Sempre que me perguntam se não tenho medo de andar de bicicleta pelos bairros ditos “barra-pesada” à noite, inclusive madrugada alta, respondo que não, que para me alcançarem, quem quer que seja, vai precisar cumprir um pré-requisito: andar mais rápido que eu. E isso, meus caros, é impossível. O melhor exemplo é o daquele dia dos tiros.

Aqui na minha cidade basta pedalar um ou dois quilômetros no asfalto e você já está fora da cidade mesmo. Casas cada vez menores, casas cada vez mais apinhadas em terrenos cada vez menores. Pessoas que, em casas tão pequenas, precisam tomar ar do lado de fora, na calçada ou mesmo na rua, em grupinhos que fumam, ouvem música numa caixa de som, fazem uma vez por semana churrasquinho de gato e tomam cerveja barata em lata. Pessoas que, um pouco mais para frente, um pouco mais para o canto, um pouco mais para o escuro, vendem droga. Crack? Não sei, mas suponho. Maconha? Não sei, mas suponho. Cocaína, ecstasy? Não sei, mas duvido, porque isso é coisa de playboy, e aqui, nesses lugares de vapores ermos e olhos brancos brilhando por cima de sorrisos sedutores, playboy não entra.

Naquele dia eu era considerado um playboy. Eu estava com uma bike cara. Eu estava de uniforme, capacete, iPhone no bolso, fone de ouvido. Eu era, de fato, um típico playboy. E ali eu não podia ter entrado.

O grupinho saiu do canto da rua e fechou a estrada. Um deles tinha um cigarrinho no canto da boca, pendurado pela cola que a saliva consegue fazer no papel usado para enrolar a erva. Ele era pequeno, de uma magreza maldosa, vil, com jeito de matador que me lembrava um cangaceiro. Do seu lado, dois gorduchos, gêmeos, de braços cruzados por cima da barriga. Atrás, esparramados, com uma das mãos nas costas, segurando o que só depois fui saber serem pistolas, todos os demais. Eu entrava em território proibido. Que burro!, pensei na hora. Que burro!

Tudo em seguida passou muito rápido, na velocidade com que eu vinha. Com um sinal o magrinho fechou o meu caminho, ajustou o boné para trás, de través, e deixou a calça jeans grande demais escorregar de propósito pela cintura a ponto de mostrar metade da cueca branca. Tinha um colar de ouro grosso, um relógio dourado, que duvido fosse de ouro, tênis gigantescos e uma regata desinibida por cima do peito seco e costeludo.

Eu precisava decidir o que fazer. Vinha embalado com a minha mountain bike. A calçada estava ocupada, acho que por dois velhos jogando dominó. A luz não permitia ver muita coisa. Estava apagada — me parece hoje, pensando em retrospectiva — para deixar os gatos mais pardos naquela penumbra intimidadora.

Era e é impossível andar mais rápido que eu numa bike nessas horas. Não é falsa modéstia. Eu treino duro. Faço sprints, reforço muscular, subo as piores subidas da região. Meus KOMs no Strava provam tudo isso. Não é para me exibir que eu escrevo aqui. É para alertá-los. Para que aprendam com o meu erro. Para que não façam a mesma burrice que eu fiz.

O magrinho fechou o espaço. Ou eu parava e tentava um diálogo, o que certamente acabaria por me fazer perder a bike e todo o resto da minha dignidade, ou eu fugia. Tomei a decisão no meio do solo de bateria do Rush que de tão alto nos fones de ouvido quase sangrava meus tímpanos. Neil Peart socava as baquetas e maltratava com a sua sua sobrenatural elegância os pratos durante Tom Sawyer. Ali naquele infinito milissegundo eu pensei, junto com a voz do Geddy Lee, que a minha mente não estava para aluguel. Mirei no magrinho de propósito. Ele aparentemente duvidou da telegrafada arremetida que o meu movimento na bike indicava. Manteve-se impávido por um quarto de segundo ou menos, até que o gorducho da direita, o de óculos escuros, o empurrou para o lado, para protegê-lo. Era a brecha que eu precisava. Baixei uma, duas marchas, por sorte morro abaixo, e desci com o vento chiando na roda da frente e nos cabos dos freios. O primeiro tiro eu ouvi quando fiz a curva, achando que morreria ao bater de frente para a moto velha que subia com três pessoas aquela ladeira. Os outros dois tiros devem ter passado muito perto. Mas ainda assim felizmente não eram páreo para mim. Como eu disse: é preciso ser muito rápido para me pegar.

Já na parte baixa, plana, era hora de botar as pernas para fazer força. Mais força ainda, eu quero dizer. Muito mais. Como dois pistões bombeando os pedais para cima e para baixo, eu dançava uma coreografia brutal de pé na bicicleta, acelerando ao máximo a rotação para que a corrente transmitisse seu violento recado às rodas: girem, desgraçadas, girem!

Não sei o alcance da munição de uma pistola — de armas conheço pouco. Mas posso jurar que senti uma bala se aproximando e, à medida que eu acelerava e me distanciava, o projétil perdia força e velocidade e ficava para trás, como se eu fosse o ciclista em fuga a ser neutralizado numa grande volta de ciclismo de estrada e ela, a bala, o italiano desgraçado a me perseguir depois de um trecho de paralelepípedo da Paris-Roubaix. Todo mundo duvida quando eu conto essa história, mas é a pura verdade: a bala vinha no vácuo, na minha roda, querendo, com o sangue nos olhos, me pegar, penetrar a carne das minhas costas, alojar-se no meu peito e me derrubar ali sem dó nem piedade. Quando eu baixei mais uma marcha, enfim emprestei para as pernas cada molécula da alma e dos pulmões. Elas responderam à altura de todos aqueles anos de treinamento e então agregaram o meio watt de potência que era necessário para fugir daquela bolota de chumbo que se aproximava sedenta pelo meu sangue.

Coincidiu de eu ter ouvido o tilintar da munição enfim caindo desfalecida e exausta no chão com a próxima curva, quando a ameaça ficou para trás e eu peguei a avenida principal, por sorte com o sinal verde aberto, para depois me embrenhar por outro bairro até conseguir, ainda com o coração pulando pela boca, latejando as artérias que sobem pelo pescoço, chegar enfim em casa.

— Como foi o pedal? — perguntou a minha mulher quando eu tirei o capacete.

— Foi forte, esse foi bom — eu respondi.

— Você parece assustado.

— Que nada. Preciso treinar mais praquelas bandas de lá.