Qual veículo, além da bicicleta, consegue encerrar uma série de benefícios ao condutor, extrapolando o deslocamento, e ainda ser um meio para a promoção da paz?

Quando, há muito tempo atrás, resolvi que a bicicleta teria um lugar de extremo valor em minha vida, tinha em mente uma sensação forte de que, mais do que me levar à situações de liberdade e ao conhecimento compartilhado, o que me mantinha cativo em torno da bike era a possibilidade de condução à paz.

Não há como negar a extrema brutalidade, no sentido negativo, com que o sistema trânsito se move, quando se move. Por todos os lugares do país e a todo instante, há vítimas, fatais ou ainda não. Ouvimos, minuto a minuto, clamores por paz vindos de famílias, crianças, empresários, donas de casa, mães de família, pais, empregados, homens públicos, ciclistas e não ciclistas, enfim. Unanimemente, quer-se paz.

Comecei a indagar sobre como o meio de transporte e estilo de vida escolhido poderiam ajudar-me a promover paz, em essência, no meu contexto e sem fantasias românticas. Então, resolvi me debruçar em buscar compreender melhor do que a paz está impregnada.

Paz não é a ausência de guerra, mas de violência

A guerra, enquanto conflito, pode não estar associada, imediata e determinantemente, a situações violentas. Ela pode ser concebida, por exemplo, em termos de oposição de forças por meio de estratégias de inteligência. Já enquanto ausência de violência, a paz se mostra um estado de harmonia entre os interesses próprios ou particulares e os interesses comuns de um grupo ou sociedade.

Ao incluir a bicicleta nestes interesses se tem a possibilidade de estabelecer um ambiente propício à aceitação, à aquiescência, ao consentimento, ao conviver.

Estas últimas palavras, consentimento e conviver, estão impregnadas de significado porque, se desmembradas, sugerem a chance que se oportuniza, através da bicicleta, de sentir com os outros, de experimentar, com eles, de uma realidade e viver juntos. Então, faz sentido buscar compreender a bicicleta como um instrumento favorável à não violência.

Paz não é ausência de conflito

A ideia que o senso comum nos empresta de que devamos evitar conflitos é, por vezes, uma contradição. Se o conflito devesse ser evitado, os limites entre mar e terra não existiriam; a lei da gravidade seria extinta assim como a de ação-reação-ação; o campo de atração-repulsão magnética seria um conto de fadas; não seria possível a geração do conhecimento, pois, o que é o mesmo senão a desconstrução de determinadas ideias para a aposição de novas, circunstancialmente melhores, mais aptas, sensatas ou coerentes?

O conflito está presente em tudo, é inerente à vida. Nossas células estão em conflito; nossa pele enquanto membrana limítrofe de nossos corpos também sustenta um conflito; nossas palavras e pensamentos, necessariamente, estão em conflito para gerar algo inteligível a cada novo momento que observamos a nós mesmos e ao que nos cerca.

Sem a confrontação gerada pelo conflito não haveria o novo. O antagonismo entre duas forças nem sempre leva à extinção de uma delas. É o que buscamos levar à consciência de milhões de indivíduos sobre tudo o que encerra a universalização do uso da bicicleta nas cidades!

O conflito nas ruas pode ter soluções pacíficas. Inúmeras cidades, optando pela bicicleta, pelo mundo estão responsabilizando-se por este feito ao tomar decisões contra o estado contumaz das coisas.

Sabemos que para que isto seja possível existem meios diplomáticos, políticos e jurisdicionais, nada coercitivos, porém, para alcançar a paz com sucesso. Mas, sem qualquer dúvida sobre o tema, o mecanismo mais eficaz para a geração de resoluções pacíficas de conflitos é e sempre será a educação.

A paz não é ausência de ira, mas de raiva

Raiva, como o nome sugere, é uma doença. Não, não estou remetendo tão somente à doença viral de mamíferos que acomete o sistema nervoso central, causa encefalopatias e pode levar à morte. Em verdade, o sentimento de raiva é uma doença que leva à morte de uma relação social.

