As cidades estão repletas de perigos, dificuldades e transtornos para os ciclistas. A omissão abrange todos os setores da administração pública: ruas apertadas e adensadas formam uma infraestrutura hostil aos ciclistas e pedestres, o descuido e a soberba de motoristas e ciclistas são consequência da ausência de programas de educação para o trânsito, e a escalada crescente de violência viária resultam da falta de fiscalização e de punição às infrações.

Deste modo, o poder público assume uma postura de “pedala quem quer”. Não sejamos ingênuos: grosso modo, as prefeituras, os governos estaduais e o federal não desejam ciclistas nas ruas e, por isso, deliberadamente, tratam de não lhes oferecer nenhum agrado. Para a mentalidade dos gestores urbanos, os ciclistas são um problema, e não uma solução para a mobilidade urbana. Assim sendo, no mais das vezes, se negam a cumprir seus deveres constitucionais e, quando sucede qualquer tragédia, se isentam de culpa entregando a responsabilidade à insensatez dos ciclistas ou à imprudência dos motoristas.

Por isso, torrando os impostos que todos nós pagamos, o Estado entrega avenidas, rodovias, trevos e viadutos que não enganam ninguém. São obras de engenharia que declaram bem explicitamente: “ei, ciclistas e pedestres, aqui nós te devoraremos!”.

Mas ao oferecer alguma infraestrutura específica para o uso da bicicleta como meio de transporte, a situação é diferente: o administrador público está, com isso, estimulando as pessoas a pedalar. E se a infraestrutura é inacabada ou mal feita, ela assemelha-se a uma arapuca.

Infraestruturas como ciclovias e ciclofaixas são necessárias – em várias partes da maioria das cidades médias, pelo menos – para dar segurança ao pedalar, mas se elas não possuírem qualidade técnica, tornam-se perigosas.

Isto é particularmente importante quando tratamos com crianças, idosos e pessoas com pouca destreza. Tais concidadãos não se sentem confiantes em disputar uma avenida com carros, motos e caminhões – temor este que seria pleno de fundamentos até para adultos habilidosos. Portanto, uma ciclovia ou ciclofaixa novinha pode ser a deixa que faltava. Mas se a ciclovia carece de sinalização, se é mal interseccionada com o restante da estrutura viária, se possui bueiros rebaixados ou outras falhas, tal ciclovia deixa de cumprir seu objetivo.

E não se trata apenas de segurança, mas também do conforto. Não é incomum encontrarmos vias ciclísticas demasiado estreitas para a demanda de ciclistas (o que também é perigoso), ou que alagam durante as chuvas, ou ainda com o pavimento muito mais ondulado do que o asfalto da avenida paralela. Quanto mais problemas possuem as vias ciclísticas, menos atraentes elas são e maiores são as chances de encontrarmos ciclistas pedalando fora delas e, portanto, se aventurando em meio aos carros.

É bem difícil mesmo concebermos que pessoas com diploma, que fizeram promessas durante a campanha eleitoral ou que fizeram concurso público, todos sujeitos ao controle jurídico, planejem e instalem ardis para prejudicar justamente aquelas pessoas que pagam os seus salários.

Mas como interpretar que uma ciclovia seja implantada contígua a uma movimentada avenida sem que seja instalado um bendito semáforo para lhe incorporar ao trânsito? Como explicar que as ciclofaixas permaneçam inacabadas ou desconectadas entre si? Como devemos entender que as autoridades de trânsito fechem os olhos para os carros estacionados sobre as ciclovias? Como ajuizar que, entra prefeito e sai prefeito, as cidades continuem sem planejamento para a integração das bicicletas ao sistema de mobilidade urbana? Como se conformar com ciclorrotas demarcadas que sequer têm reduzidas a velocidade máxima das vias? O que devemos deduzir quando uma obra qualquer interrompe uma ciclovia, sem alternativas provisórias para seus usuários? Como se conformar com o fato de que, entra ano e sai ano, o nosso país simplesmente não publique regulamentação técnica para a infraestrutura cicloviária?

Temos duas alternativas para explicar isso: ou a incapacidade, ou o desprezo. Ou a falta de inteligência, ou a provocação. Ou o poder público está continuamente errando, ou está constantemente nos apresentando ciladas.

Dá a impressão de existir, na união, estados e municípios, Departamentos para a Construção de Armadilhas para Ciclistas. E só existe uma maneira da administração pública deste e dos futuros mandatos refutar esta interpretação: aplicando políticas públicas profundas, continuadas e sérias. E não para contentar os ciclistas, mas para conferir decência à mobilidade urbana.

Para isso é indispensável criar espaços de debate e deliberação com a sociedade civil, realizar estudos e pesquisas, aplicar recursos financeiros necessários para a construção e manutenção de infraestrutura de qualidade e instituir a integração de todas as áreas da administração pública (Ministérios, Secretarias Estaduais e Municipais etc.) para a conversão da atual cultura de mobilidade urbana, cultura esta que se polariza entre presas e predadores.