Há muitos clamores por mudanças no ar, nas redes sociais, na mídia em geral. As tímidas e inconsistentes ações por parte da grande maioria dos gestores públicos e da potente, porém, egoísta iniciativa privada, destoam daquelas exigidas pela população em distintos contextos por onde quer que se vá pelo país. Há um esforço monumental para se traduzir nossas esperanças em fatos concretos e qualificados, no campo da ciclomobilidade, da ciclocidadania e da ciclo-experiência.

Tenho suficientes razões para estar animado e entusiasmado, para seguir crendo que tanto o mercado, quanto a comunidade e o poder público poderão nos levar a patamares melhores a cada dia. Porém, nossa parte neste processo não pode ser esquecida. Não gostaria de chamar a isto de idealismo, mas de consciência e postura positiva frente às adversidades. Não há desculpas para não irmos adiante.

Novamente, somos chamados a refletir substancialmente sobre o conjunto de temas que mais nos tocam e, tanto quanto possível, poderemos ser levados a pensar em coisas que jamais pensamos. E, sem chance de afastar-me ou furtar-me da parte que me cabe, levantei tais questionamentos: Em que o universo da bicicleta tem me ajudado a ser uma pessoa melhor? Em que medida a escolha que fiz pela bicicleta me leva a ter condições de transformar a minha realidade e aquela que está ao meu redor mais próximo?

Por acaso, duas palavras surgiram-me à mente como uma paródia shakesperiana: Ter ou Ser? Ou seria melhor dizê-lo Ter e Ser?

Em primeiro lugar, nada de dramático ou melancólico a esta altura, ok? Observando as inclinadas mudanças na perspectiva sociocultural a respeito da bicicleta é bastante possível dizer que nunca, proporcionalmente, se falou tanto no tema do que no presente momento, seja pelo mundo afora ou em nosso subcontinente amado. Capitais federais como Bogotá, Buenos Aires, Santiago, Lima, entre outras, têm dado exemplos reais de intervenções favoráveis à ambiência urbana na forma de realizações cicloviárias e promoção de educação para a ciclomobilidade, da mesma forma que as cidades de Praia Grande, Santos e Sorocaba – SP, Rio de Janeiro e Niterói – RJ, Poços de Caldas – MG, Foz do Iguaçu – PR, Afuá – PA, Aracaju – SE o têm tentado, apenas para citar algumas.

Mais do que falar a respeito, jamais se teve tantas manifestações encerrando a experiência com a bicicleta, seja no aspecto lúdico-recreativo, como modal/intermodal de transporte, no panorama desportivo ou como meio de intervenção político-cultural. É hora de compreender que mais do que investimentos em mudanças físicas nas cidades é imperativo educar a todos e a cada um, para uma outra sociedade possível e desejável.

Venho conversando e interagindo com gente do mundo todo, sobretudo a respeito do uso irrestrito da bicicleta no cotidiano, e invariavelmente, o destaque dado a este movimento de transformação sociocultural, pacífico e diverso, faz-nos crer que se trata de um conjunto de certos câmbios irreversíveis. Reforço, câmbios irreversíveis!

O uso irrestrito da bicicleta, em todas as suas dimensões, está aumentando as condições para que a sociedade, impactada por tal fenômeno, admita que esta seja uma concepção que faz frente às patologias sociais que não nos permitem ir além de nossas limitações enquanto grupo. Estamos indo além de nossas conversas não profícuas e das postagens replicadas e sem criatividade pelas redes sociais. Mas, ainda não basta!

Parte do que se almeja atingir está intimamente associado à renovação do ser humano convivendo em grupo, no que se refere à necessária e urgente modificação dos valores, ainda que subjetivos, que afastam a mim e a você de tornar concreto e real um ambiente onde a pluralidade tenha, efetivamente, mais valor do que as individualidades e mesquinharias postas.

