O mito de criação do mountain bike conta que um grupo de amigos de São Francisco, na década de 1970, passou a frequentar antigas estradas de terra que subiam as montanhas ao norte da cidade com suas bicicletas adaptadas. Poucos anos depois, a brincadeira se transformou num esporte olímpico e uma febre mundial. Passados mais de 35 anos, como será que anda o MTB na região que viu Gary Fisher e Tom Ritchey criar suas bicicletas de montanha, e por que pedalar por trilhas na floresta se tornou algo que atrai tantas pessoas por todos os cantos do planeta? Quem sabe um roteiro de uma semana pelo norte da Califórnia, caçando as melhores trilhas criadas especialmente para mountain bikes, ajude a responder estas perguntas – e de quebra, realizar uma incrível viagem pela preservada Lost Coast e as Redwoods, as famosas florestas de sequoias.

e São Francisco são 450 km até Arcata (pronuncia-se “arqueida”), onde inicia nossa jornada de sete dias de trilhas na terra natal do mountain bike. Às margens da baía de Humboldt, a pequena cidade compartilha com a vizinha Eureka a fama de paraíso hippie, com sua população de estudantes, artistas e agricultores. No verão, a praça central da cidade recebe uma feira aos sábados, com a produção orgânica da região, apresentações de música e uma ótima oportunidade de conhecer as excêntricas figuras locais – é a primeira feira orgânica certificada da Califórnia. A cultura da bicicleta também está presente, especialmente no evento anual da Corrida Mundial de Esculturas Cinéticas (Kinetic Sculpture Race), onde inacreditáveis veículos a pedal largam da praça para um percurso de três dias por estradas, mar, pântanos e dunas.

Já para os mountain bikers, o principal atrativo é a Arcata Community Forest, um parque florestal que conta com uma rede de trilhas singletracks ideais para nossa primeira pedalada. Como ideal, entenda-se um primeiro choque de realidade para brasileiros acostumados com subidas por estradões de terra e trilhas fechadas sem espaço para altas velocidades. As melhores trilhas de MTB são desenhadas com seu percurso praticamente todo em singletrack, o que significa subidas técnicas com curvas fechadas (switchbacks), e descidas igualmente desafiadoras e estreitas, mas que permitem soltar os freios e não colocar o pé no chão por 10 ou mais quilômetros – desde que você tenha a experiência necessária.

A trilha de Arcata é uma introdução do que está por vir, podendo ser classificada como de dificuldade baixa, o que não impede de ter uma suada subida e as primeiras doses de adrenalina montanha abaixo por entre a floresta de jovens sequoias. É o momento também de pegar dicas e aprimorar a sua técnica com a ajuda dos experientes guias Mark e Adam. Alguns simples exercícios podem valer uma queda a menos e mais segurança na pedalada. São 15 km e 550 metros acumulados de desnível, e já estamos de volta à praça da cidade para o brunch – um super café da manhã tardio ao estilo californiano, com ovos, queijo, bacon, guacamole, batatas, torradas e litros de café – só mesmo uma pedalada matinal para abrir o apetite.

O destino da tarde é o rio Tish Tang, que também dá nome à trilha. Agora a brincadeira é experimentar a descida de 2,5 km com 370 m de desnível. Puro Downhill com opções de saltos para os mais corajosos. Outra característica das trilhas é a existência de pequenos desvios nos obstáculos e trechos que exigem mais técnica, assim mesmo iniciantes podem aproveitar a trilha e aprender gradualmente a encarar estes desafios. Com a ajuda de um carro de apoio levando-nos ao topo, fazer quatro vezes este trecho da trilha é diversão garantida e mais uma aula de mountain bike. Terminada essa seção, uma caixa térmica recheada com cervejas locais fecham o dia com estilo – saúde!

….início da trilha com 700 m de subida em 6 km, apesar de bem sombreada e cênica, é o preço a pagar pelos próximos 16 km na crista da montanha deslizando trilha abaixo vertiginosamente…

No dia seguinte deixamos Arcata de carro e seguimos ao sul pela Avenida dos Gigantes, uma sinuosa rodovia apertada entre sequoias seculares com até 100 m de altura que leva ao coração do Parque Estadual Humboldt Redwoods. Estas árvores são as mais altas e antigas do mundo, apesar de já terem sido exploradas para madeira, nesta área são preservadas oficialmente desde 1921, e algumas delas são estimadas em mais de 1.200 anos de idade. Uma caminhada entre elas é uma experiência única, que não pode ficar de fora do programa.

