In memoriam…

© Anderson Ricardo Schörner

José Schörner (Juca), 55 anos de pedal

No mercado fazer compra, no barbeiro aparar o cabelo, na loja de ferragens comprar material para a marcenaria e até na casa de algum cliente tirar medidas para a confecção de móveis: lembro de meu pai, José Schörner, fazendo tudo sempre de bicicleta.

É que desde que nasci, em 1987, Seu Juca, como é popularmente conhecido, nunca teve automóvel. “Tive uma camioneta a gás por apenas cerca de dois anos, na década de 1980”, diz ele.

Em uma cidade pequena como Rio do Campo – SC, de fato a bicicleta dá conta do recado em termos de deslocamentos. Ele aprendeu a pedalar aos nove anos, em 1959, e na juventude, mesmo em trajetos maiores, bicicleta era a solução. Ele percorria mais de 50 km até a cidade vizinha de Vitor Meireles para namorar com Dona Terezinha, minha mãe e sua esposa há 42 anos. “Certa vez”, relembra, “depois de casados, resolvemos fazer a mesma viagem que eu fazia sozinho, desta vez juntos de bicicleta para visitar a família da esposa. Ela conseguiu ir, mas para voltar, tivemos que pedir ajuda para um caminhão de madeira. Ela não estava acostumada e sentiu muito o trajeto. Jogamos as bicicletas na carroceria e viemos de carona”. Além disso, ele se lembra de vários caminhos rurais, alguns que nem existem mais, desbravados sobre duas rodas na sua mocidade.

© Anderson Ricardo Schörner

Seu ofício, que exige habilidades para projetar móveis, peças e também habilidades manuais, o fez desenvolver uma percepção diferenciada e muita criatividade. Talvez isto o tenha levado a desenhar e fazer o próprio quadro para sua bicicleta, mais alongado e baixo. “Não estou nem aí para a geometria, só precisava de uma bicicleta em que me sentisse mais seguro”, conta ele. Aos 64 anos de idade, segurança é algo ainda mais necessário, pois o reflexo e força já não são mais os mesmos. Mesmo sem querer, talvez tenha acertado a “geometria” apropriada para ele: um quadro mais baixo permite que ele apoie os dois pés no chão e possa sair mais facilmente da bicicleta. Até a buzina foi improvisada para ser acionada sem tirar as mãos do guidão. Para-lamas, bagageiros, luzes, retrovisor e outros acessórios também foram por ele acrescentados. “Do jeito que ficou ela chama a atenção”, diz ele, “outro dia estava pedalando e alguns garotos pediram: ‘ei tio, onde você comprou essa bicicleta?’, e eu desconversei, disse que tinha vindo da Alemanha”.

O casal ouvindo um radinho de pilha ao lado da marcenaria, 40 anos atrás. © Arquivo Pessoal

Com mais oito irmãos, Seu Juca faz parte de uma família que tradicionalmente pedala. Suas irmãs iam de bicicleta dar aula em escolas do interior do município. “Como não tinha bicicleta própria ainda, eu pegava a bicicleta da irmã mais velha para pedalar antes dela ir para o trabalho, e assim que ela voltava eu já confiscava a bicicleta de novo. Acho que ela não gostava muito disso”, conta. Um momento triste que ficou marcado em sua vida foi a perda de um de seus irmãos, que faleceu enquanto pedalava…

Ele deu bicicletas para filhos e netos, e os incentiva a pedalar. Na foto, o netinho mais novo, Samuel Lucas, aprendendo com o avô

Mas nem por isso ele deixou de pedalar. Além de meio de transporte durante o dia, a bicicleta tem se mostrado uma terapia para os momentos de folga. Entre um trabalho e outro na marcenaria, uma pedalada. Umas voltas à noite pela cidade ou nos finais de semana pelo interior têm feito um bem danado para a mente e para o corpo. É visível a mudança de humor depois de uma boa pedalada. E no que depender de seus esforços, a cultura da bicicleta permanecerá viva em toda a família. Ele já deu bicicletas para os filhos e netos, e os incentiva a pedalar, por menores que sejam.

Talvez você tenha um herói do pedal que seja um ciclista profissional, que pedala centenas de quilômetros e acumula feitos sobre-humanos nas maiores competições do mundo. Mas meu herói é meu pai, por ter a sabedoria de viver uma vida simples e, justamente por isto, manter em seu cotidiano práticas e princípios que só o enobrecem, como o gosto de um pedal descompromissado.

Seu Juca e Dona Terezinha com os seus três filhos: Anderson, Fernanda e Jociane (ao lado do pai).

Diante de tantos apelos pelo consumo, velocidade e ostentação, é para poucos ter a coragem de negar tudo isto, tão valorizado pela sociedade, e buscar a felicidade no que é apenas essencial. Ele ainda mora na mesma casinha de madeira de sempre. Realiza o mesmo trabalho de marceneiro de sempre, uma das profissões mais bonitas que existem. E seu meio de transporte também é o de sempre, sem pressa ou complicação: a bicicleta.