Estudo publicado em importante revista médica mostra que o deslocamento para o trabalho em bicicletas melhora a saúde, por isso é urgente que os governantes comecem a encorajar esse tipo de prática.

Todos nós sabemos que o sedentarismo é prejudicial à saúde e um dos principais fatores que causam diversas doenças na sociedade moderna. A superação deste problema passa pelo estímulo da prática de atividade física na população. Quando me perguntam se eu não acho perigoso andar de bicicleta na rua, minha resposta sempre é: “perigo é ter um infarto se eu ficar sentado no sofá assistindo TV”.

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Todavia, a escolha do tipo, de como e de quando uma atividade deve ser praticada, ainda não é um consenso. Vários pesquisadores, inclusive eu, sugerem que para que haja um maior benefício, é importante a escolha de uma atividade física que possa se integrar ao cotidiano de cada praticante especificamente. Acreditamos que ao introduzir uma atividade física como parte do dia a dia, inclusive tornando-a uma atividade coletiva, a adesão por parte da população será maior.

Uma das sugestões que vem ganhando peso neste início de século 21 é o uso de meios de deslocamentos ativos, em especial o uso da bicicleta ao trabalho. Pessoalmente eu já uso a bicicleta para ir ao trabalho há quase 10 anos. Atualmente até comemoramos esta prática com o dia de ir de bicicleta ao trabalho.

“podemos dizer que o uso da bicicleta como o modo de deslocamento para ir ao trabalho evitou casos de câncer e doenças cardiovasculares, bem como de mortes por essas doenças.”

Fonte: Instituto de Saúde e Bem-Estar da Universidade de Glasgow no Reino Unido

No entanto, quando falamos em saúde, não podemos ficar no “eu acho”. É preciso ter evidência de estudos científicos que confirmem determinada hipótese, ou então isto será somente uma opinião. No caso da importância do uso da bicicleta como meio de deslocamento para o trabalho, temos o que comemorar. Recebi a informação de que um estudo mostrando os benefícios para a saúde do uso da bicicleta para o trabalho seria publicado em uma das melhores revistas médicas do mundo. No mundo acadêmico, as boas notícias também correm rápido. Minha ansiedade só fez aumentar quando recebi o artigo e pude lê-lo. Lá encontrei um grande estudo inglês que investigou o comportamento de mais de 260 mil pessoas. Senti meu coração acelerar, como se estivesse pedalando no meio de um trânsito pesado, quando li que os resultados da pesquisa mostravam que as pessoas que faziam o uso de bicicleta para ir ao trabalho viviam mais e tinham menos câncer e doenças do coração.

O Estudo

Avaliar a qualidade de um estudo científico passa pela ponderação do contexto em que ele foi realizado. Ao ler o estudo, descobri que foi feito por cientistas do Instituto de Saúde e Bem-Estar da Universidade de Glasgow no Reino Unido, e que os pesquisadores investigaram 263.540 pessoas, tanto homens (48%) quanto mulheres (52%). Era muita gente e, além disso, atingia vinte e duas cidades do Reino Unido. Eles usaram os dados de um sistema de registro de saúde do Reino Unido chamado de UK – Biobank. Este sistema contém registros de várias informações, tais como comportamentos, hábitos alimentares e também informações sobre saúde. O objetivo deles foi investigar a relação entre o tipo de deslocamento para o trabalho com os casos de doenças e as mortes. Para descobrir se havia algum tipo de benefício de um tipo específico de mobilidade, foram definidos três grupos de deslocamento: a) deslocamento passivo – quando as pessoas faziam uso do transporte público ou de automóvel para ir ao trabalho; b) deslocamento ativo – quando os indivíduos iam a pé, ou usavam a bicicleta; c) modalidade mista – quando as pessoas faziam o uso de deslocamento passivo e o complementavam com um outro tipo de deslocamento ativo, a pé ou de bicicleta.

Para as doenças, os pesquisadores definiram como variáveis a morte por qualquer causa, os casos de câncer, as mortes por câncer, os casos de doenças cardiovasculares e as mortes por doenças cardiovasculares. Os pesquisadores inicialmente identificaram que tipo de mobilidade as pessoas utilizavam para irem ao trabalho, e cinco anos depois o que tinha acontecido com elas durante este tempo.

Natal, RN, Brasil © John Araujo

A bicicleta é a melhor prevenção!

Li e voltei a ler o estudo várias vezes. Queria convencer-me como médico e neurocientista de que os resultados estavam corretos. A análise dos resultados deste estudo inglês mostrava claramente que as pessoas que se deslocavam de bicicleta para o trabalho tinham expectativa de vida mais alta e menos casos de câncer e de doenças cardiovasculares. Além disso, elas também morriam menos de câncer e de doenças do coração. Para minha surpresa, os resultados mostravam que as pessoas que iam a pé para o trabalho tinham menos chance de ter doenças cardiovasculares.

