Duas amigas encararam uma aventura cicloturística pelo Caminho dos Anjos, em Minas Gerais, um percurso de 240 km em cinco dias.

No carnaval de 2014 a folia foi diferente. Cris e eu resolvemos fazer uma viagem de bicicleta. A proposta era percorrer cerca de 240 km passando por várias cidades da linda Minas Gerais, percorrendo o trajeto chamado Caminho dos Anjos. Feitas as análises pertinentes, decidimos encarar o desafio. Seria a primeira vez em que pedalaríamos uma distância tão grande em dias consecutivos.

Começamos o planejamento e os treinos, simulando as subidas de Minas. O que inicialmente era apenas uma vontade – fazer uma viagem de bike – foi tomando proporção e criando um sentido maior dentro da gente. Conforme compartilhávamos nosso projeto com as pessoas, o que não faltavam eram afirmativas a respeito da nossa coragem e loucura. Coragem pelo desafio dos 240 km em que boa parte seriam subidas pesadas, e loucura porque decidimos encarar esse projeto sozinhas sem nenhum carro de apoio.

Até entendemos o questionamento das pessoas: afinal, é um tanto preocupante duas mulheres pedalando no meio do mato, sozinhas, durante cinco dias, completamente expostas ao acaso. Mas é isso! O acaso é um tanto sedutor. Nos munimos das prudências necessárias para suprir contratempos previsíveis e com muita energia positiva nos entregamos ao Caminho, ofertando toda a nossa disposição, alegria e desejo de superação. Em contrapartida, fomos com os corações abertos para receber o que “ele” quisesse nos oferecer.

© Reneide Campelo

Primeiro dia

A sensação gostosa das primeiras pedaladas, misturada com a ansiedade do que o novo traria, fez com que apreciássemos cada metro percorrido da pequena Passa Quatro, município charmoso e acolhedor que honra a tradição do bem receber de Minas Gerais. Não demorou muito até avistarmos a primeira seta; os caminhos de peregrinação geralmente são sinalizados com setas indicativas da direção a ser seguida. Oficialmente, “entramos no Caminho”. Percorremos 20,2 km e paramos no Restaurante do Espanhol para almoçar. Após percorrermos 36,41 km chegamos ao sítio Moana, onde fomos muito bem recebidas pela Lily e pela Solange. Jantamos com estas duas cariocas, donas do sítio, que moraram muitos anos no México, mas resolveram voltar para o Brasil e encontrar descanso e vida com qualidade na pacata Itamonte. Hoje elas se dizem felizes cuidando da rotina do sítio, dando aulas de biologia e inglês e recebendo peregrinos. Ficamos em um chalé delicioso a beira de um riacho que embalou nosso merecido descanso.

© Reneide Campelo

Segundo dia

Partimos de Itamonte em direção a Aiuruoca, com parada para almoço em Alagoa. Foi um dia longo. No período da tarde, a corrente da minha bicicleta estourou. Paramos, sacamos nossas ferramentas e começamos a tentar lembrar da aula que tivemos sobre troca de elos de corrente. Até então, não havíamos cruzado com ninguém pelo Caminho. Mas já que o Caminho é “dos Anjos, eis que surge uma dupla inusitada passando bem nessa hora por nós: o Cráudio e o Chevinho. Em pleno carnaval, normal que estes anjos estivessem um tanto, digamos, alcoolizados. O Cráudio prontamente se posicionou para resolver nosso problema: “gente, preciso de um alicate e um martelo”. Com os olhos bem arregalados e um tanto entorpecida pelo aroma alcoólico, perguntei: “você precisa do que?”. Com simplicidade e muita vontade de ajudar, Cráudio explicou: “seguro com o alicate, dou uma martelada e essa corrente já entra no lugar”. Nem sabia mais o que dizer. Até que Chevinho subiu na moto e foi buscar ajuda. Ele trouxe o Julio, que também chegou “bastante alegre”. Resolvido o problema, seguimos viagem.