© Jonatha Jünge

Daqui em diante teremos que fazer por merecer cada metro de Downhill, e o início da trilha com 700 m de subida em 6 km, apesar de bem sombreada e cênica, é o preço a pagar pelos próximos 16 km na crista da montanha deslizando trilha abaixo vertiginosamente. Se o dia anterior foi a aula introdutória, a trilha da Redwoods é a prova de admissão ao mundo do MTB da Califórnia. Para isso basta você vencer a escalada e encarar a descida, terminando o pedal com um sorriso no rosto, louco para comentar com os amigos como derrapou em certa curva e evitou uma queda (ou realmente beijou o chão).

Agora já estamos qualificados para a Paradise Royale. A noite anterior foi em Myers Flat, uma antiga paragem de carroças do velho oeste com apenas uma hospedagem que funciona desde 1915 e um restaurante de motociclistas ao estilo Easy Rider. Já estamos perto da costa do pacífico, mas antes de vislumbrarmos a Lost Coast, vamos experimentar uma das principais trilhas de MTB dos Estados Unidos.

Uma suada subida e as primeiras doses de adrenalina montanha abaixo por entre a floresta de jovens sequoias…

Com 19 km de extensão, a Paradise Royale foi criada exclusivamente para ser uma trilha de MTB por técnicos da International Mountain Bike Association (IMBA), entidade com sede nos EUA que promove a prática recreacional do MTB com a criação e manutenção de trilhas, cursos, eventos e desenvolvimento de políticas públicas. O conflito entre ciclistas, caminhantes e cavalos pelo uso das trilhas dos EUA é um problema antigo que normalmente é resolvido com a proibição do acesso de bicicletas. A IMBA vem tentando mudar esta situação desde 1988, e é responsável por criar regras de etiqueta nas trilhas e o reconhecimento de que ciclistas também têm direito de utilizá-las, provando que o impacto das bicicletas na trilha pode ser controlado.

Trilhas feitas exclusivamente para MTB ainda são raras, e a regra em geral é “dê a preferência para caminhantes e cavalos”. Mesmo numa trilha exclusiva de MTB é possível encontrar outras pessoas a pé ou montadas, e a regra se mantém – ciclistas são os mais novos no pedaço e se não tratarmos os tradicionais donos da casa com respeito é provável que sejamos despejados.
Tudo isso, somado à história do MTB na Califórnia, coloca altas expectativas para a tal trilha. Sua pretensão está clara inclusive no seu nome nada humilde, Paraíso Real na tradução para o português, dado pela localização entre as montanhas da King Range e Paradise Ridge. Mas somente pedalando pode-se descobrir se ela está à altura da sua realeza.

Sua pretensão está clara inclusive no seu nome nada humilde, Paraíso Real… mas somente pedalando pode-se descobrir se ela está à altura da sua realeza.

O trecho inicial tem o nome de Brincadeira do Rei (King’s Frolic), um sobe e desce na crista da montanha com alguns obstáculos artificiais, seguido do Fosso do Castelo (Castle Moat), primeiro Downhill relativamente fácil até o ponto mais baixo da trilha (400 m). E então o bicho pega com o Príncipe da Dor (Prince of Pain), 4 km de subida muito íngreme e curvas super fechadas que exigem uma técnica especial para conseguir encaixar a bicicleta (sobretudo uma 29’’) sem tirar o pé do pedal. Após um pretenso topo de montanha, a trilha volta a descer radicalmente para então subir ainda mais forte, seu nome: Paraíso dos Tolos (Fools Paradise). Agora no topo real da trilha (780 m) estamos no Chapéu do Bobo da Corte (Jester’s Hat), aqui uma parada para recuperar as energias é obrigatória.

Até agora foram 13 km de trilha, além do cansaço normal de uma pedalada, a atenção constante na trilha estreita e por vezes à beira de um pequeno penhasco, exige um esforço a mais para quem não está familiarizado. Mark, o principal guia e instrutor de MTB credenciado pela IMBA, conta que a proposta da trilha é poder ser feita sem paradas, faltando apenas a construção de pontes para cruzar dois rios, onde hoje temos de carregar as bicicletas – haja pernas!

