Não podemos nos acomodar no estigma de país jovem, em desenvolvimento, cultura latina e consequentemente ainda machista!
Todos sabemos que o mundo da bicicleta é predominantemente masculino, e isso não se trata de nenhuma novidade. Por isto, fui à busca de um desafio: encontrar casais cuja mulher fosse ciclista e ele não. Busquei exaustivamente por estes casais e foi muito difícil encontrar, quase impossível.
Mas a situação inusitada ainda estava por vir. A minha surpresa aconteceu quando ao encontrar estes casais, em que a mulher previamente havia se prontificado participar da entrevista, acabaram desistindo por um único motivo: o machismo! Em um país onde a homofobia é tratada de forma escancarada, o racismo, embora tímido, é também tratado de forma óbvia e direta, na mão
contrária está o machismo que é totalmente dissimulado.
Vinte e quatro anos nos separam da Constituição de 1988, que estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres perante a lei brasileira. Porém, ainda desfrutamos de uma igualdade apenas jurídica e não cultural e/ou conceitual, pois todo este tempo não foi suficiente para acabar com a subvalorizarão da atuação feminina na nossa sociedade.
A divisão de papéis, um legado histórico, serviu de alicerce para a dominação das mulheres pelos homens. Em nosso país a mulher casada foi considerada relativamente incapaz até 1962 e não podia sequer exercer profissão sem autorização do marido.
A nossa história é repleta de situações que colocaram a mulher como pano de fundo de uma sociedade fundamentalmente machista. Embora muitos anos tenham se passado, a nossa sociedade mantém um machismo cultural fortemente enraizado no comportamento de homens e mulheres.
Na situação que vivenciei com este trabalho, encontrei homens que por puro machismo, não toparam participar da entrevista, e suas mulheres por submissão (muito possivelmente inconsciente) me apresentaram diversas justificativas para desistirem da entrevista. Estes maridos, homens sedentários, com sobrepeso, negaram expor a condição de “inferioridade” (assim foi relatado por elas) em relação à esposa. Esposas estas que trabalham, mas que encontram tempo para se cuidar, para praticar esporte, pois
conhecem a importância da atividade física para a sua saúde e para a longevidade.
Estas mulheres relataram que o marido sentiu-se inferiorizado e afrontado com o convite para a entrevista. Além de não quererem participar, também impediram a esposa. Todas estas mulheres pedalam, e só não praticam o esporte com mais afinco exatamente pela falta de motivação, apoio e companhia de seus esposos. Não podemos nos acomodar no estigma de país jovem, em desenvolvimento, cultura latina e consequentemente ainda machista! O comportamento humano é um processo evolutivo, para
Claudia Franco ELA PEDALADA – ELE NÃO!
tanto, basta querer mudar, basta querer evoluir, basta querer sair da zona de conforto, do conformismo. Mas infelizmente, por diversas razões muitos casais insistem em manter o status quo arcaico e retrógrado.
Felizmente este cenário não é um padrão, há casais que convivem em harmonia e felizes com as diferenças, sem colocá-las na balança do “quem pode mais” ou do “quem é melhor”. É nas diferenças que a relação se fortalece, tendo como base o respeito e admiração. Este é o caso de Cintia Borges, 37 anos, doutora em engenharia de computação, professora da USP – Universidade de São Paulo, e ciclista. Cinta começou a pedalar quando criança e a bicicleta foi parte significativa de sua infância. Retomou o
pedal em 2001, quando se mudou para a Califórnia para cursar o doutorado. Na época usava a bicicleta como meio de transporte. De volta a São Paulo em 2006, teve dificuldades em manter a bicicleta no cotidiano. Participou de passeios noturnos, mas a sua grande paixão é o mountain biking.
Há um ano faz treinos regulares no rolo durante três dias da semana para manter o condicionamento físico, e mountain biking durante os finais de semana. Cintia gosta de esporte e sua paixão pelo mountain biking é mais do que evidente. No caso do seu namorado, isto não acontece. Apesar de saber pedalar, não pratica esporte e diz não gostar muito de pedalar.
O namorado de Cintia, por não gostar de praticar esporte, acaba se ausentando destas atividades da vida da namorada. No entanto, não se incomoda que ela pratique o esporte e participe de treinos e passeios com grupos de ciclistas. Cintia confessa que o fato de seu namorado não gostar de pedalar acaba limitando em parte a sua prática de pedal.
“Normalmente os passeios e treinos nas trilhas são realizados no final de semana, que é o tempo em que normalmente estamos juntos. Assim, tenho que escolher entre ficar o domingo com ele ou fazer uma trilha”, comenta Cintia.
Embora as diferenças e preferências distintas pela prática esportiva não geram estresse, Cintia comentou que tenta
motivar o namorado a fazer alguma atividade e tem dúvida em como conduzir a situação quando falam sobre o assunto.
“A verdade é que fico na dúvida sobre como conduzir a situação. Às vezes falo de pedalarmos juntos na ciclofaixa, pois adoraria dividir essa paixão com ele, mas ele não tem bicicleta e por conta disto não conseguimos colocar em prática a ideia do passeio. Por outro lado, não quero pressioná-lo a fazer algo que ele não goste ou não sinta a mesma motivação ou paixão que eu”, relata Cintia.
O fato do namorado não pedalar não gera estresse ao casal, pois sempre procuram dar espaço um ao outro para fazerem o que gostam. “Ele nunca reclamou explicitamente de eu pedalar, ou demonstrou frustração. Minha frustração é não saber como organizar o meu tempo fora do trabalho para que eu possa pedalar e ter tempo livre para que façamos atividades juntos”, ressalta Cintia. Embora pareça contraditório, Cinta comenta que o ponto negativo de seu namorado não gostar de pedalar está relacionado a ter menos tempo para ficarem juntos; por outro lado, eles têm individualmente um tempo só deles, o que acham saudável ao relacionamento.
Cintia e o namorado vão se organizando. Ambos cedem às suas individualidades de forma a manter o equilíbrio, independentemente das diferenças de gostos pela prática esportiva. O segredo desta harmonia na convivência pode estar no contexto e conceito da frase de Cintia: “Pedalar é necessário para manter minha sanidade!”.