Antes que me perguntem, é possível sim fazer cicloturismo de bicicleta dobrável aro 20, daquelas que parecem de criança e que aparentemente foram feitas só para a cidade. Será mesmo? Bem, frágeis elas não são. Em minhas viagens percorri trechos de pedras, asfalto que chegou a 45 graus, chuva de granizo e descidas de 40 km com uma carga que as vezes chegou a 40 kg, além de mim, com 75 kg. E a bike comportou-se muito bem; um pouco mais lenta se comparada as bikes com rodas aro 26 ou 29, porém quando o assunto é cicloturismo isso não faz muita diferença. Pedalei com outros cicloturistas por vários meses com suas mountain bikes aro 26 ou 29, e no máximo eles chegaram na cidade 10 minutos antes de mim.

“permite parar a qualquer hora, inspira confiança nas pessoas que encontra no caminho de se aproximarem e com isso te conhecer mais intimamente.”

Conhecer a América do Sul era já há alguns anos uma ideia que não saía de minha cabeça, mas a vida vai sempre impondo compromissos e sempre vamos adiando alguns sonhos. Ir atrás dos sonhos e intuição são a chave para o sucesso de um projeto como esse. Pois é difícil e se você não gostar muito do que está fazendo, não consegue fazer. O importante é estar feliz e desfrutando o máximo, aprendendo sempre uma lição dos momentos ruins e dos momentos bons. Tem dias de chuva, de frio, de cansaço. O pneu fura as vezes na pior hora e você tem que respirar fundo e saber que aquilo faz parte da aventura. Na Patagônia, teve um dia que iniciei a pedalada e fazia muito frio, logo em seguida uma tempestade de neve. Por sorte encontrei um abrigo e esperei por três horas até a chuva passar, e, como o frio só aumentava, achei melhor pedir carona até uma cidade mais a frente. O carro era pequeno e se não fosse a dobrável não entraria

© Fábio Negrão / Dobrandolando

Confesso que não sei porque existem tão poucas pessoas viajando com esse tipo de bicicleta, sejam brasileiros ou estrangeiros. Relatei em meus seis anos que viajo com dobrável uns cinco casos de pessoas que viajam com essa bicicleta. Pesquisando na internet, descobri esses aventureiros. Não conheci nenhum pessoalmente e nem cruzei o caminho de nenhuma pessoa que estivesse viajando de dobrável. Talvez por considerarem frágeis ou lentas. Antes da viagem de 1 ano e 8 meses pela América do Sul, Já havia feito algumas viagens no Brasil de bicicleta dobrável para me familiarizar com ela e amadurecer o projeto de pedalar pela América do Sul. No total foram 12.500 km percorridos em oito países.

© Fábio Negrão / Dobrandolando

Naturalmente que não existem duas aventuras iguais, daí a emoção. Bem provavelmente se fizesse a mesma aventura, roteiro e trajeto novamente, ela seria diferente. A cada momento uma cultura, história e pessoas inesquecíveis e diferentes cruzam o caminho.

© Fábio Negrão / Dobrandolando

A bicicleta (quem viajar com ela vai confirmar isso) tem uma magia, e a meu ver é a melhor forma de se aproximar e conhecer a intimidade de diferentes culturas, pessoas, comunidades, pois ela é lenta comparada com outros meios de transporte, permite parar a qualquer hora, inspira confiança nas pessoas que encontra no caminho de se aproximarem e com isso te conhecer mais intimamente. De carro a pessoa passa rápido, tem pressa, quer chegar logo ao destino. O contato com as diferentes comunidades, as pessoas, o olhar, a admiração e a natureza ficam bem mais difíceis. De bicicleta, o caminho é o mais importante. Iniciei a viagem pelo bonito sul do Brasil, depois passei pela tranquila Costa do Uruguai, em seguida pela charmosa Buenos Aires e a exuberante Patagônia. No Chile foi onde fiquei mais tempo. Lugares maravilhosos, como a Ilha Chiloé, com suas casas dentro da água (palafitas), a cidade artística de Valparaíso e o deserto do Atacama, o mais seco do mundo, com céu único e sempre estrelado. Na Bolívia o Salar de Uyuni, o maior salar do mundo, e a beleza da sua altitude e seus vulcões. No Peru, a incrível e inesquecível construção inca de Machu Picchu. No Equador, o vulcão Quilotoa e suas praias deslumbrantes. A Colômbia tem lugares indescritíveis e um clima que me lembrava muito o Brasil. A América do Sul não perde em belezas naturais e culturais para nenhum outro continente. Talvez o que falte seja investimento em divulgação. É de arrepiar.

NA BIKE A PERCEPÇÃO DO TEMPO É OUTRA, A PESSOA SE TORNA MAIS CALMA E APRENDE A USUFRUIR MELHOR AS MARAVILHAS QUE SE APRESENTAM.

© Fábio Negrão / Dobrandolando

Viajar de bicicleta permite entrar nessas intimidades, abre portas, permite ver belezas naturais de outros ângulos e num ritmo em que cada um se impõe. Não naquele ritmo de turista tradicional, sempre apressado e com hora marcada, tendo de ver muitas coisas mais comuns, e que acaba não vendo nada ou muito pouco. Na bike a percepção do tempo é outra, a pessoa se torna mais calma e aprende a usufruir melhor as maravilhas que se apresentam. A parar e apreciar quando achar que vale a pena.

© Fábio Negrão / Dobradolando

A outra pergunta muito comum é sobre perigo e segurança. A gente passa a entender e perceber que grande parte do perigo se encontra nos grandes centros urbanos, nas grandes concentrações das cidades. Fora desses centros o mundo é outro, as pessoas são simples e solidárias, os lugares tranquilos e as pessoas menos estressadas, desarmadas de violência e com boa índole. Sem dúvida, o meio ambiente tem uma influência enorme nesses temperamentos e perfis, dividindo a cidade grande de cidade pequena. Em nenhum momento durante a viagem me senti ameaçado, com medo ou risco de vida nas pequenas cidades do interior, mas confesso, nas grandes capitais minha atenção e tensão aumentavam. Quando voltava às comunidades simples e menores, relaxava. Senti, durante toda a viagem, uma conexão universal, uma espiritualidade muito forte, e certas vezes estava pedalando e chorava do nada de tanta alegria e conexão profunda. Uma conexão e impressão forte que deveria estar naquele exato lugar, naquele momento da viagem. Sensações inexplicáveis, mas que uma viagem desse porte pode proporcionar.

Fábio Negão / Dobrandolando
Fábio Negão / Dobrandolando