O que você faria com a rua se ela fosse sua? Digo, a que proveito ela se serviria se coubesse a você a faculdade de decidir isso? Como você gostaria de usufruí-la?

Todos somos donos das ruas, qualificadas como espaço público, e estão sob a guarda dos governantes, nossos representantes. Acontece que deve haver algo errado no meio desse caminho entre o que as pessoas querem e o que realmente é realizado para desfruto de todos.

Rola nas redes sociais uma ilustração muito interessante, em que aparece um espaço público urbano. Entre os prédios, nos seus bordos (calçadas), há algumas pessoas caminhando, e outras estão paradas aguardando o sinal fechar para poder cruzar a faixa de pedestres. As faixas, por sua vez, são representadas por uma tábua, uma ponte. E o espaço em que estaria a via de circulação dos carros (o maior espaço) está vazio, como se fosse um enorme precipício. É um lugar proibido para o pedestre: se ele pisar ali, cairá no abismo. Assim é a rua para quem não possui automóvel, encurralado, espremido na calçada e com pressa para cruzar a ponte, que abre apenas por alguns segundos. No restante do tempo, são carros, carros, carros e mais carros que por ali passam, e quando passam, se impõem e não permitem que nada mais leve ou lento passe por ali.

Evidentemente, as ruas que temos são para carros. O discurso humorístico do personagem de Marco Luque, o motoboy Jackson Five, mostra a marginalização com outros usuários do trânsito, no caso, as motos: “o que é a cidade vista de cima? A cidade é uma ferida incrustrada na crosta terreste… Um organismo pulsante, mesmo. As avenidas são artérias, as ruas são as veias… Aí você pensa, o que é um motoboy? Bactéria? Vírus? Não, não, não. Nóis somo lactobacilos vivos (sic)”. Se alguns motoristas veem as motos como intrusas, elas que podem desenvolver velocidade compatível com o automóvel, quanto mais estariam marginalizados quem se utiliza de transporte ativo (bicicleta, a pé etc)?

A saúde da cidade, esse organismo pulsante, depende do fluxo contínuo de suas veias e artérias. Quando esses vasos ficam obstruídos, a cidade adoece. E a receita para obstruir as ruas é fácil: carro a gosto, misturando-se com mau planejamento e indisposição política. A consequência de uma cidade insalubre é, segundo a Organização Mundial de Saúde, a morte de 1,2 milhão de pessoas por ano no mundo vítimas de acidentes de trânsito. Por ano, o trânsito brasileiro mata mais do que algumas guerras; segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária, em 2012 foram 61 mil mortes. Além disso, 352 mil pessoas ficaram inválidas permanentemente.

Os caminhos que começaram a ser abertos para o deslocamento de pessoas, seguiam o desejo de locomoção dos desbravadores. A cavalo ou a pé, eles limpavam o trecho, abriam clarões, ligavam os pontos que necessitavam. Mas, com o passar do tempo e o surgimento de novos meios de transporte, essa lógica permaneceu válida apenas para o veículo automotor.

© Rodolfo Goulart Sabatino

Os caminhos dos pedestres tornaram-se mais tortuosos; os dos ciclistas, desconexos. Nas cidades atuais, chega-se de qualquer ponto a qualquer ponto de carro, geralmente pelo menor trajeto possível – o que não necessariamente representa o menor tempo. Já de bicicleta, dificilmente haverá infraestrutura que ligue os mesmos dois pontos, e provavelmente o ciclista terá que fazer desvios em sua rota, para evitar vias expressas, por exemplo, e não se sentirá seguro em todo o deslocamento. O trauma causado por esse modelo automobilístico, além de outras consequências, acaba realimentando a cultura do motor.

OS AUTOMÓVEIS OCUPAM TODO O ESPAÇO QUE HOUVER DISPONÍVEL

Qualquer pessoa que saia pela primeira vez às ruas vai perceber que toda a infraestrutura conflui para o uso dos automóveis. Quando os vasos da cidade já estão quase obstruídos, ela ganha mais vasos iguais, esperando suprir o aumento dos carros. Mas isso não acontece, porque os automóveis ocupam todo o espaço que houver disponível. Enquanto as veias continuarem expandindo com o mesmo formato, as “moléculas” carros se distribuirão de tal maneira que causarão a obstrução.

A cura, segundo estudiosos da engenharia de tráfego do mundo inteiro, está na mudança do modelo dos vasos. Ou seja, na mudança do estilo de deslocamentos, o que passa prioritariamente por uma infraestrutura que dê opções para as pessoas escolherem de que forma querem se locomover. Uma infraestrutura que não torne as ruas um precipício, que não encurrale pedestres e ciclistas em espaços minúsculos, nem os obrigue a percorrer rotas tortuosas e desconexas. A cura está em permitir que o direito de ir e vir seja exercido com qualquer meio de locomoção que se queira.

Restringir o uso do automóvel é um dos caminhos. Também a mudança de cultura, o despertar para a necessidade de mudar. Precisamos de pessoas que reflitam: “se essa rua fosse minha, eu gostaria de não me sentir e nem fazer ninguém se sentir marginalizado ou intruso nela por não usar um automóvel”.