É sobre a cidade

No início do século XX foi construída uma via elevada em San Francisco, Califórnia, para os ciclistas pedalarem livres e sem causar problemas para os pedestres. Um viaduto leva e traz exatamente pelo mesmo caminho, entrando e saindo por onde quiseram os construtores, simples assim. Criticado e pouco usado, o viaduto foi colocado abaixo pouco tempo depois. 

Algumas décadas depois quiseram construir na mesma San Francisco e no mesmo local da via elevada para ciclistas, uma outra via elevada que cruzaria toda a cidade para dar continuidade e fluidez ao trânsito das autoestradas. A gritaria foi geral e pesada e o projeto virou exemplo de absurdo urbano não realizado. 

Nas duas situações, o critério de avaliação aplicado foi impróprio, para dizer o mínimo. Vias elevadas direcionam segregando o trânsito, portanto segregando as pessoas, e são uma interferência na paisagem desagradável, uma poluição ambiental ruim.

Em São Paulo, Brasil, no início dos anos 70, com a confirmação da construção do famigerado Minhocão, que faz a ligação do trânsito leste-oeste, houve uma pequena gritaria silenciosa, inglória e inócua contra, alertando sobre os futuros problemas que seriam gerados no entorno e para o Centro de São Paulo. A maioria dos paulistanos aprovou e segue aprovando a obra, recusando-se a reconhecer o desastre, e põe desastre nisto, e os custos que a obra impôs para a cidade. 

Na mesma São Paulo a implantação de monotrilho como transporte de massa sofreu pesadas críticas nos bastidores e entre paulistanos mais interessados e instruídos. Os questionamentos apresentados contavam com bons critérios contra, baseados em inúmeras outras experiências internacionais. A capacidade de convencimento dos que venderam os projetos e a pressão popular por mais transporte de massa a qualquer custo pesaram na aprovação dos projetos e no implementar monotrilhos. Agora, com todos os problemas que não param de surgir, menos capacidade de transporte que a propaganda, falhas constantes no sistema, e obras que não terminam mais, ficou claro que a opção foi um grosseiro erro. O mais interessante é que o próprio Geraldo Alckmin, na época governador de São Paulo que autorizou o projeto do monotrilho para Congonhas, reconheceu que a decisão foi o pior erro que fez em sua vida pública.

…é sobre a cidade, portanto é sobre a população, portanto é sobre todos e sobre cada um. © AdobeStock

A primeira ciclovia implantada em São Paulo foi na avenida Juscelino Kubistchek, específica para lazer, começava e terminava em lugar nenhum, enquanto existiu ficou às moscas, e os ciclistas até festejaram seu desaparecimento com as obras do futuro Boulevard JK. 

Pouco depois de iniciadas as obras, Luiza Erundina, prefeita de São Paulo, mandou parar e enterrar o que já havia sido feito. Morria ali a transformação da avenida JK em dois níveis, com a via expressa correndo subterrânea e a local fazendo o cruzamento das ruas, facilitando a vida de pedestres e integrando bairros. Muitos anos mais tarde, em entrevista, Erundina afirmou que aquele foi um erro que nunca deveria ter cometido.  Hoje volta-se a falar no retorno do projeto Boulevard JK.

Anos mais tarde, volta-se a pensar na bicicleta e oficializa-se o primeiro sistema cicloviário paulistano. Aos poucos foi sendo implementado com trechos desconexos, ciclofaixas nas calçadas que tinham cabines telefônicas, postes, árvores e outros obstáculos mais no meio do caminho demarcado por tinta vermelha. Uma das ciclovias acabava literalmente na porta de entrada (pintada de vermelho) de uma residência particular próxima ao Parque Ibirapuera. Muitos ciclistas achavam o máximo, deram total apoio, viam um futuro ali, que estávamos no caminho certo.

Qual o critério adotado?

É inegável a importância que o automóvel teve em todo o processo de estabilização social e econômico nas décadas subsequentes. © AdobeStock

Automóvel: os critérios colocados dentro dos seus devidos contextos

A produção em massa, o baixo custo e a funcionalidade do Ford T fez o planeta sair da época dos cavalos e carroças, impulsionando uma mudança social e econômica mais profunda até a que os trens trouxeram.

Por razões macroeconômicas e estratégicas, houve um fortalecimento da indústria de automóveis no pós-Segunda Guerra Mundial. Devido a urgente necessidade de fomentar a movimentação de riquezas para reconstruir a economia mundial arrasada, o automóvel foi naquele momento a opção mais acertada. Quando a economia mundial voltou a ter certa estabilidade, o automóvel já fazia parte de boa parte da vida da população que via nele bem mais que uma saída para a liberdade do futuro. É inegável a importância que o automóvel teve em todo o processo de estabilização social e econômico nas décadas subsequentes.