© Jonatha Jünge

As representantes femininas estão cada vez mais presentes e sempre mandando muito bem.

A parte final da trilha é conhecida como Tango da Rainha Louca (Mad Queen’s Tango), pouco mais de 5 km de descida ininterrupta, com curvas fechadas, paredes (wallrides) e saltos no meio da floresta. Está certo, é mesmo um paraíso à altura da realeza do MTB, um exclusivo parque de diversões para os iniciados nas bicicletas de montanha.

A programação do dia seguinte sugere uma caminhada pelas praias de areia negra e encostas rochosas da selvagem Lost Coast. Mas também deixa aberta a possibilidade de uma nova visita à Paradise Royale, para aqueles que se renderam aos seus encantos. Após um barbecue à beira dos desfiladeiros que dão para o mar, assistindo ao pôr do sol no pacífico de nosso hotel estrategicamente posicionado em Shelter Cove, a decisão entre conhecer um lugar novo ou voltar para aquela incrível trilha não é tarefa fácil.

A Lost Coast é composta por uma longa cadeia de montanhas que seguem beirando o mar, o que impediu a continuação da original Highway 1, que deveria costear todo o oeste norte-americano, e assim se transformou na região mais preservada e desabitada da Califórnia. A melhor forma de conhecê-la é caminhando por diversas trilhas que atravessam seus 130 km, passando pela beira da praia ou subindo suas montanhas. No final das contas, vale a pena dar um descanso para a bicicleta e curtir um dia de trekking na Lost Coast.

Encontros com ursos, pumas e o Pé Grande, estão entre alguns dos bônus que você pode encontrar nestes dias de pedal pela Califórnia.

Equipe de construção de uma das novas pontes para as bicicletas na trilha Paradise Royale.

© Jonatha Jünge
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© Jonatha Jünge

No final das contas, vale a pena dar um descanso para a bicicleta e curtir um dia de trekking na Lost Coast…

Continuamos descendo a costa até chegarmos em Mendocino, uma pequena mas muito charmosa comunidade litorânea na beira dos desfiladeiros, famosa por sua população de artistas, restaurantes e pousadas bed and breakfast. Ficamos hospedados numa antiga casa do período Vitoriano (final do século XVIII), toda em madeira e com boa parte da decoração original, devidamente reformada.

Dois dias são necessários para percorrer as principais trilhas de MTB de Mendocino e arredores. Aqui a variedade é enorme com mais de 160 km de trilhas mapeadas e sinalizadas, onde cada um pode escolher entre trilhas curtas e técnicas ou longas e fluídas. Ou ainda pouco promissoras como a Classic TV, nomeada por ser monótona para os padrões locais, o que pode ser compreendido após uma volta na Gunslinger (Pistoleiro) – rápida e rasteira!

A pedida é terminar o dia com uma caminhada no centro histórico de Mendocino e jantar num dos melhores restaurantes da cidade, o sugestivo Flow localizado na antiga torre de água da cidade. O menu é econômico com massas, hambúrgueres e frutos do mar, tudo feito com ingredientes locais e orgânicos, ao melhor estilo da Califórnia.

Apesar da impressionante qualidade das trilhas até aqui, o último dia de pedal não deixa de gerar expectativas. Após algumas horas no carro pelo vale de Sonoma, chegamos a Fairfax no condado de Marin. A pouco mais de 20 km da Golden Gate, Fairfax é o palco das históricas Repacks, corridas morro abaixo com as bicicletas de freio contra pedal que acabaram culminando na criação das primeiras mountain bikes. O famoso Monte Tamalpais, Mount Tam para os íntimos, sediou estas corridas, mas hoje, inacreditavelmente, a maioria de suas trilhas estão fechadas para bicicletas – apenas é possível pedalar nas estradas de terra mais abertas, enquanto associações de ciclistas locais como a Marin County Bicycle Coalition lutam para melhorar a situação.

Mas é claro que não faltam opções de incríveis trilhas em Fairfax, onde o MTB se tornou seu principal esporte, com inúmeras lojas e bares, e um futuro museu dedicado especialmente à bicicleta. Nosso guia Mark nos leva para a sua trilha predileta, com início praticamente no quintal de sua casa, a já clássica Tamarancho.

