“Se continuarmos agindo assim, vamos morrer. Precisamos mudar.” (Karl Henrik Robèrt)

Certo dia, algumas fadinhas estavam procurando um cantinho para morar na floresta. Depois de voarem por todos os lados, elas  descobriram uma linda caixa, toda azul, que parecia ser um excelente lugar para ficar. Nesta caixa azul, o ar era puro, os rios eram limpos e a natureza, intacta, deslumbrante. Felizes, decidiram habitar este lugar. Primeiro, cortaram algumas árvores para fazer suas casinhas, móveis, e até palitos para seus dentes. Discreta e lentamente, começaram a produzir lixo. Sujar os rios. Contaminar o ar. Elas começaram a se multiplicar, e a caixa azul começou a ficar pequena, suja e poluída. O clima mudou, os alimentos ficaram cheios de produtos químicos, elas não se exercitavam e acabaram ficando doentes por causa disso. Em pouco tempo, seu novo lar estava em um estado lastimável. Até que uma fadinha disse: “Se continuarmos agindo assim, vamos morrer. Precisamos mudar.” (Adaptado de uma narrativa do médico oncologista sueco Karl Henrik Robèrt, criador do programa de sustentabilidade The Natural Step)

Quando os Beatles, em 1969, imortalizaram uma faixa de pedestres de Londres na capa do álbum Abbey Road, onde Paul MacCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr posaram para a foto em fila indiana, o assunto “mobilidade” já estava em evidência. Enquanto a faixa de pedestres dos Beatles atrai turistas, nossos pedestres e ciclistas querem mais é correr para as calçadas – quando as encontram. Um modelo viário nada sustentável, infelizmente.

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Segundo dados do IBGE, as vendas no comércio brasileiro cresceram 10,9% no primeiro semestre de 2010, comparado ao mesmo período de 2009. O principal responsável por essa expansão foi o segmento de veículos. No imediatismo, parece uma notícia boa. Mas se relacionarmos o aumento do número de carros circulando com o aumento nos gastos com saúde pública, ocasionados por acidentes e doenças decorrentes do sedentarismo e da poluição? Já se foi o tempo em que podíamos pensar apenas no aqui e agora: nossos olhos estão voltados para o futuro, e sabemos que cada ação de hoje tem um impacto no amanhã. Nesse quebra-cabeça, a peça fundamental chama-se sustentabilidade, e a questão mobilidade é apenas um dos prismas dessa peça.

Cada ação de hoje tem um impacto no amanhã

A consciência de que é preciso mudar, e de que desse jeito não dá mais, é o primeiro passo para a sustentabilidade. Até pouco tempo atrás, isso era papo. Havia muito diálogo para estabelecer o que e como fazer. Agora a história é outra. Não é necessário falar mais muita coisa, é preciso arregaçar as mangas e fazer. Aliás, fazer bem feito. Nas palavras de Gandhi, “temos que ser a mudança que queremos para o mundo.”

O termo sustentável tem origem no latim sustentare que significa sustentar, conservar, cuidar. O conceito é relativamente novo. Começou a ser delineado na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, 1972, e abordava a necessidade imperativa de “defender e melhorar o ambiente humano para as atuais e futuras gerações”, em outras palavras, desenvolvimento sustentável. Mas esses dois termos (desenvolvimento e sustentável) só apareceram juntos na ECO-92, que aconteceu no Rio de Janeiro. Desenvolvimento e meio ambiente eram termos difíceis de conciliar, mas notava-se que “o desenvolvimento que atende as necessidades do presente não podiam comprometer a possibilidade das futuras gerações de atenderem as suas próprias necessidades.”

Trocando em miúdos, ter uma atitude sustentável é adotar ações que mantenham o equilíbrio entre o que precisamos consumir hoje e a conservação dos recursos para as próximas gerações. Incorporar a bicicleta no dia a dia é um modelo em que as organizações pró-sustentabilidade apostam. Qualquer plano de desenvolvimento sustentável apresenta soluções para diminuir o uso do carro, e expandir os modais a pé e de bicicleta, realizando adendos aos sistemas viários existentes, no sentido de incentivar e proliferar essas formas de se locomover. No movimento de busca pela sustentabilidade, redescobrimos a bicicleta. Do ponto de vista sustentável, é negligente e nefasto colocar um motor impulsionar quase uma tonelada de ferragens para levar uma pessoa ao trabalho, que fica a 4 km da sua casa. Sem contar que no espaço urbano cada vez mais escasso, três carros ocupam o lugar de vinte ciclistas. É insustentável!

