Assim como ninguém chama uma pinguela de ponte nem uma viela de avenida, não podemos permitir que se difundam denominações erradas a respeito das vias ciclísticas, principalmente porque algumas vezes tais denominações são propositalmente enganosas. Por maior esforço que façam os prefeitos nos seus discursos, por ignorância ou má-fé, um risquinho pintado na beira do asfalto não é uma ciclovia

O mais duro ao ouvir uma impropriedade dessas é saber que a via ciclística levou um bom tempo sendo pensada, projetada, contratada e executada, tramitando por vários departamentos técnicos da administração pública e de empresas de engenharia. Passou pelas mãos de técnicos com conhecimento de sistema viário, de legislação e de operacionalização de trânsito e mesmo assim, quando pronta, lá vai o prefeito inaugurar, ou apenas seu departamento de comunicação divulgar uma deformidade como se fosse uma maravilha da segurança e do respeito à dignidade do ciclista.

O Código de Trânsito Brasileiro é bastante claro: ciclovia é uma “pista própria destinada à circulação de ciclos, separada fisicamente do tráfego comum” (por mureta, canteiro ou similar), e ciclofaixa é “parte da pista de rolamento destinada à circulação exclusiva de ciclos, delimitada por sinalização específica” (com pintura, tachões reflexivos etc). Infelizmente, o detalhamento ainda não está regulamentado, mas as orientações do Ministério das Cidades são claras (ilustradas por tabelas) e respaldadas por técnicos especialistas: ciclofaixas podem ser instaladas apenas em vias com pequeno fluxo de veículos motorizados (unidades/hora) e com baixa velocidade máxima permitida (km/hora); nas vias públicas onde há grande fluxo de veículos motorizados circulando em velocidades letais, é necessária a instalação de ciclovias.

Portanto, mesmo que seja tecnicamente boa, uma ciclofaixa converte-se em uma ciclofarsa se instalada em uma avenida de tráfego denso e rápido. É uma fraude para os ciclistas que dela farão uso, pois estes não contarão com a segurança necessária para pedalar despreocupadamente; é um logro para a sociedade em geral, que, por desconhecimento, ficará com a impressão de que a nova estrutura é uma grande contribuição para a cidade.

Além disso, tanto ciclovias como ciclofaixas precisam ter largura suficiente, sinalização clara e abundante, pavimento plano, iluminação e drenagem adequadas e tratamento especial nos cruzamentos com as vias de motorizados. Está tudo lá no “Caderno de Referência para elaboração de Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades”.

Uma via ciclística exclusiva deve ser segura para todas as pessoas e não apenas para jovens hábeis e destemidos. Uma ciclovia ou ciclofaixa estreita, mal sinalizada e com obstáculos (postes, lixeiras, bueiros etc.) torna-se um ciclorrisco, uma verdadeira armadilha, principalmente para crianças, idosos e pessoas com pouca experiência. Pesquisas comprovam que mais de 50% das pessoas estariam dispostas a usar a bicicleta como meio de transporte se houvesse segurança (o que é chamado de “demanda reprimida”), mas muitas ciclovias e ciclofaixas são tão mal feitas que não conseguem ser atraentes para elas.

As vias públicas explicitamente compartilhadas com ciclistas (apesar de que, legalmente, todas as vias públicas o são), tal como as recentes ciclorrotas de São Paulo, também precisam garantir segurança para os pedaladores, mas desta vez com a redução da velocidade dos motorizados, farta sinalização vertical e horizontal, eliminação de faixas de estacionamento e constante fiscalização dos agentes de trânsito. Não se pode recomendar aos ciclistas que sigam determinada rota se na prática ela é tão hostil a eles quanto as demais vias públicas.

Outro problema crônico nas administrações públicas municipais, e que não incentiva o cidadão a comprar uma bicicleta, é a ausência de uma política cicloviária autêntica, o que resulta na construção de vias ciclísticas frequentemente curtas, instaladas em locais menos prioritários e, mais frequentemente ainda, isoladas e desconectadas. Sem responsáveis nomeados, sem planejamento de expansão a médio e longo prazo, sem estruturas adicionais de integração intermodal e sem a participação da sociedade, os ciclistas não têm como confiar que as ciclofaixas ou ciclovias de má qualidade sejam aprimoradas futuramente.

Portanto, o debate sobre a nomenclatura cicloviária não meramente de caráter conceitual e abstrato, é um debate fundamentado na realidade da malha cicloviária das cidades brasileiras, que está longe de atingir uma qualidade média. Chamar a atenção sobre o uso inadequado da terminologia não é uma questão de purismo linguístico, não é uma perseguição aos escorregões semânticos dos jornais ao reproduzirem as declarações dos secretários de obras, é uma questão de esclarecimento social e de precaução contra os embustes – especialmente em período eleitoral! É uma questão de não comprar gato por lebre, sobretudo quando quem paga a conta é o cidadão, seja com seus impostos, seja com seus ossos.