Estrada Real

A Estrada Real (ER) é um sonho para qualquer cicloturista. Montanhas, estradas de terra, uma paisagem exuberante e histórica para ser percorrida pelos amantes das duas rodas.

© Victor Hugo Guidini

Resolvi fazer o percurso durante minhas férias de 15 dias, na temporada de chuvas, em dezembro. Fiz uma preparação boa para o trajeto, pedalando uma média de 350 km por semana por todos os tipos de terreno. Quando cheguei a Diamantina, onde iria começar o Caminho dos Diamantes, já estava chovendo muito, por isso, fiquei no hotel em frente à rodoviária mesmo. Aproveitei o dia para descansar no quarto e desfrutar da maravilhosa comida mineira, que lá é apenas chamada de comida.

Saí às 08 h 30 min do hotel com uma fraca chuva. Logo encontrei o primeiro marco da Estrada Real (ER) – eles iriam me acompanhar pelos próximos 1.100 km. A chuva deu uma trégua e a paisagem era absurda, nada que eu já tivesse visto antes: montanhas contrastando com a estrada, nuvens e o silêncio. Mas depois de duas horas de pedal a chuva veio, e veio com muita força. Coloquei a capa de chuva, a qual me protegia somente do frio, pois o esforço que os morros exigiam fazia com que eu ficasse encharcado de suor por baixo da capa. Os morros eram longos e constantes, tinha pouco percurso plano. Creio que acertei na escolha dos pneus (26 x 1.95 com cravos), pois derrapava pouco e conseguia uma boa tração nas longas subidas de cascalho solto. As comunidades de São Gonçalo do Rio das Pedras e Milho Verde são um bom ponto de apoio durante o trajeto até Serro. Em Serro notei que meus freios tinham fritado no caminho, por causa da chuva e barro constante. No hotel iniciei um ritual que se repetiria por quase todos os dias de viagem: lavar a bike, trocar as sapatas de freios e lavar a roupa cheia de barro. Perdia cerca de uma hora nesse processo.

© Victor Hugo Guidini

Foi um dia bem difícil, choveu muito, a estrada tinha muito barro, cascalho solto e os morros predominaram. Quase todos os dias foi assim durante o Caminho dos Diamantes… Mas eu estava feliz e curtindo muito todo o percurso. Eu achava que a chuva seria um grande problema, mas acabou se tornando algo normal…  Só atrapalhava mesmo na hora de bater fotos e chegar aos hotéis das cidades (por causa da lama no corpo e bike).

No segundo dia, depois da bela estrada asfaltada até Alvorada de Minas, tinha muito, mas muito barro no caminho. A chuva não deu trégua e eu dividia a estrada com caminhões de mineradoras que geravam buracos gigantescos de lama. Creio que este foi o dia mais difícil de toda a viagem, devido às condições da estrada e à quantidade absurda de chuva.

© Victor Hugo Guidini

Quando cheguei a Conceição do Mato Dentro, as crianças na rua apontavam para mim e diziam: “Nooossa!”. Eu não tinha noção de como eu estava, e parei num posto para jogar uma água em cima de mim e da bicicleta. O pessoal do posto me olhou assustado e os donos das pousadas diziam que estavam cheios para não me receber. Somente consegui um lugar na Pousada do Carioca, que é um motociclista e me ajudou bastante, inclusive com a limpeza da bicicleta.

O próximo dia foi o mais difícil em relação às subidas… Não parava nunca de subir. O trajeto era basicamente subir morros a 4 km/h e descer a 40 km/h. A corrente da bike partiu por causa da lama e tive dificuldade para encaixar os pinos, porque a corrente acabou entortando. Esqueci em São Paulo os elos extras da corrente e acabei precisando arrancar fora uns para poder arrumar e seguir o pedal. Entretanto, foi um ótimo dia, pois quase não peguei chuva. Porém, a estrada estava em péssimas condições para carros e a cada 10 km encontrava um veículo atolado ou quebrado na lama.

© Victor Hugo Guidini

Em Itambé do Mato Dentro parei num posto de gasolina e lavei bem a bike. Fiquei bem “apessoado” para procurar pousada e assim encontrei uma fácil. Na mesa do café conheci uns caminhoneiros, que estavam presos na cidade, já que as estradas estavam muito ruins para sair dali. Isso já me dava uma ideia de como seria o dia. Tive outro problema: o hotel não aceitava cartão e não tinha Banco do Brasil na cidade, nem caixas 24 horas. Achava que o Banco do Brasil brotava em qualquer lugar… Mas a Estrada Real não é qualquer lugar. Tive que ir até uma farmácia pegar grana, e deixar uma taxa de 10% para o farmacêutico. Estava me sentido roubado e atrasado quando saí de Itambé do Mato Dentro, rumo a Ipoema. Na saída da cidade, a lama tomou conta de tudo. Tinha que ficar descendo direto para empurrar a bike, porque atolava. Neste momento bateu a primeira e única vontade de abandonar a trip. Não estava nem conseguindo pedalar, só empurrar a bike.