Triângulo da Sustentabilidade

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Levar uma vida sustentável significa levar uma vida simples, abrindo mão de comodidades desnecessárias, e principalmente, tendo consciência do impacto de suas pequenas ações. “Vejo muitas pessoas falarem em reciclagem, mas quase nunca ouço falar em reaproveitamento, e muito menos em diminuir o consumo. Não consumir tornou-se um palavrão depois da queda do bloco soviético, e vemos surgir uma nova indústria – a reciclagem, quando seria muito melhor nem ter consumido tanta coisa para ser reciclada depois”, relatou Antonio Olinto, do Projeto de Cicloturismo no Brasil, que demonstrou a importância de incorporar, na prática, o discurso sustentável, através de atitudes que minimizem o impacto no meio ambiente. “Optei por fazer tudo de bicicleta, e utilizar um motor home como uma casa móvel. Alterei o motor home para álcool, coloquei placas para gerar energia solar ao invés de utilizar gerador, e utilizo papel reciclado para imprimir os guias para a prática de cicloturismo, que é o meu trabalho. A vida em um motor home instiga a economia, tendo em vista a dificuldade de conseguir recursos mais simples, como a água. Para nós, conseguir água não é só abrir uma torneira. Então consumimos, em dois, cerca de 70 litros de água por dia para café da manhã, almoço, jantar, banho e lavagem de roupa (70 litros equivalem a umas quatro descargas com uma válvula hidra).” Outro exemplo de Olinto está em sua forma de produzir os seus guias, de alta qualidade, para a prática de cicloturismo. “Este trabalho envolve muita pesquisa de campo, que eu faço de bicicleta. Uma vez, imaginei que se a pesquisa de campo fosse feita com uma motocicleta, poderia aumentar a produtividade e logo teria muito mais guias para oferecer… Entretanto, minha avaliação do circuito seria prejudicada pela velocidade e as facilidades que o motor proporciona. Por outro lado, quando iria fazer exercício? Provavelmente ficaria mais gordo e preguiçoso, enfim, desequilibrado.”

Equilíbrio. Isso mesmo; equilíbrio é a chave para a sustentabilidade

Saber pesar as necessidades e como supri-las de forma que, no futuro, os recursos necessários também estejam disponíveis, é crucial para a sustentabilidade. Segundo o professor holandês Peter Nijkamp, esse equilíbrio deve envolver, principalmente, três fatores: economicamente viável, socialmente justa e ecologicamente correta. Estas três perspectivas formam o chamado Triângulo da Sustentabilidade. Vejamos como a bicicleta se comporta com relação a estes três princípios.

Economicamente viável

As condições de mobilidade interferem diretamente na vida das pessoas, e merece grande respeito. O trânsito, a infraestrutura viária e até mesmo a cultura brasileira estão condicionados a elementos de “deseconomias”: o tempo de percurso dos usuários de automóveis em horários de pico, o consumo excessivo de combustível nessas “longas” viagens dentro das cidades, a emissão de gases nocivos ao meio ambiente e, por fim, os impactos negativos na saúde e na qualidade de vida da população. O que temos de mobilidade no Brasil não pode ser considerado economicamente viável, salvo algumas exceções.

A bicicleta é, nesses termos, uma solução antiga para um problema futuro

Ela desfila na passarela da sustentabilidade como veículo de menor custo, tanto de aquisição quanto de manutenção, o que representa economia na renda doméstica. Segundo André Geraldo Soares, da ViaCiclo, “quanto mais humanizado for o trânsito, menos o poder público gastará com hospitais, reabilitação e seguro social. Além disso, diminuindo o uso do automóvel, a sociedade também gastará menos em mitigação e adaptação ao aquecimento global”, o que destaca a economia referente aos custos sociais.