Não basta que todas as qualidades e atributos da utilização da bicicleta estejam em estatutos, programas e projetos. Faz-se necessário que cada menino e menina, da escola rural do local mais remoto ou do colégio rico do centro urbano, tenham sob sua posse uma bicicleta. Com esta ‘ferramenta’ poderão experimentar, de forma orientada, um sem-número de sensações que os farão crescer mais saudáveis, mental, física e socioculturalmente. Trata-se de ter para ser.

De igual maneira, não importa se o Governo Federal ainda não ajustou a sua intervenção qualitativa no campo da desigualdade social. Faz-se necessário que os grandes impérios empresariais possam romper com a lógica medieval do uso indistinto e irresponsável de veículos automotores, passando a estimular, incentivar e promover ações para que os trabalhadores de suas fábricas e indústrias realizem o deslocamento casa-trabalho-casa usando, prioritariamente, a bicicleta. Tal ação, socioambientalmente responsável, irá impactar positivamente no campo econômico de trabalhadores, patrões e comunidade, incidindo sobre uma estratégia de marketing social de vanguarda, ainda que espontâneo, que mova a formação de opinião. Trata-se de ser para ter.

Enquanto a gestão de saúde pública nacional continuar voltada para a ideia da construção de hospitais, a prevenção seguirá como um pequeno e desprezível detalhe que joga, minuto a minuto, milhares e milhares de pessoas dentro das estatísticas de obesidade, diabetes, arteriosclerose, hipertensão, depressão, etc., sem falar na falta de assistência. Pensamos que o país economizaria somas vultosas se empregasse esforços em prevenção, mobilizando campanhas em prol da atividade física orientada com a bicicleta, desde a infância, passando pela juventude, adultez e chegando à ancianidade. Neste caso, trata-se de ser e ter para ter e ser, ou seja, ter saúde para ser saudável, e ainda, ser saudável para ter qualidade de vida.

Movendo nosso pensamento para o paradigma ambiental, compreendemos que mais do que apreender do planeta seus segredos, cabe à sociedade a promoção da concepção do sujeito ecológico. Resumidamente, tanto ouvimos sobre os impactos nocivos e danosos da presença humana que já é mais do que emergencial a tomada de atitude em prol da vida no planeta, e tal concepção diz respeito a que cada cidadão, ao menos, seja ecologicamente sensibilizado/simpatizante, não concebendo a natureza como uma mercadoria ou recurso inesgotável, e dentro disto, é claro, se encontra a própria sociedade.

Seja no urbano ou no rural, optar pela adoção da bicicleta como veículo prioritário é parte essencial da mudança de comportamento requerida para que sejamos, todos, sujeitos ecológicos, ao mitigar os efeitos impróprios de nosso egoísmo consumista. Trata-se, então, de ser para ser e ter para ter, ou melhor, ser minimamente individualistas para ser ambientalmente éticos e responsáveis, e ainda, ter um comportamento menos utilitarista para ter resultados plurais e benéficos para todos.

Ainda sob a perspectiva de mudanças orientadas para garantir melhorias reais na vida que temos em comum, cremos que nenhum dos destaques anteriores é ou será possível sem a educação. As experiências compartilhadas sobre a bicicleta têm nos levado a repensar o modelo atual de educação, que em resumo se mostra excludente, precarizado, fragmentado, dicotômico, alienante, não democrático e descartável. Pensamos em gerar conhecimento a partir da pedagogia da empiria, da experiência, contemplando o ser (substantivo) humano com a chance de formar-se integral e sensivelmente. É um desafio imenso deixar de lado o modelo vigente, mas não cremos que seja impossível. Não é porque sempre foi que sempre deverá ser e não quer dizer que porque nunca houve, que não haverá. Trata-se, enfim, de ser (verbo) humano.

Para que nossas angústias sobre duas rodas se transformem em soluções inteligentes para a coletividade temos muita coisa para repensar, sobretudo, para fazer.

A Revista Bicicleta quer ser um instrumento de compartilhamento de ideias e comportamentos acerca de tudo o que encerra a bicicleta e queremos ter você participando desta aventura conosco.

Viva Bicicleta, sempre!

© Scott

Texto: Therbio Felipe M. Cezar / @cicloturexperience