© Daniel Sabino

O relato desta jornada remete ao ano de 2014, quando decidimos pela nossa primeira cicloviagem. A experiência, exótica para muitos brasileiros, é rotineira em vários países da Europa, onde ciclistas, sozinhos ou em grupos, avançam fronteiras com alforjes e disposição. O plano inicial era viajar em dupla, mas logo outros gostaram da ideia e, ao final, cinco amigos, cada um de um canto do mundo, toparam a travessia. Ainda sem alforjes, mas já com disposição.

O primeiro destino escolhido foi a Via Claudia Augusta, antiga estrada romana que cruza os alpes da Alemanha até Veneza. Já nessa primeira viagem, nossas mentes se abriram para essa experiência. Habituados ao turismo padrão dos grandes centros urbanos, descobrimos uma forma diferente de vivenciar a essência dos lugares. Numa viagem de bicicleta todos os sentidos se apuram: o olfato, pela pureza da respiração; a visão, pela apreciação lenta dos detalhes; o paladar, pela diversidade de sabores típicos; o tato, pela variação do clima, dos graus negativos ao sol a pino, da chuva ao vento; e a audição, simplesmente pelo silêncio.

Desde então, outras cicloviagens vieram. Numa delas, partimos de Berlim e chegamos a Copenhagen. Noutra, o destino foi a Suíça. Todas vivências inesquecíveis, mas com um ponto em comum, rotas existentes e bem conhecidas.

Desta vez, em 2017, ousamos definir nosso próprio trajeto. O caminho idealizado conciliaria o melhor das experiências anteriores. Montanhas, estradas vicinais, lagos, vilarejos medievais, litoral e altas e baixas temperaturas eram alguns dos elementos essenciais. Mas onde? Horas de Google Earth noite adentro, conferences call, Skype e diversos pitacos para, ao final, elegermos (em votação) a rota entre Turim e Mônaco. Além da composição da primeira viagem, Daniel Sabino, Henrique HBF, Jair Rangel, Caio Natividade e Rodrigo Barros, aderiram ao grupo João Claudio e Léo Trópia.

© Daniel Sabino

Escolhemos, como ponto zero, um anfiteatro romano e já em seguida partimos ladeira acima para iniciarmos a travessia dos Alpes pelo Passo de Montgenevre, onde, em 200 a.C., o imperador Anibal, com seus elefantes de guerra, invadiu o Império Romano. A subida era interminável, mas se os elefantes conseguiram, também nos sentíamos capazes! Além da natureza estonteante e barracas de queijos artesanais, passamos pelo Forte de Exilles, prisão do lendário homem da máscara de ferro.

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“Montanhas, estradas vicinais, lagos, vilarejos medievais, litoral, altas e baixas temperaturas…”

© Daniel Sabino

Após uma noite bem dormida a 2.000m de altitude na fronteira entre Itália e França, acordamos com mais de um metro de neve na porta do hotel. Num primeiro momento, o deslumbre com a paisagem, algumas sessões de esqui-bunda, mas, em seguida, nos demos conta do problema. Como pedalar naquela situação? A solução foi descer os primeiros 10 quilômetros numa van e, com mais 60 pedalados adiante, o branco da neve deu lugar à imensidão azul do lago Serre-Ponçon. Se há um espaço neste planeta para ilustrar um ambiente bucólico, este é o local. Picos nevados, floresta, água azul, tudo sob a luz de um sol brilhante.

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“Picos nevados, floresta, água azul, tudo sob a luz de um sol brilhante.”

Pedalamos dezenas de quilômetros contornando o lago até a aconchegante Barcelonnette, porta de entrada para o Parque Nacional Du Mercantour, na França. Em seguida, tome mais subida! Mas dessa vez uma subida suave, ziguezagueando cada contorno da montanha. Subimos horas desfrutando a linda vista do vale abaixo sem ver o tempo passar. Saímos de 1.100m de altitude e, já aos 1.600m, o verde da vegetação passou a dar lugar à neve na beira da estrada. Por sorte, um trator havia passado mais cedo e limpou a pista. A 2.000m o gelo em nossa volta já atingia um metro e, a 2.326m, no El Col de la Cayolle, um paredão branco de quase três metros escondia tudo ao redor, até mesmo o famoso refúgio.

© Daniel Sabino

A paisagem da descida até Nice, com seus túneis entalhados na rocha, não é menos maravilhosa. Por motivos óbvios, tudo passa numa velocidade mais acelerada e o silêncio contemplativo da subida deu lugar à adrenalina. Inesquecível também a parada em Entrevaux, vila medieval às margens do rio Var. No fim da tarde, chegamos à agitada Nice, com seus restaurantes e bares. Pensamos até em prosseguir noite adentro, mas os 130km pedalados no dia e a barriga cheia da famosa Cuisine Niçoise pesaram e buscamos um teto.

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Quando pensamos que já estaríamos saciados de tantas belezas, acordamos com o sol rachando na Cote D´Azur e nos maravilhamos com o passeio de 40km pelo litoral até Mônaco, acompanhados por um mar azul e as suntuosidades das mansões dependuradas nas encostas. Chegamos em uma Mônaco preparada para a prova de fórmula-1, que aconteceria em duas semanas. Transformamos nossas bikes na McLaren do Senna e divertimo-nos nas várias voltas pedaladas do circuito. A subida do cassino Montecarlo, tão inofensiva para os potentes F1, mais parece uma parede quando os motores são nossas pernas. Principalmente após 500 km e 9.000m de ganho de elevação em seis dias de viagem.

© Daniel Sabino

“Tudo que idealizamos foi em muito superado.”

Ao final, as incertezas dos primeiros dias de planejamento deram lugar a uma sensação de realização. Tudo que idealizamos foi em muito superado. Um caminho simplesmente deslumbrante, rico em história e estórias, digno de ser reconhecido como uma rota de cicloturismo oficial.

Texto

Daniel Sabino
Colaboração de edição Renato Perim