A bicicleta foi, lentamente, sendo expulsa das vias urbanas, e agora os governos se vêem diante da necessidade de construir ciclovias e ciclofaixas para sua circulação. Fora das ruas, e na situação de intrusas no tráfego, as bicicletas foram relegadas ao uso do lazer, aos finais de semana, exceto aos ciclistas entregadores de pequenas mercadorias. No início dos anos 1970, em razão das duas crises de petróleo, e também dos apelos das entidades ambientais, a bicicleta ressurgiu como opção de meio de transporte. Hoje, a bicicleta é considerada, pela ONU, o veículo mais sustentável do mundo. Porém toda a estrutura viária existente prioriza os veículos automotores, e agora precisa ser adequada para as bicicletas. Mesmo esse investimento em redes cicloviárias, além de exigir menos verbas do que vias expressas e viadutos, tende a diminuir os gastos sociais por ir contra as “deseconomias” antes discutidas. Conforme estudos, 20% do custo de um carro é pago pelo seu proprietário; o restante (efeitos da poluição, perda de tempo no trânsito, acidentes, obras rodoviárias) é pago por toda a sociedade.

Ainda no universo econômico, há um dado interessante sobre os meios de transporte elétricos. A indústria automobilística assegura que os carros elétricos têm lugar garantido no futuro. Mas até então, a maioria ficou apenas no protótipo. Por outro lado, as e – bikes (bicicletas elétricas) já começaram a ser produzidas em série, e são realidade inclusive no Brasil, por um preço razoável. As bicicletas elétricas têm o objetivo de auxiliar o ciclista, reduzindo seu esforço físico. Outra vantagem: se a parte elétrica não funcionar, ou a bateria descarregar – é só pedalar. Neste comparativo, até mesmo a versão elétrica da bicicleta já largou na frente dos carros elétricos, de forma economicamente viável. Vale lembrar, porém, que a bicicleta clássica, movida a pedal, é a forma mais sustentável por não demandar nenhuma forma de energia – a não ser a do próprio ciclista.

Socialmente justa

Para o professor Therbio Felipe Cezar, “não há justiça onde há indiferença.” A própria Constituição Federal trata a função social como bem-estar social. As conferências mundiais apontam para inúmeras medidas urgentes a serem tomadas, e grandes preocupações que relacionam a sustentabilidade com o papel social de cada indivíduo e de cada país, a respeito de abusos, incorporações, devastação, etc. “Penso, que o uso de bicicleta como veículo sustentável sugere uma postura de não-indiferença do ciclista para com o meio e tudo o que nele está contido. Seja, talvez, pela mínima interferência física no caminho oferecida pela bike; pela forma silenciosa de ‘fluir e fruir’; pela possibilidade da geração de encontros com os sujeitos dos caminhos, ou ainda, pela observação atenta do ambiente, do contexto, das paisagens construídas e, porque não dizer, de si mesmo. Ao observar as populações às margens do caminho, o cicloturista já não consegue mais querer-se indiferente àquelas realidades sociais, culturais, políticas, econômicas, simbólicas, enfim. Quando pedalo, seja em minha cidade ou entre cidades, percebo sempre minha sombra me acompanhando. Eu, minha bike e o contexto somos a paisagem, assim sendo, nos pertencemos. Essa experiência volta comigo para casa, e objetivamente, influencia uma série de decisões que tenho que tomar como ser humano, como cidadão, como personagem desta história que contamos juntos. De dentro de um carro, torna-se quase impossível perceber-se tudo isto”, nos ensina o professor.

A sustentabilidade instiga a justiça social, atribuindo a cada indivíduo o cuidado de preservar e manter os recursos

Aristóteles escreveu que “o que é comum ao maior número de pessoas constitui objeto de menor cuidado. O homem tem maiores cuidados com o que lhe é próprio e tende a negligenciar o que lhe é comum”. Soa atual, não? Cada pessoa precisa fazer a sua parte, desempenhar seu papel social. A bicicleta permite que você se exercite ao mesmo tempo em que se locomove. Em termos sustentáveis, pedalar significa não poluir o meio ambiente, não provocar doenças derivadas da poluição, não matar no trânsito (nem por atropelamentos, nem por estresse e doenças correlacionadas), e significa respeitar o espaço das outras pessoas e das outras formas de vida. Um parque repleto de árvores permite que você pedale: não há necessidade de abrir espaço para asfalto.

Ser socialmente justa significa que cada pessoa tem a responsabilidade de cumprir seu papel social, tomando ações que não comprometam a sustentabilidade. Significa não discriminar ou privilegiar, mas ser justo na distribuição dos custos e benefícios. A bicicleta cumpre integralmente essa proposta.