Mas o que realmente o trabalho mostrou? Vou tentar explicar aqui de uma forma simplificada, mesmo correndo o risco de cometer alguma imprecisão. No estudo foi encontrado que do total da amostra (264.377 pessoas), ocorreram 2.430 mortes ao final de cinco anos (0,91%); no entanto, entre as pessoas que declararam que faziam o uso da bicicleta para irem ao trabalho – um total de 6.301 (2,40% da amostra) – os pesquisadores encontraram somente 37 mortes (0,59%). Já para as pessoas que se deslocavam passivamente, em transporte público ou em automóveis individuais, que somavam um total de 186.763 pessoas, foi encontrado o registro de 1.379 mortes (0,74%). Este menor percentual de mortes no grupo em que os sujeitos declararam que usam a bicicleta foi considerado estatisticamente significante.

Coenhague, Dinamarca © John Araujo

O estudo realmente não mostra uma causalidade, mas o que podemos afirmar é que se os que usam a bicicleta para ir ao trabalho tivessem o mesmo padrão de morte acreditado para a população geral, que foi de 0,91%, era esperado que tivessem ocorrido 63 mortes. Assim, podemos dizer que o uso de bicicleta como meio de deslocamento para ir ao trabalho salvou a vida de 26 pessoas. Já imaginou se extrapolássemos isto para toda a população do Reino Unido?

Este mesmo raciocínio pode ser feito em relação as outras variáveis. Assim, podemos dizer que o uso da bicicleta como o modo de deslocamento para ir ao trabalho evitou casos de câncer e doenças cardiovasculares, bem como de mortes por essas doenças.

Para aqueles que relataram que iam ao trabalho a pé, somente houve o registro de menos casos de doenças cardiovasculares. O estudo mostrou mais ainda a importância do uso da bicicleta quando comparou com a modalidade mista, pois somente para as pessoas que usavam a bicicleta como um dos meios de transporte é que ocorreu uma redução dos casos de doenças ou mortes.

Prof. John Araujo pedalando na Dinamarca © john Araujo

Derrubando Mitos

Ao terminar de ler o estudo várias vezes e fazer uns rabiscos, eu pude sentir sua importância por várias qualidades. Afinal, este foi um estudo feito com um grande número de pessoas. Além disso, apesar de outros fatores poderem confundir os resultados – tais como idade, sexo, uso de cigarro e de bebidas alcoólicas e doenças prévias – os pesquisadores verificaram que nenhum desses interferiu nos resultados. Ou seja, os ciclistas morriam ou adoeciam menos não por serem mais jovens ou não serem fumantes.

Alguns estudos mostrando que o uso de bicicleta como meio de mobilidade faz bem a saúde da população já tinham sido realizados anteriormente. Porém, os estudos anteriores tinham sido realizados nos países nórdicos, locais em que a infraestrutura cicloviária é grande e bem-feita. Outro argumento utilizado é que os estudos anteriores também tinham sido feitos em países com cultura no uso da bicicleta, fazendo com que haja mais respeito aos ciclistas.

Por isso, aqueles que defendem ainda o uso de automóvel individual como o meio de mobilidade mais eficiente diziam que a mobilidade em bicicleta só funciona em países com infraestrutura já implantada. Eles também sempre levantam o argumento de que o benefício do uso de bicicleta para ir ao trabalho não ocorreria em países com uma infraestrutura cicloviária precária, principalmente por causa dos riscos de acidentes

© specialized divulgação

Todavia, nós cicloativistas temos evidências científicas que podem generalizar a afirmação de que o uso da bicicleta faz bem para a saúde em qualquer local. Este estudo inglês mostrou claramente que estes argumentos estavam errados, pois o Reino Unido não é um país com uma infraestrutura cicloviária adequada. Além disso, eles também têm uma baixa taxa de uso da bicicleta como modalidade de transporte. Na Dinamarca, por exemplo, 40% dos deslocamentos são feitos em bicicletas, enquanto no Reino Unido somente 2,5%.

“Uma cidade mais humana, uma cidade para as pessoas.”

Esse discurso, em conjunto com o argumento de que andar de bicicleta é perigoso, representa as grandes barreiras para o uso da bicicleta no Brasil; no entanto, com este estudo temos mais um instrumento rico em evidências de que isto é errado. Este estudo derrubou vários mitos, e agora podemos escrever em letras garrafais: “O uso de bicicleta para ir ao trabalho faz bem para a saúde. A Ciência adverte“.

A bicicleta no futuro das cidades

Agora é o momento deste e de outros estudos sobre os benefícios do uso da bicicleta para ir ao trabalho serem empoderados por todos nós que somos cicloativistas. Vamos usá-lo como uma palavra de ordem, como bandeira de luta nas nossas reivindicações por melhores condições de infraestrutura cicloviária nas nossas cidades! Este estudo precisa ser levado a todos os gestores envolvidos com o planejamento e execução de projetos de mobilidade urbana.

Agora me sinto mais feliz com a minha atitude de ter trocado o automóvel individual pela bicicleta. Como cidadão, estou com novas munições para participar ativa e coletivamente na construção de uma cidade do futuro. Uma cidade com uma infraestrutura e cultura de mobilidade ativa, em especial o andar a pé e o uso de bicicleta para ir para a escola e para o trabalho. Uma cidade mais humana, uma cidade para as pessoas.