Seja mulher, seja ciclista

Provavelmente você nunca ouviu falar sobre Alfonsina, não são muitos que sabem a sua pioneira história. Alfonsa Rosa Maria Morini foi uma ciclista de estrada italiana e a primeira mulher a competir em corridas com homens, como a Giro da Lombardia e o Giro D’Itália. Ela é considerada a pioneira na uniformização do ciclismo entre homens e mulheres.

© Arquivo Histórico

Nascida em uma família pobre italiana no ano de 1891, Alfonsina desde nova pedalava com a bicicleta que seu pai comprou para trabalhar. Antes mesmo dos 14 anos, ela já havia encontrado uma maneira de participar de corridas, mesmo em segredo de seus pais. Alfonsina sempre dava a desculpa de que ia para a missa dominical. Porém, bastou sua mãe descobrir para ela receber um ultimato. Se Alfonsina quisesse continuar a correr, deveria casar e sair de casa. E foi isso mesmo que ela fez, casou-se aos 14 anos com Luigi Strada, mecânico, e se mudou para Milão. Como presente de casamento, pediu a seu marido uma bicicleta. Luigi prontamente atendeu o pedido da amada e, além disso, sempre foi seu maior defensor e treinador no mundo do ciclismo.

Alfonsina ingressou de vez no mundo competitivo do ciclismo de estrada, vindo a participar duas vezes do famoso Giro da Lombardia, uma prova clássica italiana. Até que em 1924 ela conseguiu participar do Giro D’Itália, uma das grandes voltas ciclísticas e por vezes muito mais dura que o Tour de France. Sua participação no Giro foi alvo de muita suspeita e surpresa, sendo que os organizadores não divulgaram seu nome em um primeiro momento. O trajeto do Giro de 1924 foi extremamente duro, foram 3.613 km divididos em doze etapas. Noventa ciclistas largaram de Milão, entre eles a precursora Alfonsina, “o diabo de saia”. 

Claro que para ela era muito difícil acompanhar seus colegas do sexo masculino durante as desgastantes e longas etapas. Além disso, os tempos eram outros, as bicicletas eram pesadas, não existiam carros de apoio e o ciclista devia ser muito mais autossuficiente para aguentar tamanho sofrimento de uma grande volta. Mesmo assim, Alfonsina conseguia completar as etapas, mesmo que com algumas horas de atraso. Isso começou a chamar a atenção de todos, que cada vez mais torciam por ela. Devido aos seus atrasos, os organizadores decidiram excluir Alfonsina da classificação do Giro. O machismo que imperava muito forte naquela época não podia tolerar aquela grande mulher que não só desafiou os homens, como poderia vencer muitos deles. Mas o clamor popular fez com que eles aceitassem uma situação de compromisso. Alfonsina poderia participar das etapas restantes, mas seu tempo não contaria para a classificação final. E assim, dos noventa ciclistas que largaram de Milão naquele Giro D’Itália de 1924, apenas trinta efetivamente completaram a dura prova, e dentre eles a guerreira Alfonsina Strada.

Resolvi escrever um pouco sobre Alfonsina, essa precursora do ciclismo de estrada mundial, pois tenho um grande exemplo em casa. A história de minha mãe, nas devidas proporções, se assemelha a de Alfonsina. Minha mãe Rozeli sempre foi uma mulher apaixonada pelo ciclismo, sendo que aos mesmos 14 anos de Alfonsina comprou uma bicicleta de estrada com o seu primeiro salário como vendedora no comércio da cidade de Santa Maria – RS. Cresci com aquela bicicleta Peugeot Prestige 10 guardada como relíquia em minha casa. Aquele troféu, aquele símbolo de liberdade sempre esteve presente em minha família. Cresci escutando minha mãe falar com brilho nos olhos sobre suas andanças de bicicleta quando nova. Das vezes que subiu a serra de Itaara, ou das tantas vezes que audaciosamente descia a Avenida Presidente Vargas “sem as mãos”.

Porém, a história que sempre me chamou mais a atenção e que me orgulha tanto aconteceu pelo ano de 1979. Havia uma corrida de bicicleta em Santa Maria, minha mãe, Rozeli soube dela e resolveu participar. Chegando lá, ela era a única mulher, na época uma guria de apenas 15 anos de idade. Mesmo com receio, resolveu participar. Com a jovialidade de menina e o coração desprendido de qualquer medo, ela correu livremente e completou a prova com alegria e satisfação. Foi motivo de deslumbre, ganhou medalha e foi aplaudida. Na época não se viam mulheres competindo. A presença dela era um marco de coragem e liberdade, valores que são a cara do ciclismo, competitivo ou não. Atualmente, minha mãe continua a competir, adora as provas de longa distância que desafiam seus limites. É uma apaixonada por Audax, já tendo completado vários de 200 e 300 quilômetros, inclusive chegando à frente de inúmeros homens. Ela é minha grande inspiração toda vez que estou prestes a largar em uma volta ciclística.


Rozeli no BRM 300 km Internacional – Brasil – Uruguai. © Renan Machado e Photographa Kardozo

São mulheres como essas que têm o poder de mudar o esporte e a vida. Encarar os desafios do ciclismo e do meio onde vivem. Precursoras, guerreiras, audaciosas e livres. Precisamos cada vez mais que o esporte se diversifique e abra espaço para todos. A presença feminina tem crescido a cada dia no mundo da bicicleta. Esse mundo libertador e incentivador é realmente apaixonante. Mulheres, sejam como a precursora Alfonsina ou como a audaciosa Rozeli e pedalem. Deixem de lado a vergonha ou qualquer machismo que infelizmente ainda possa existir, mesmo que de forma velada, e pedalem.

O glorioso Eddy Merckx tem uma frase que traduz e incentiva o ciclismo, “Pouco ou muito. Para longe ou para perto. Simplesmente pedale”. Lembre-se, simplesmente pedale!