Em Ipoema fui comer na rodoviária e conheci o Alex. Ele disse que todo mundo que chega ali, chega pensando em desistir, pois este é um dos trajetos mais difíceis da ER. Começou a chover muito quando saí da cidade e fui com chuva nas costas até Barão de Cocais, que é uma cidade que abriga muitos mineradores. Vários hotéis da cidade são exclusivos para mineradores. E a cidade parece girar toda em torno das empresas mineradoras. Nenhum orelhão funcionava.

Meu percurso do próximo dia estava com problemas no GPS e não consegui visualizá-lo. Fui seguindo as placas da Estrada Real e fui parar num asfalto… Tudo muito bom para ser verdade. Quando fui ver, estava indo para Caraça e não Catas Altas. Precisei dar meia volta e pedalar pelo menos mais 20 km para entrar de novo no caminho certo.

© Victor Hugo Guidini

O caminho até Mariana foi marcado pelos estragos na natureza provocados pelas mineradoras. Vi muitos ônibus transportando os funcionários e tudo me pareceu muito triste. Toda aquela resignação fazendo um contraste com a liberdade em cima de uma bicicleta. De Mariana para Ouro Preto é uma longa subida. Nada muito cansativo, mas como eu estava pedalando bastante nos últimos dias fui bem devagar. Estava precisando dar um tempo para as pernas. Resolvi ficar um dia em Ouro Preto, para comemorar o final do Caminho dos Diamantes e descansar para o início do Caminho do Ouro.

O Caminho do Ouro teve um ótimo começo. Praticamente não peguei chuva e o trajeto é cheio de belezas naturais e há vários pontos de apoio no percurso. Na cidade de Congonhas visitei a Basílica do Bom Senhor Jesus dos Matosinhos, com seus apóstolos esculpidos pelo Aleijadinho. Depois da trilha até São Brás do Suaçuí, passando pelas fazendas da região, encontrei muito barro deslizante e não deu outra: caí o primeiro tombo da viagem. Cortei um pouco a perna, mas nada demais.

© Victor Hugo Guidini

Segui pela ER até Entre Rios de Minas. O sol apertou muito e fiquei sem água. Tive que bater na fazenda do Seu Manoel para me hidratar. O Seu Manoel foi muito gente boa: “aqui a gente não regula água!” e me contou algumas histórias da região. Chegando em Entre Rios de Minas encontrei dois ciclistas que estavam treinando. Aí que me dei conta de quanto peso eu estava carregando e mais o cansaço de não ter repousado. Creio que para percorrer de forma mais tranquila e não tão exaustiva a ER é legal dar, pelo menos, um dia de descanso a cada 3 ou 4 dias.

De Lagoa Dourada até Prados o trajeto foi bem trabalhoso, porque precisava descer da bike nas descidas e era tanto cascalho molhado que a bike ia deslizando sem muito controle. A estrada até “Bichinho” é muito tranquila. Mas chegando lá começou o verdadeiro pesadelo: um calçamento que fazia a bike e eu tremer até o osso.

© Victor Hugo Guidini

Em Tiradentes tive muito trabalho para encontrar uma pousada barata e acabei ficando na pousada mais cara de toda a viagem. E olha que a dona fez um desconto porque estava em reformas. Pelo menos os pedreiros me deram dicas valiosas sobre os próximos dias.

A noite passou com muito calor e pernilongos. O ventilador não estava funcionando. Para completar, a dona da pousada sumiu e fiquei sem café da manhã. Segui pela ER, passando pelo Marco Zero da Estrada Real, onde tem uma cachoeira muito legal ao lado. Neste dia encontrei um pessoal de moto fazendo trilhas, que nem sabiam que estavam na ER. Será que parte da população das cidades não sabe da ER? No meio do caminho precisei lubrificar a corrente da bike, que estava sofrendo muito. Em Caquende peguei a balsa para Capela do Saco. Como era cedo ainda, resolvi seguir pedalando até Carrancas.O trajeto foi muito legal, sem muitas subidas, e eu avistava só lá longe uma montanha gigante, mas não imaginava que teria que atravessá-la. Cheguei ao pé da Serra de Carrancas e uma placa dizia: somente 4×4. Foi um dos momentos mais legais de toda a ER. Subir a serra, toda branca, com uma garoa fina caindo. O visual era impressionante e foi um dos lugares mais marcantes da viagem, eu diria que o ápice dela.