A raiva, enquanto sentimento, é um descontrole emotivo desesperado com privação de raciocínio e que, invariavelmente, resulta em agressão com lesão emocional ou física.

Como a paz se opõe à violência, manifestação dolosa de agressão, a paz sugere a ausência de raiva. A ira, por sua vez, é uma força propulsora que pode ter fins diferentes, positivos ou negativos.

Por exemplo, positivamente, é o que nos faz buscar chegar ao mais alto nas subidas quando acessamos aquilo que nos motiva ou incentiva. É o que não nos permite desistir sem tentar tudo. A ira é uma explosão de paixão por algo ou alguma coisa, não por alguém. Gandhi já dizia que nossa ira controlada pode ser convertida em uma força capaz de mover o mundo.

A ira move. A raiva, imobiliza e aniquila. Basta olhar pela janela e ver como nossas ruas e avenidas estão plenas de raiva.

A paz não é sinônimo de apatia

Ainda existem pessoas que confundem ser pacífico com ser apático. A apatia é uma imobilidade diante das coisas ou de um estado. A palavra apatia tem sua origem etimológica na expressão grega apátheia, onde páthos quer remeter a “aquilo que afeta o corpo e a alma”. A apatia é a falta de emoção, inclusive diante da dor, medo, prazer e desejo.

É a inação diante de tudo. A paz não é a falta de emoção ou passividade diante da vida, e ao contrário, trata de brindar a vida com a harmonização das experiências e de garantir que a emoção nos enleve, nos faça melhores e nos conduza além enquanto sociedade. Nas cidades e no trânsito, a dor, o medo, o prazer e o desejo desfilam 24 horas por dia por nossas vidas e se torna cada vez mais imperativo buscar manter a serenidade diante de qualquer um deles para que o resultado seja algo tão necessário quanto equilibrado e bom.

A paz não é sinônimo de indiferença

Da mesma forma que não é sinônimo de apatia, tampouco o é de indiferença. Como ser indiferente ante a imobilidade de cidadãos privados de seus direitos? Como ser indiferente face a impermeabilização do solo, o uso irresponsável dos recursos naturais e a inacessibilidade à dignidade humana?

A paz não admite dar de ombros, da mesma forma que não aceita a omissão diante daquilo que compromete o bem estar de uma sociedade. A paz não aceita a indiferença diante das vidas ceifadas nas ruas, calçadas, avenidas, pontes, viadutos, enfim, porque não dizer, simplesmente, a paz não aceita o que é contra a vida. A bicicleta é um veículo pacífico porque torna o seu usuário em um observador sensitivo, o qual não consegue ser indiferente a tudo que compõe o cenário por onde passa.

Paz não é sinônimo de abstenção

Verdadeiramente, a paz não abandona ou renuncia seu posicionamento político em favor da harmonia.

Não há neutralidade em favor da paz, porquanto que ao ser neutro sempre se reforça o lado mais forte de uma relação, muitas vezes, o do opressor. Eximir-se não é uma escolha pacífica, e se engana aquele que crê que evitando o conflito encontrará resolução plausível. Temos provado nesta revista que a imparcialidade não é uma escolha, porque fizemos a nossa pela bicicleta e por construir junto com quem pedala uma outra sociedade possível, mesmo que a tarefa em nada seja fácil. Os usuários e simpatizantes da bicicleta não se abstém de participar deste fenômeno civilizatório de proporções únicas e irreversíveis.

A paz não se baseia em domínio ou controle

É bastante oportuno dizer que a paz não admite a supremacia ou hegemonia de algo ou alguma coisa, porque ela justamente sugere a harmonia. Se existe domínio, é certo dizer que existem os papéis de dominador e dominado.

A paz não aceita enaltecer a força de algo ou alguma coisa em detrimento das outras partes. Então, a supremacia do automóvel sobre os pedestres e os demais modais, além da produção e reprodução de um sistema viário que o atenda, exclusivamente, não são compatíveis com a proposta de paz que é bem-vinda, além de desejada. Por natureza, a bicicleta protege o pedestre, o cadeirante, o idoso, a criança e os animais.