Ecologicamente correta

A maior motivação para todo o movimento pró-sustentabilidade. Somente quando a humanidade se viu em meio a uma crise ambiental, fruto do desrespeito aos limites da natureza em prol de um desenvolvimento e poder econômico insustentável, decorrente de sua visão antropocêntrica, houve a constatação: dessa forma, vamos destruir o mundo e a nós mesmos. Precisamos mudar.

A natureza se levanta contra a exploração dos ecossistemas. O uso irracional dos recursos naturais, e em quantidades cada vez mais abusivas, estão gerando escassez do solo fértil,  da água potável, e comprometendo o futuro e a continuidade de todas as formas de vida. Os fenômenos trágicos decorrentes das mudanças climáticas, da destruição da biodiversidade e da rarefação da camada estratosférica de ozônio têm se multiplicado. Destarte a questão ecológica envolve racionamento e revisão dos modos de produção, dos sistemas sociais e dos conhecimentos culturalmente aceitos. Precisamos parar de tratar a natureza como se fosse um imenso supermercado gratuito, porque sua devastação tem o preço mais caro que se pode pagar. Onde fica a bicicleta na questão ecologicamente correta? Uma cidade com seu desenho urbanístico voltado para os ciclistas, com áreas verdes e níveis diminutos de emissões de gases poluentes é apenas um exemplo. Vemos, mais uma vez, as chuvas de janeiro provocar enchentes em vários estados brasileiros, como São Paulo e Rio de Janeiro. Desmoronamentos, mortes, vidas que precisam ser reconstruídas do zero são, muitas vezes, consequências da urbanização mal planejada e da poluição: atitudes insustentáveis do passado que se refletem em nosso cotidiano.

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Analise o modelo de vida conhecido como Slow Living. É o surgimento de um grupo de pessoas que querem viver com calma, cuidadosas, conscientes de suas ações. O movimento ganha cada vez mais adeptos, preocupados com o próprio bem-estar e com a natureza. O casal Denis Russo Burgierman e Joana Amador resolveu viver com calma e aplicar seus princípios sobre respeito ao meio ambiente, consumo e vida. Sabe qual foi o primeiro passo? Não ter carro. Tanto para diminuir o estresse dos congestionamentos (bem-estar), quanto para reduzir a emissão de gases nocivos (meio ambiente). “Eu acho que simplesmente andar de bicicleta é uma forma de ativismo. É um jeito de resistir aos apelos de consumo – e com isso evitar a destruição de habitats pela mineração, a emissão de gases de efeito estufa e muitos outros poluentes. É também uma forma de tornar a vida dos outros ciclistas mais segura. É comprovado que, quanto mais bicicletas houver na rua, mais segura é a rua para os outros ciclistas. Então cada ciclista novo melhora a vida de todos os outros. Além disso, minha presença na cidade pedalando melhora a qualidade do espaço urbano. Mas, além de tudo isso, andar de bicicleta traz um monte de ganhos individuais. À saúde, por exemplo. E também à vida, no geral. Chego de bicicleta muito mais feliz do que quem chega de carro”, garante Denis, demonstrando que a bicicleta cumpre seu papel de ecologicamente correta quando é utilizada como meio de transporte.

Para refletir sobre a questão sustentável, veja esta profecia, que embalou longas noites dos fundadores do Greenpeace que navegavam pelas Ilhas Aleutas, no Alasca, em 1971, na tentativa de impedir um teste nuclear dos Estados Unidos.

“Um dia, a Terra vai adoecer. Os pássaros cairão do céu, os mares vão escurecer e os peixes aparecerão mortos na correnteza dos rios. Quando esse dia chegar, os índios perderão o seu espírito. Mas vão recuperá-lo para ensinar ao homem branco a reverência pela sagrada terra. Aí, então, todas as raças vão se unir sob o símbolo do arco-íris para terminar com a destruição. Será o tempo dos Guerreiros do Arco-Íris.”

A profecia, feita há mais de 200 anos por “Olhos de Fogo”, uma velha índia Cree, acabou por batizar os ativistas do Greenpeace, conhecidos em todo o mundo como “Os Guerreiros do Arco-Íris”. Ativismo por ativismo, os ciclistas diários traduzem, em ações, o que tanto ouvimos falar sobre sustentabilidade, e seria totalmente justo dar-lhes, também, o título: ciclistas são guerreiros do arco-íris.

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