Subimos pela estrada e chegamos no início dos 16 km de singletrack. A entrada possui um mapa geral do percurso, com cópias impressas que você pode pegar gratuitamente, e todas as recomendações para fazer a trilha com segurança e respeitar os outros ciclistas. Diferente das outras trilhas que fizemos até aqui, a Tamarancho está num terreno privado de propriedade de um grupo de escoteiros que cedeu o espaço para o trabalho dos voluntários, e estes construíram o percurso exclusivo para mountain bikes. É preciso comprar um passe diário para utilizar a trilha, no valor de 5 dólares, ou um passe anual. Não há um controle rigoroso, mas placas durante o percurso e a excelente qualidade da trilha nos lembram constantemente que seria desonesto estar ali sem o passe.

© Jonatha Jünge

A trilha é o sonho de qualquer ciclista de montanha, classificada como de alta dificuldade, com grande variedade de terreno e obstáculos. Mas não se assuste, os seis dias anteriores são a escola perfeita para este grand finale – e os trechos mais complicados sempre possuem uma alternativa mais fácil. Subidas estreitas e íngremes seguidas de descidas em meio a raízes e pedras resumem boa parte da trilha, que em alguns pontos abre para uma ótima vista panorâmica da região e da baía de São Francisco. Degraus e drops que parecem impossíveis valem sempre uma segunda tentativa, já que tudo ali foi construído na medida certa. Assistir aos ciclistas locais passarem voando é também uma aula e uma ótima diversão.

No final do percurso é possível acessar uma Flow Trail, onde a proposta é ter rampas, curvas e paredes que permitem você deslizar suavemente sem precisar pedalar, utilizando apenas o balanço do seu corpo na bicicleta e acertando a linha correta. Ainda que exija uma grande dose de habilidade para completá-la perfeitamente, é sem dúvida uma das brincadeiras mais divertidas da viagem, e mesmo os menos experientes podem arriscar, pois não há nenhum trecho muito perigoso.

Com a adrenalina em alta e relembrando os melhores momentos da semana, terminamos a épica viagem em um brinde com grandes canecos de cerveja. O local não poderia ser mais apropriado, um dos melhores bares para ciclistas do mundo (segundo a revista Outside americana), o Gestalt Haus, com uma enorme seleção de cervejas e salsichas para carnívoros e veganos – saúde!

O mountain bike é um esporte e sobretudo uma atividade de lazer que conquistou o mundo em poucos anos de história. Não há dúvida de que existem locais incríveis para conhecer de bicicleta por todo o planeta, mas pedalar pelo norte da Califórnia com suas trilhas cuidadosamente planejadas e mantidas por associações organizadas e voluntários comprometidos, e também vivenciar a cultura do MTB reconhecida e valorizada, é uma experiência marcante para todo ciclista. Mas nada disso é por acaso, se pararmos para perceber a importância histórica que a via ao ar livre e as áreas de preservação têm para o povo desta região, podemos compreender porque esta simples ideia de pedalar pela floresta germinou tão bem na Califórnia.

© Jonatha Jünge

Dica de viagem

Não deixe de passar alguns dias extras em São Francisco, a cidade é realmente amiga da bicicleta e possui inúmeros roteiros para se fazer no pedal, incluindo a travessia da Golden Gate. É também onde nasceu a Bicicletada, lá conhecida como Critical Mass, e que ocorre na última sexta-feira de cada mês.

Quem leva

A Caminhos do Sertão Cicloturismo organiza um pacote de 8 dias na Califórnia, de 4 a 11 de setembro com guia brasileiro, e em outras datas entre maio e agosto com guias que falam inglês, parte da sua nova linha de roteiros MTB em 2015. www.caminhosdosertao.com.br

Também é possível agendar passeios de um dia na região de Marin, com a Mountain Bike San Francisco. www.mountainbikesf.com

Saiba mais

Museu da Bicicleta de Marin e MTB Hall of Fame
www.mmbhof.org
Trilha Paradise Royale
www.blm.gov/ca/arcata/kingrange
Trilha Tamarancho
www.mtbproject.com/trail/808937
Marin Country Bicycle Coalition
www.marinbike.org