Nas décadas de 60 e 70, as cidades começaram a receber de forma agressiva e com critérios duvidosos melhorias que visavam única e exclusivamente facilitar a vida dos proprietários e usuários destes mesmos automóveis. Foi maldade? Sim. E não. De maneira simplista, foi uma espécie de miopia pandêmica causada pelo excesso de entusiasmo, que só quem viveu aquela época consegue entender. O planejamento das cidades, portanto da vida de toda população, acabou reduzido a facilidade da circulação de uma minoria de motoristas, aliás, diga-se de passagem, com o explícito ‘ok’ de praticamente toda a população, mesmo os que não tinham um automóvel; então o sonho de consumo de A a Z, talvez só menor que o da casa própria, repito, talvez. 

Se durante a guerra, faltava tudo, inclusive comida, na paz sobrou o automóvel. Através dele tudo foi, era, deveria ou poderia ser possível. Se houve populações inteiras que durante os seis anos de guerra comeram praticamente só repolho, por exemplo, no pós-guerra o automóvel pôs ao alcance praticamente tudo que a paz podia oferecer. Com isto, muitos abusaram das vantagens do automóvel criando os mais diversos problemas para as cidades, do simples estacionar onde bem entendesse ao desrespeito completo para com os pedestres, velhos, crianças e ciclistas, para não dizer muito desrespeito com todos os outros, inclusive motoristas.  

Em 1972, Amsterdam gerou uma revolta popular para frear os frequentes atropelamentos até de crianças. Ali começava, e/ou pelo menos ficaria público, o movimento que daria força aos pedestres e usuários de bicicletas e que frearia o uso desenfreado e irracional do automóvel. Com ele a cidade começou a ser repensada, pelo menos nos países mais civilizados onde a prioridade era o cidadão. De uma certa forma foi neste momento que começou a ficar claro para a maioria que é sobre a cidade, portanto é sobre a população, portanto é sobre todos e sobre cada um.

A mudança na qualidade de vida nas cidades vem vindo aos poucos, bem aos poucos, num processo bem mais lento que o necessário, melhor, que o urgente. Nem mesmo os “felizes” proprietários de automóveis aguentam mais os malditos congestionamentos, a falta de estacionamento, o perder horas de convívio com a família e amigos, o perder dinheiro parado. Este “basta” abriu espaço na sociedade para conversar, discutir e buscar saídas, repensar os critérios do que deve ser a vida de cada um e a função da cidade. 

Transportes coletivos, transporte de massa, metrô, palavras mágicas para mudar a cidade, mas o problema é que tudo isto é para médio e longo prazo. Muitos vêm optando por sair do automóvel e dos eternos congestionamentos “já”, e tantos descobriram que caminhar quarteirões, em alguns casos muitos, era mais rápido, gostoso e sadio que ficar estancado na lata de sardinhas. Bicicleta? “É muito perigoso”, diziam, como muitos ainda continuam dizendo. Aos poucos pedalar para o trabalho começou a se tornar realidade para uns gatos pingados, depois para mais gente, e assim, entre o muito perigoso e a vida maldita do congestionamento, a decisão foi ficando cada dia mais fácil e comum, porque não dizer sensata.

O melhor planejamento para a cidade sempre tem que partir do planejamento para o coletivo… © AdobeStock

Os que queriam pedalar ou já pedalavam gritavam “Sem ciclovia não dá!”. Deu. Melhor, dava, dá, sempre deu. Se tinha gente que se movimentava pedalando por dentro dos bairros para chegar na ciclovia é porque dava, sempre deu. Qual foi o critério de avaliação para querer ciclovias? “Sem ciclovia não dá!”. Não dá?

A bicicleta é importante para a melhoria do sistema de transporte da maioria das cidades? Sem dúvida sim, mas definitivamente a bicicleta não consegue ser a solução final e definitiva, nem mesmo em cidades onde a voz do povo diz que só tem bicicleta, como as da Holanda, Amsterdam em particular, o desejado “paraíso das bicicletas” segundo a voz deste mesmo povo. A verdade inegável é que nestas cidades da bicicleta o transporte também é realizado por veículos motorizados e maioria da população é pedestre, dentre outros. Ou seja, são cidades de todos, inclusive do automóvel; assim foi, assim é e assim será. “O automóvel veio para ficar, goste ou não goste”, disse alguém com conhecimento.

Mudar a cidade demanda critérios realistas. © AdobeStock

Definitivamente não existe uma cidade da bicicleta, mas cidades com uso intenso da bicicleta, que é o desejável. Parece uma sutileza, um erro inconsequente de expressão, mas não é. Mudar a cidade demanda critérios realistas. 

O melhor planejamento para a cidade sempre tem que partir do planejamento para o coletivo, para a cidade com um todo e em todos seus detalhes, respeitando o indivíduo, o cidadão. Quanto mais detalhado for, quanto mais amplo for, melhor para todos e para o objeto do planejamento.

O sistema cicloviário não pode e não deve cometer os mesmos erros cometidos pelos entusiastas do automóvel. Diferente de épocas passadas, quando o automóvel se transformou em rei, em alguns casos em imperador, hoje não há mais espaço físico, urbano, social e monetário para errar. Mais, há o novo, crucial e porque não dizer vital, fator ambiental que precisa ser corrigido, o que muda completamente o jogo. Fazer mal feito, a partir de critérios emocionais, é praticamente inaceitável.

…são cidades de todos, inclusive do automóvel; assim foi, assim é e assim será. © AdobeStock