A parada durou um pouco mais de uma hora, tempo suficiente para fazer a viagem terminar no escuro da noite. Essa parte da viagem foi tensa, pois só tínhamos as lanternas das bicicletas para iluminar o caminho e a rota de orientação. Após 55 km, chegamos a Aiuruoca, na pousada do Gilberto.

© Reneide Campelo

Terceiro dia

Este foi o dia mais difícil. Na parte da manhã, pegamos uma dura subida de 9 km com bastante pedra solta. Depois, chegamos a um ponto em que era praticamente impossível ficar sobre a bike, de tão inclinadas que eram as subidas. Foram 4 h de pedal até chegarmos ao Recanto das Bromélias, um lugar lindo no alto da montanha, nossa parada para o almoço.

Na linha do horizonte apontavam nuvens carregadas. Não demorou e a chuva começou. E agora: sair ou esperar? Sair! Capa no alforje, vestimos o corta-vento e pé na estrada. A chuva não nos acompanhou por muito tempo. Chegamos ao ponto mais alto do Caminho dos Anjos. Que visual lindo.

Depois vieram descidas muito íngremes e perigosas com muita pedra solta e crateras enormes abertas pela erosão. Muitos trechos semelhantes às descidas de downhill. Foram horas de tensão psicológica e muscular. A noite começava a avançar, o céu estava lindo e estrelado, porém, ainda tínhamos muitos quilômetros para percorrer e não deu para curtir muito. As subidas duras não aliviavam. Depois de 32,8 km, tomamos a decisão de pedir pouso em um pequeno sítio chamado Casa Rosa, que costuma receber peregrinos. Era a única casa no meio do nada e torcemos para ter alguém em casa. Ficamos aliviadas quando Lúcia nos recebeu maravilhosamente bem. Era tudo muito simples, mas divinamente acolhedor, e nos sentimos em casa.

© Reneide Campelo

Quarto dia

O pior já tinha passado, mas tínhamos bastante chão pela frente. O cansaço e as dores começaram a aparecer. Depois de quinze minutos de pedal, perdi completamente o freio, saldo do downhill do dia anterior. O jeito foi descer e continuar a peregrinação empurrando a bicicleta. Chegamos à Parada do nadinho, no Espraiado do Gamarra, lugar em que pretendíamos ter chegado na noite anterior. Novamente, como que por “providência divina”, cruzamos com um grupo de ciclistas e um deles regulou o freio da minha bike. Depois de 59 km, chegamos a São Lourenço. Que sensação boa: 80% do trajeto estava concluído.

Quinto dia

O pedal da manhã foi maravilhoso. Paisagem linda e plana com algumas descidas compridas que nos permitiu curtir muito e acelerar o ritmo desfrutando do vento gostoso no rosto. Paramos para almoçar no Pesqueiro 13 Lagos, em Virgínia. Era a reta final: que ansiedade, que alegria, que cansaço. A tarde nos reservou mais paisagens deslumbrantes e uma parada em uma fazenda para abastecer nossas caramanholas de água. Os últimos quilômetros foram de descidas. De repente surgiu a tão esperada placa: Passa Quatro. Quantos sentimentos misturados: emoção, dores, alegria… Depois de 240 km percorridos, finalmente chegamos.

Certamente, este carnaval ficará gravado na memória. Antes de planejar esta viagem, 240 km parecia uma quilometragem muito distante de ser cumprida. Desejar é importante. Talvez não nos faltem vontades e sonhos, mas planejar e dar os primeiros passos em direção à meta traz o impulso vital e determinante. Nós pedalamos os 240 km! Qualquer realização depende do tamanho da nossa vontade. Desejo que essa tenha sido a primeira de muitas outras viagens de bicicleta. Que essa realização impulsione tantas outras em nossas vidas, e que venham os desafios, porque “o que se leva da vida é a vida que se leva”.