É muito provável que a maioria de nós já teve o prazer de pedalar em alguma fase da vida.

É muito comum encontrarmos aqueles que ganharam quando criança o primeiro veículo de tração humana que pode ter sido um triciclo, tico-tico, velotrol (diferentes nomes para o mesmo objeto) daqueles de três rodas, e isso exclui os carros e motos em miniatura, elétricos ou não.

Esses presentes têm uma função muito clara na nossa infância. São apenas mais um brinquedo, mas bem que poderiam passar a ser entendidos como veículos de tração humana ou, mais acertadamente, objetos a serem utilizados como meio de transporte ao longo da vida. Acontece que do tico-tico se passa a uma bicicletinha de rodinhas, depois a uma bicicletinha sem rodinhas, depois a uma bicicleta maior, e daí… Ao carro zero quilômetro.

Não é assim sempre. Digo isso porque uma parte de brasileiros e brasileiras que não passa por esse processo deve ser considerada. Mas, até o carro zero tem se tornado realidade para um número cada vez maior de pessoas que no tempo presente encontra a opção de se endividar em pequenas parcelas para o resto da vida. Então, essas pessoas não pensam duas vezes antes de largar a triste saga do transporte público coletivo (ônibus, metrô etc.) e ingressar no eldorado do carro zero, do sonho da criança que cresceu e abandonou sua querida bicicleta. 

Ainda, dizem que o problema da mobilidade urbana (esse é o nome que se dá para o deslocamento de pessoas e produtos nas cidades) é o transporte público de má qualidade. Somados a isso o caminho natural para o “meu carro” e o triste distanciamento da condição humana de caminhante, ou pedalante (ambas as situações movidas a feijão, banana etc.), vamos na direção de cidades cada vez mais inóspitas e desumanizadas.

O que seria de nós se cada um na cidade tivesse um carro e usasse-o como modo exclusivo de deslocamento da maneira como quisesse? Será que iríamos conseguir sair do lugar? Ademais, o que dizer da poluição sonora e do ar, do índice crescente de acidentes no trânsito, dos espaços cada vez mais destinados às vias e cada vez menos destinados às áreas de lazer, do desencontro com os demais e com a própria cidade por parte daqueles que se recolhem entre o vidro fumê e o ar-condicionado?

Nesse contexto surge a bicicleta como uma alternativa – enquanto meio de transporte, registre-se, ela é uma opção e não uma alternativa – para esses problemas de degradação das cidades. Porém, apesar de seu uso como meio de transporte estar na moda a grande maioria de nós acha lindo, mas tem pouca coragem ou iniciativa de fazê-lo.

Voltemos ao ponto do abandono da querida bicicleta!

Conheci recentemente duas cidades com culturas diferentes (nem melhores nem piores, apenas diferentes) onde a bicicleta é considerada como algo indissociável da vida de cada cidadão: Amsterdã, na Holanda, e Copenhagen, na Dinamarca. A visibilidade que as bicis (bici: um trato carinhoso e bem brasileiro) ganham nas ruas pode parecer surreal para qualquer desavisado. Acontece que essas são duas das cidades do mundo mais amigas da bicicleta. E isso não é apenas uma vocação, mas uma realidade que só se tornou possível com o engajamento de todos os habitantes, desde os governantes até aqueles que ensinam o significado da bicicleta para os seus filhos. Lá as crianças desde muito novas, na idade dos nossos pequenos do ciclo 1, ganham a bicicleta de equilíbrio, que nada mais é que uma bici de madeira sem pedais. Com ela as crianças iniciam suas habilidades de ciclistas desde cedo a fim de continuar a tradição de seus pais que não abandonaram a querida bicicleta na fase adulta. O equilíbrio é o primeiro passo para o aprendizado que dispensa os triciclos e as rodinhas.

Tanto em Amsterdã quanto em Copenhagen, o número de viagens diárias realizadas em bicicleta gira em torno de 50% do total. Nessas cidades existem condições muito favoráveis de ambiência urbana e convivência respeitosa no trânsito, e, pode-se dizer que tanto elas quanto seus cidadãos estão preparados para o uso seguro, versátil e eficiente da bicicleta como meio de transporte.

A principal distinção entre as duas cidades europeias e as cidades brasileiras, em termos de forma urbana, é a extensão do território. De certa maneira isso dificulta aqui o uso da bicicleta como modo principal de transporte para vencer grandes distâncias, mas não o seria se houvesse integração com os demais modos de transporte. Esses fatores somados a outros fazem com que o número de viagens diárias realizadas em bicicleta no Brasil gire em torno de 7% do total. Já a principal semelhança conosco é a quantidade de bicicletas por habitante. O que pode fazer de nós também um país das bicicletas, mesmo sem nos darmos conta disso, bem como pode comprovar que as nossas ficam mesmo guardadas.

Mal comparando Brasília com as duas cidades europeias, pois de certo há uma série de condições estruturais que as diferenciam, gostaria de falar da minha experiência como ciclista nessa cidade. Antes morava em outra de 200 mil habitantes (quase 1/10 de Brasília) onde havia infraestrutura cicloviária e melhores condições de ambiência urbana, em função disso tinha a bicicleta como meu modo exclusivo de transporte. Chegando a Brasília usei de um princípio estratégico para continuar usando a bicicleta: morar perto do trabalho. As primeiras tentativas foram amedrontadoras diante do trânsito enlouquecido e da constatação de que Brasília era mesmo uma cidade dos automóveis. Felizmente a vontade inicial prevaleceu. Passei a usar diferentes táticas de comportamento e me adaptei ao trânsito (obedecendo às regras do Código de Trânsito Brasileiro) fazendo com que a bicicleta voltasse a ser meu principal (não mais exclusivo) modo de transporte. Sim, é possível. Porque não contar para as nossas crianças que a bicicleta pode ser entendida como veículo, e que podem optar por ela por toda a vida?