O ciclismo vive uma relação que quase poderia ser classificada como “de amor e ódio” com o transporte coletivo no Brasil. Ao longo do processo do seu amadurecimento – ainda em curso –, o movimento cicloativista incorporou a compreensão de que sem um transporte coletivo público eficiente, as cidades continuarão refratárias à bicicleta. Mas durante esse tempo o mesmo movimento teve de coordenar incontáveis intervenções junto ao setor do transporte coletivo devido ao envolvimento de seus veículos em vários “acidentes” com ciclistas.

A frase “devemos investir no transporte de massas para melhorar a mobilidade urbana” não passa de uma mentira contada pelos candidatos a cada eleição, mas ocupa lugar de destaque na pauta dos cicloativistas. Resulta daí, como bem assinalou um membro do movimento Passe Livre na tribuna federal, que o transporte público no Brasil é um “vexame”.

Pra encurtar conversa, já passamos da fase de precisar de números para demonstrar que o sistema de transporte coletivo é muito mais eficiente e econômico para a sociedade do que os meios motorizados privados. Gasta-se menos em infraestrutura viária, perde-se menos tempo no trânsito, mata-se menos pessoas em vias públicas.

E, aí está a interface com nossa prosa, sobra mais espaço público para as pessoas que caminham e pedalam! Com menos carros abarrotando ruas e estacionamentos, as calçadas podem ser mais largas e as ciclovias e ciclofaixas deixam de ser necessárias em boa parte do sistema viário.

Além disso, o transporte público também pode ser usado em integração com o ciclismo, no caso de viagens mais longas. É possível estacionar a bicicleta em bicicletários junto aos terminais e, dali, seguir viagem de ônibus, trem ou metrô. E também – já existem muitas experiências positivas nesse sentido – é possível transportar a bicicleta no próprio veículo coletivo.

Nesse sentido, a bicicleta também é uma aliada do transporte público. A bicicleta é um veículo igualmente saudável, econômico e sustentável para a cidade e, quase um lema do cicloativismo, é “um carro a menos” a atravancar o caminho do busão… Acresce que os ciclistas são mais potencialmente usuários do transporte coletivo do que os motoristas, seja pela integração intermodal, seja pela manutenção da “afinidade ideológica”.

Mas tem sido difícil a convivência entre ônibus e bicicletas no trânsito das cidades. Os motoristas, mal preparados como profissionais, acossados pelos patrões que os submetem a excessivas jornadas de trabalho, estressados com um trânsito desarrazoado e autoinvestidos de imaginária autoridade no trânsito, frequentemente não têm paciência ou respeito com os ciclistas.

É uma desgraça que os motoristas não se compreendam como tão vítimas quanto os ciclistas que eles estatisticamente abatem. Eles, nós, a comunidade urbana, o bom senso e a ética, os passarinhos e o clima planetário: somos todos vítimas da transformação do direito de mobilidade em mercadoria.

Interessa aos ineptos governantes muito mais que as ruas estejam apinhadas de carros do que com livre trânsito. É disso que eles vivem, seja nas campanhas eleitorais, seja nos mandatos: de viadutos e recapeamentos, de inaugurações e discursos, dos agrados aos eleitores abastados e de troca de favores com o poder econômico.

Como resultado das campanhas, protestos e pesquisas dos ciclistas, aumentam não só a infraestrutura e a frota de bicicletas, mas a consciência política dos cidadãos acerca da mobilidade urbana.

E os empresários do transporte coletivo não são mais do que isso: empresários. Negociadores. Comerciantes. A eles não importa o custo da operação, pois ele é todo repassado aos usuários, quando não é complementado com subsídio público. Não lhes molestam os congestionamentos nas avenidas, porque seus lucros não perdem a velocidade. E, no fundo, os congestionamentos são benéficos para os empresários, porque os usuários transferem seu descontentamento para a aludida má administração do trânsito e do sistema viário. Os amontoados passageiros dão sustentação, assim, a mais e mais concreto e asfalto.

Assim como ocorre na política cicloviária, a eventual tímida melhoria operacional ou a incomum acanhada diminuição tarifária do transporte coletivo têm sido resultantes da pressão da sociedade civil. E o junho de 2013 está aí para desmentir todos os reacionários. E: isso não pode ser esquecido por quem dedica algo do seu tempo e nervos para melhorar a qualidade de vida urbana.

O ciclismo, bem devagarinho, está voltando a ser praticado nas cidades brasileiras. Mas, para desgosto de quem lucra com o mal estar viário alheio, aumenta o percentual daqueles que atuam para permitir que uma parcela maior dos cidadãos possa usufruir dos benefícios da bicicleta. Como resultado das campanhas, protestos e pesquisas dos ciclistas, aumentam não só a infraestrutura e a frota de bicicletas, mas a consciência política dos cidadãos acerca da mobilidade urbana.

Está mais do que na hora desses ciclistas estreitarem relações com quem defende e com quem trabalha no transporte público – e de marcarem posição em relação a quem o explora. Em pauta: o rompimento do corporativismo, a compreensão dos direitos de cada usuário da via pública, a assunção de responsabilidades de cada instituição civil, a identificação dos opositores comuns e a construção de uma plataforma de atuação conjunta em favor da igualdade social, igualdade esta que não será plena se não ocorrer onde a comunidade se encontra: na rua, no trânsito, no espaço público.