Por natureza, enfim, a bicicleta liberta da situação de controle e opressão milhares de pessoas todos os dias.

Embora exista o conflito interesses e disputas no espaço, ele depende da coexistência de sujeitos e forças, mesmo que concorrentes, para continuar existindo, porém, exige inteligência de todos os atores.

A paz não aceita injustiça

Baseada no equilíbrio ou harmonia, de forma alguma a paz contempla a injustiça, porque ela mesma é um dano à igualdade. Pelas ruas das cidades a desigualdade é o melhor exemplo do formato injusto que todavia prevalece em um traçado que não oferece chances iguais aos diferentes atores ou usuários. As ruas, como as que temos hoje, são um culto ao privilégio individualista. E como proceder diante da injustiça?

Usando uma pequena alegoria, é como se nós, ciclistas, estivéssemos munidos de estilingues em uma disputa com os usuários de veículos automotores, armados, ironicamente, com raios laser. Não se pode admitir que seja uma concorrência razoável.

O Barão de Montesquieu tem uma máxima que ilustra bem o que pretendemos elucidar: “a injustiça que se faz a um é a ameaça que se faz a todos”, demonstrando que é apenas uma questão de tempo para que a totalidade seja atingida, como se pode observar diuturnamente em todos os cantos do país.

A paz não aceita a intolerância

A paz está revestida de solidariedade, levando em consideração a condição do outro. Por tal característica, a paz não admite a intolerância que, em outras palavras, pode ser entendida como a incapacidade de suportar algo, alguma coisa, alguém ou um efeito resultante da interação entre estes três elementos anteriores.

A tolerância é como uma régua, um grau de aceitação, para mais ou para menos, diante de coisas que não se quer ou não se pode impedir por força das circunstâncias. Mas, os acidentes e crimes de trânsito são coisas que se pode impedir, sim, por escolha ou por lei.

Ocorre que, infelizmente, a cada dia, estamos sendo um tanto mais negligentes com o grau de tolerância assumido diante do individualismo, da corrupção, do descaso com a coisa pública, do risco iminente à vida, seja nas estradas, ruas e fora delas. Vemos pessoas de posse de seus veículos, ou melhor, vemos veículos possuindo pessoas que seguem, a todo momento, esbravejando, vociferando, sem nem sequer dotar-se de paciência para analisar o que se passa. Todos querem estar certos e leva circunstancial vantagem quem grita mais alto ou quem é mais violento, é o que vemos, para desagrado nosso.

A paz é a resolução não violenta do conflito

Enquanto ‘sistema organizado’, o trânsito é um conjunto de inter-relações, ainda que desproporcional. Embora exista o conflito interesses e disputas no espaço, ele depende da coexistência de sujeitos e forças, mesmo que concorrentes, para continuar existindo, porém, exige inteligência de todos os atores.

Ao usar um veículo inteligente, a bicicleta, para cumprir pequenas e médias distâncias (valendo-se também de estruturas cicloviárias e campanhas/programas de educação para o trânsito compartilhado) estamos incidindo positivamente sobre o conflito, não extinguindo os oponentes (no caso, os veículos automotores). Ao ampliar-se a participação do modal bicicleta no sistema trânsito, estamos garantindo uma série de resultados psicossociais, ambientais, socioculturais, socioeconômicos e antropológicos, porque não dizer. A resolução pacífica para o conflito no trânsito passa, necessariamente, pela mudança paradigmática do automóvel à bicicleta e ao pedestrianismo, pela reformulação do que se quer com a moderna formação de condutores, pela geração de políticas públicas de intermobilidade, de estruturas viárias e cicloviárias condizentes. Passa por uma ressignificação do meio ambiente urbano e por uma dura e urgente mudança de perspectiva por parte dos cidadãos.

A paz não é um resultado;
A paz não é um caminho;
A paz não é um fim onde se quer chegar.

Antes, porém, a paz é um princípio.

Seja você também promotor da paz no trânsito.

E viva a Bicicleta, sempre!!!