Como a bicicleta pode ajudar a transformar os parâmetros para sentir o prazer das coisas simples, como a delícia de um banho quente depois de uma pedalada em um dia frio.

Ao contrário de nossos amigos europeus, a chegada do inverno não é motivo de pesar. Vivemos em um país tropical e em várias regiões brasileiras o inverno é uma das estações mais agradáveis, pois o calor não é tão intenso e principalmente para quem vai viajar de bicicleta é ideal: chove pouco, os dias tem temperatura amena com céu azul e a noite esfria para que se possa dormir mais confortavelmente.

Morei dez anos em Curitiba, a capital mais fria do país. Com estações acentuadas ficava fascinado ao observar a diferença entre elas e posso dizer que não são muitos que gostam do frio.

Curitiba se transforma com o calor, as pessoas saem mais na rua, as moças usam menos roupa e parece que todos estão mais felizes. Observei o mesmo nos países europeus. Depois de passar o inverno todo encorujados dentro de confortáveis casas com calefação, no verão, meus amigos europeus queriam ficar o tempo todo fora de casa e aproveitar os longos períodos de claridade solar. 

Analisando melhor percebi que meu fascínio estava ligado ao fato de ver e sentir o diferente. O europeu não compreendia por que eu queria passar o inverno pedalando pela Europa. Ora, pelo mesmo motivo que a estação mais concorrida de Gramado é o inverno: pessoas de todo país vão para lá na esperança de ver neve e ter uma experiência diferente.

© Rafaela Asprino

Todo ano a televisão faz a mesma matéria mostrando os sorrisos de turistas totalmente encapuzados brincando com a geada grossa que caiu na madrugada. As melhores matérias são aquelas onde o repórter entrevista um nordestino jogando bolas de neve. Claro, o sorriso dele é sempre mais brilhante, por razões óbvias.

O frio na viagem dá uma pitada a mais de aventura, pois agrega um desafio, um obstáculo extra e para quem gosta de ficar nas montanhas é uma constante. Mas mesmo quando tinha uma vida sedentária em Curitiba e ainda treinava para um dia poder viajar de bicicleta, sentia algo especial no frio que está além da preferência.

Quando acordava cedo no final de semana para treinar ficava o dia todo fora. Na região de Curitiba é comum que durante todo um dia a cor predominante seja o cinza, mas existe um ditado muito certo; “Névoa baixa, sol que racha”. Ou seja, na melhor das hipóteses começava o dia no frio e na névoa densa que tocando meu corpo transforma-se em gélidas gotículas. Em poucas horas o sol vinha finalmente reaquecer o corpo lentamente até chegar aos ossos. Logo a temperatura aumentava e tinha que parar para retirar as tantas roupas que me cobriam. À tarde o processo acontece ao reverso e voltava a me cobrir.

Lembro-me claramente de que quando treinava no final de semana, ao voltar para casa algo estava diferente. Tomava banho no mesmo local, com o mesmo chuveiro, sentava no mesmo sofá e preparava um jantar costumeiro, mas tudo parecia ter um sabor diferente, pois minha percepção mudava.

“Se tivesse optado por ficar em casa, logo o conforto do meu aconchegante lar seria como uma prisão que me impõe através de uma preguiça crônica a ideia de que está frio lá fora e não é bom para pedalar.”

© Rafaela Asprino

O frio do dia fazia com que a água quente do chuveiro se transformasse em uma carícia, uma massagem tirando a tensão da musculatura que involuntariamente tenta se aquecer pelo atrito da contração. O consumo de energia do exercício aumenta com a necessidade de aquecer o corpo e a fome amplia o paladar.

Vários músculos foram utilizados ao máximo, o ácido lático produzido me fazia sentir pequenas dores induzindo à imobilização enquanto meu organismo começa o lento trabalho de recuperar e aumentar a capacidade de todo o sistema. Para isto meu corpo entregava uma descarga de endorfina e sentia alegria no torpor de simplesmente ficar sentado em meu sofá.

Como é fácil perder a consciência das coisas. Os parâmetros do homem moderno têm sido tão confortáveis que perdemos a noção do que é realmente necessário para nosso contentamento. Nada melhor que trocar um pouco os parâmetros para voltar a sentir o prazer de coisas simples como sentar no sofá e ver um bom filme.

Se tivesse optado por ficar em casa, logo o conforto do meu aconchegante lar seria como uma prisão que me impõe através de uma preguiça crônica a ideia de que está frio lá fora e não é bom para pedalar. Ora, quem costuma viajar de bicicleta sabe que nunca chove o dia inteiro, nunca é frio o dia inteiro e sempre pode ficar mais quente enquanto estamos pedalando.

Pois são justamente as dificuldades enfrentadas durante o dia que fizeram aquele conforto me libertar ao invés de aprisionar, além de devolver sabor às coisas que já não era capaz de sentir.

Antes de começar meus treinamentos, no final do domingo, ao ouvir a música do Fantástico sabia que mais um fim de semana estava acabando. Lembrava-me de tudo o que queria fazer, mas não deu certo. Também vinha à mente as tantas coisas que me esperavam para serem resolvidas no escritório, acho que posso classificar meu sentimento como deprimente.

Quando comecei a treinar, nem a música do Fantástico conseguia me deprimir, pois o torpor da endorfina trazia a sensação de que, mesmo que não tivesse feito tudo que queria no final de semana, ganhara o dia com meu treino.

Você talvez nem goste de viajar de bicicleta, mas cada vez que encara um clima difícil com sua bicicleta o sentimento é igual. Quando volta para casa é como se tivesse ganhado o dia ao contrário de quando cede à preguiça e fica o dia todo enfurnado. A concentração de esforços nas dificuldades faz com que desconcentremos dos problemas do dia a dia de forma mais eficiente que quando nos dedicamos somente ao relaxamento puro e simples.

É incrível como surgem soluções durante as pedaladas, após um treino os problemas parecem menores ou mais simples. Na física, a inércia é uma propriedade da matéria que tende a mantê-la em seu estado, para vencê-la sempre é necessária alguma força. O ciclista sente isto todas as vezes que tem que arrancar e parar a bicicleta. Uma vez vencida a inércia do estático a tendência é que o corpo siga em movimento.

Da mesma forma, pode ser necessário um pouco de força no começo para pedalar no inverno, mas acredito que devemos sempre lembrar da importância de sairmos da zona de conforto, inclusive para poder apreciar seu valor.

© Rafaela Asprino

“Quem costuma viajar de bicicleta sabe que nunca chove o dia inteiro, nunca é frio o dia inteiro e sempre pode ficar mais quente enquanto estamos pedalando.”