Não é engraçado como damos conselhos que não seguimos? Eu me considero uma mulher de sorte, pois meu pneu costuma furar bem pouco. Em uma dessas ocasiões eu estava bem perto de casa. Ao ouvir aquele barulho característico da borracha mole no chão, desmontei e empurrei algumas quadras. No dia seguinte, troquei meu primeiro pneu, seguindo as instruções do meu namorado, também conhecido como Sabota. Situação complexa.

Não vou dizer que fiquei confortável em executar uma tarefa que me era completamente estranha com um homem me dizendo “faça isso” e “agora faça aquilo”, pois não fiquei. Porém, o desconforto serviu para fazer algumas reflexões sobre o tema.

Sabemos que mulheres não são socializadas para desbravarem o mundo das engrenagens e parafusos. Quando eu era criança, pedi para o meu pai uma boneca chamada Papa Papinha, que comia e cagava rs. O único brinquedo mentalmente estimulante que eu tive foi um kit de química que eu absolutamente amava de paixão. Já deu pra entender, né? Eu cresci achando que naturalmente não sabia desmontar, remontar ou reconfigurar nada. Qualquer problema que eu tinha eu pedia para o meu pai arrumar pra mim. Nunca me propunha a entender como eu poderia arrumar meu próprio brinquedo, e não por que eu nasci naturalmente sem essa habilidade, mas por que todos os comerciais, imagens e mensagens que me impactaram me diziam que eu não era feita para aquela atividade, e sim que eu tinha que cuidar, zelar, entender, alimentar, etc. 

Claro que, ao me ajudar a trocar meu pneu, Sabota tinha boas intenções e queria me ensinar, e eu me esforcei ao máximo para entender todas as informações que ele estava me trazendo. O pneu furado foi enfim solucionado. Todavia, fica o questionamento: quando deixaremos de ser salvas por homens?

Eu me sinto muito lisonjeada de conhecer e frequentar a bicicletaria Las Magrelas. É um loja e espaço de mecânica de bicicletas construído em suma por mulheres. Ao contrário da maioria dos lugares em São Paulo, a Las Magrelas não é um lugar para se passar; é um lugar para se ficar. Lá eu me encontro com a Dani e a Talita e passo horas rindo, recebendo conselhos amorosos e aprendendo a lidar melhor com a minha bicicleta.

Foi lá que aprendi coisas das mais básicas até as mais elaboradas. Fico sentada num banquinho branco de plástico vendo essas mulheres maravilhosas desmontarem e desbravarem o mundo masculino das peças. Lembro de comprar minha bicicleta e literalmente não saber nem calibrar o pneu. Quem me ensinou a usar a bomba sem quebrar o pininho foi a Dani. Foi uma mulher. Quem me ensinou a identificar gambiarras nas funilarias das bicicletas foi a Talita.

A pessoa que me acompanhou a primeira vez que, a muito custo, eu subi a Teodoro Sampaio foi a Luisa Peixe, uma amizade que eu conheci dentro desta bicicletaria. Sabemos que os conhecimentos passados de mulher para mulher criam outro valor, afinal, quando descobrimos o poder das alianças femininas, fazemos uma rachadura importante na armadura do patriarcado. Sem falar na confiança e segurança que você sente em pisar em solo masculino com uma guia mulher. Sei que Talita e Dani não vão me enganar ou me dizer que preciso de uma bicicleta nova quando meu problema é resolvido com uma bela revisão, e muito menos me assediar. Com elas, me sinto segura.

Esses dias eu coloquei minha insegurança em resolver furo no pneu sem a ajuda de ninguém, e elas me aconselharam a desmontar minha bike sozinha em casa para ver se eu realmente aprendi. Tive uma pequena aversão a essa ideia, mas sei que esta aversão é resquício daquela criança que brincava só com bebês de plástico. Precisamos com força superar as mulheres castradas que a socialização feminina cria. Só o que eu quero é estar envolta de mulheres que admiro e também me tornar exemplo para as outras. Seguimos juntas.

@oimilo

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