilizados em uma bicicleta são de inox. Sempre pensei que o inox fosse um material “melhor” e por isso mais forte que o aço carbono comum. Depois de uma pesquisa, descobri que o aço carbono (não inoxidável) pode ser mais resistente que o inox comum.

Um parafuso de qualidade geralmente tem números marcados nele. Num parafuso de inox os números são referentes à suas propriedades inoxidáveis, nos parafusos de aço carbono os números são referentes à sua “força” (tração nominal e resistência ao escoamento).

Para não complicar, quanto maior o número mais forte fica. Para ter uma base, um parafuso automotivo costuma ser 8.8 (8 tração nominal e 8 resistência ao escoamento). Na foto a o parafuso da esquerda é automotivo (8.8), o parafuso que está em cima é o que prende o adaptador do freio ao quadro (10.8) e o que está do lado direito é o parafuso que encontrei para prender a base do bagageiro (12.9), junto com as arruelas de pressão. Como diz o ditado do interior, “cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça”.

© Rafaela Asprino

Dicas:

  • Geralmente as bicicletarias não têm este tipo de parafuso, busque em uma casa especializada em parafusos, leve uma porca para encontrar o parafuso que deseja com a rosca correta.
  • Geralmente um parafuso de aço carbono com cabeça para chave allen é bem forte.
  • Cuidado no aperto, um parafuso desses é mais forte que o quadro e pode destruir a rosca se for excessivamente apertado.
  • Não sendo inoxidável, o parafuso requer cuidado específico, depois de um tempo pode oxidar. Se precisar remover o parafuso utilize óleo desengripante para não comprometer a rosca do quadro.

Terminados estes trabalhos, considero que a bicicleta está pronta, só falta o resto… Afinal, em uma viagem de aventura existem outros equipamentos que garantem a sobrevivência e bem estar, pretendemos falar deles numa outra oportunidade.

© Rafaela Asprino

Para os que argumentam que sempre existe algum local para apoiar a bicicleta, convido para um passeio no deserto e logo verão que não é bem assim.