© Victor Hugo Guidini

O pedal do dia seguinte não foi muito bom, eu diria burocrático até. Ficou chovendo o tempo todo e quase não consegui bater fotos. Outro fator foi a distância dos pontos de apoio: não encontrei nenhuma venda ou bar até chegar em Cruzília, foram mais de 60 quilômetros sem encontrar com quase ninguém no caminho. Achava que encontraria algo na região da Fazenda Traituba, mas não encontrei. Minha sorte foi estar levando no alforje uma lata de atum e deu para dar uma segurada na fome. Outra coisa que ajudou foi o tempo chuvoso, assim não precisei beber tanta água. Creio que este trajeto sem chuva deve ser muito quente. Em Caxambú comprei uma corrente nova, a lama estava castigando demais a antiga.

No dia seguinte, acordei com muita chuva caindo. Quando estava com a bike pronta para partir a chuva deu uma acalmada e consegui visitar o Parque das Águas. Gostei bastante de visitar e fotografar o parque, o qual vale a pena conhecer. Tem água com gás direto da fonte.

Seguindo para Pouso Alto peguei bastante barro na ER. Também fui atacado por várias crianças, que agarravam a bike, tentando pegar algo e pedindo dinheiro. Consegui me livrar delas sem machucar ninguém. Fiquei impressionado com a situação. Dois meninos vieram para cima de mim, tentando me alcançar de bike. Quando vi que estava longe da horda de crianças, parei e os de bike ficaram assustados e retornaram. Estava sentindo um clima bem tenso ali, nunca tinha enfrentado qualquer tipo de problema do gênero.

Neste dia um cachorro gigante veio para cima de mim. A sorte foi que eu estava empurrando a bike na lama no momento, assim ele viu que eu não aparentava perigo e foi embora. Porém, uns poucos quilômetros à frente, em uma subida daquelas, veio uma matilha de cachorros para cima… Foi muito difícil pedalar, não dava para ser mais rápido que eles. Eles me cercaram e ficaram do meu lado me apavorando por um bom tempo. E eu com muito medo de levar uma mordida. Em nenhum outro momento da viagem minha frequência cardíaca foi acima de 170 bpm, mas naquele momento subiu a 178 bpm.

Para subir a serra de Passa Quatro teve subidas muito íngremes, mas chegando lá o visual da divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais recompensa. Agora era só descer serra abaixo. Depois é praticamente plana toda a estrada até Guaratinguetá. A primeira serra do próximo dia cansa, mas dá para vencer com calma. Chegando a Cunha almocei num posto de gasolina. Comi muito, o que me ajudou, pois não encontrei mais nenhum lugar para vender comida até Paraty.

Para subir a Serra do Mar eu estava com as pernas bem cansadas, sem torque. O sol abriu e começou a ficar muito quente, o que me deixou preocupado, pois estava levando somente dois litros de água. Pedalava muito, sempre subindo. Chegou uma hora em que eu precisava comer algo e acabei comendo os doces que tinha comprado de presente para o pessoal em São Paulo. No início queria comer somente uns, mas acabei comendo tudo. Encontrei uma cachoeira no caminho, parei um pouco e a água gelada deu uma aliviada no calor.

Finalmente cheguei à divisa de São Paulo e Rio de Janeiro. Bateu uma felicidade grande, não tinha mais subidas pela frente, somente um downhill absurdo em estrada de terra. Ver o mar de lá de cima foi muito bom. Foi um dos momentos mais legais da viagem.

© Victor Hugo Guidini

Chegando a Paraty fui direto para a Praia do Pontal tomar um banho de mar. E pela segunda vez Paraty era meu destino final. A primeira vez foi em 2009, quando fiz São Paulo-Paraty, e agora finalizando a ER.

Foi um exercício de superação completar a Estrada Real. No início houve as subidas intermináveis, muito barro e chuva. O Caminho dos Diamantes exige muito e seria melhor ter feito com pelo menos mais um ou dois dias para ficar nos lugares e conhecer melhor as cidades. Mas o visual e o contato com as coisas e pessoas faz tudo valer a pena. O lugar é realmente incrível. O Caminho Velho é mais tranquilo, porém, vale a pena ser feito com mais tempo, parando nas cidades e aproveitando as atrações de cada uma.

Dados

  • Dias viajados: 15
  • Dias pedalados: 14
  • Quilômetros pedalados: aproximadamente 1.100 km

O que levar:

  • Mapas (disponíveis no site da ER)
  • GPS (opcional, tem os trajetos no site da ER)
  • Alforjes impermeáveis
  • Ferramentas para bike / peças sobressalentes
  • Câmera fotográfica e mp3 player
  • Um guia da Estrada Real, para aproveitar melhor as atrações
  • Água… Muita água.

Gastos

  • Cerca de 50 reais por dia, incluindo pousadas.
  • tripsdebike.blogspot.com
  • Texto e fotos: Victor Guidini