O garimpo de peças antigas é um ofício muito difícil. Aqui na Revista Bicicleta, falou-se deste assunto por diversas vezes. A escassez de bicicletas e/ou de componentes de tempos passados em excelente estado de conservação não é uma realidade. É difícil imaginar um motivo para um proprietário utilizar pouco uma bicicleta e outro motivo para cuidar bem. É até uma premissa incoerente se pensarmos… Um proprietário que não usa a bicicleta, também não vai dar valor para ela e assim, ao que parece, não teria porque cuidar da mesma. Contudo, as coisas não são bem desta forma. No mundo, ocorre de tudo… Cada situação é uma situação nova e especial. Da mesma forma que as pessoas, cada bicicleta passou por uma história. E cada história é um presente para nós.

Garagem do esquecimento

Ao longo desta história de garimpo me deparei com muitas bicicletas e peças. Situações variadas ocorreram, algumas vi de onde vieram e para onde foram, algumas acabaram, outras voltaram para alguma garagem do esquecimento. Este é o assunto que assombra qualquer entusiasta. A garagem do esquecimento é exatamente o que o nome diz. Muitas são as bicicletas em garagens, principalmente para um proprietário que possui uma garagem. As garagens são excelentes para guardar a bicicleta, principalmente quando fechadas e arejadas. Ficam lá, protegidas de ações furtivas e resguardadas do clima, porém, não é raro ouvir que na garagem dormia também um cachorrinho peludo. Neste caso, para quem já viu, a bicicleta quando ressurge da escuridão esta repleta de pelos do canino por toda relação e componentes lubrificados. Imagina como fica uma peça com mistura de pelo e óleo.

Em alguns casos dá pra juntar a poeira e fazer um filme triste. Isto quando não é uma bicicleta que foi pra praia e ao retorno nem manutenção recebeu. Quando isto ocorre, bom, aí muitas vezes é um restinho de bicicleta que dá mais trabalho e custo para arrumar do que comprar outra. Se o autor da reconstrução ou do garimpo não tiver paciência, recomenda-se que vá direto para a loja mais próxima e compre uma bela bicicleta. De outra forma, não haverá como ele entrar para este grupo de entusiastas que gostam de fazer diferente. E afinal, o que vale mesmo é se divertir… Se a bicicleta vai dar dor de cabeça, pensa que isto é pra ser uma parte da diversão! Bicicleta antiga dá trabalho! Quem não quer trabalho até a hora de ver o projeto pronto para o uso, não é um autor de garimpo ou reconstrução, é alguém que ainda não encontrou seu hobby.

Uma situação estranha das garagens do esquecimento é que algumas vezes a bicicleta retorna à mesma situação de onde foi encontrada pela primeira vez. De um dono e uma garagem escura, passa para as mãos de outro dono e outra garagem escura. O novo dono usou um pouco, fez um exercício por um tempo e mudou de hábito. Às vezes é uma questão de fase, outras de trabalho ou tempo, filhos, momento de saúde etc. De qualquer forma, a garagem é um pesadelo para muitas bicicletas. Pneus murchos e rachados, umidade e corrosão, cachorrinhos ou gatinhos peludos e até apertões com o carro em um dia de distração. É um pesadelo para o autor do garimpo. O filme é triste, mas por vezes guarda um segredo muito legal. A surpresa pode ser uma verdadeira máquina do tempo. É raro, mas acontece.

Perfil entusiasta e a busca

É difícil imaginar quando acontece o encontro ideal entre o autor do garimpo e a bicicleta perfeita, mas é evidente que isto é uma questão de amor e de escolhas. Muita conversa com um monte de malucos semelhantes a você e então surge uma dica. O que não serve para teu amigo entusiasta vira uma dica pra tua estrada. Ele chega e diz: “Olha, fiquei sabendo de uma bicicleta de ano, modelo e cor tal, então não quis nem olhar porque não é minha preferência, mas se tiveres interesse te passo o contato!”

Coisas assim acontecem com alguma frequência, contudo, como em muitas dicas no escuro, um grande percentual não passa de uma grande fria. O reconstrutor e o garimpeiro são muito parecidos. Ambos esperam encontrar, de forma diferente, os itens preferidos em perfeito estado. Estes são dois tipos da bicicleta que se ajudam, pertencem a um mesmo nicho, mas tem perfis diferentes, sonhos diferentes!

O sonho perfeito de um reconstrutor é achar uma bicicleta danificada, talvez mesmo em pintura, capaz de retornar à vida. O reconstrutor se abraça em qualquer coisa… Pega uma bicicleta precisando de pintura, ou compra só o quadro, manda fazer jateamento, personaliza ou originaliza, corre atrás das peças e faz acontecer. Raramente este tipo de projeto fica perfeito e em muitos casos trata-se de uma questão de grana. O reconstrutor não é um colecionador, mas pode direcionar o projeto para um colecionador ou encontrar alguém que apenas curta uma bicicleta em condições de rodar e que esteja personalizada.

O garimpeiro, geralmente quer algo como nasceu… Este cara é chato, difícil de agradar! Seja como for, todos eles têm um perfil especial dentro da comunidade ciclística, pois incentivam o uso, criam uma cultura ao seu molde e se relacionam com pessoas de um universo muito mais complexo do que aqueles que simplesmente as usam. Os garimpeiros falam com pessoas que trabalham em briques, com oficinas pequenas, com todo tipo de opção que possa levar ao encontro, inclusive com outros garimpeiros. Geralmente, estes caras são pessoas muito conhecidas em suas cidades e bairros. Eles são conhecidos com perfil de figura lendária. Você certamente conhece pessoas assim ou conhece pessoas que conhecem.

Quando acontece…

Toca o telefone, chega um sms, um e-mail… Histórias variadas. “Alô, é o Andarilho? Tenho uma bicicleta pra me desfazer, vou me mudar e não tenho onde guardar! Interessa?”

Conversa vai, conversa vem, muitos nem sabem a marca, cor ou modelo do que tem na garagem do esquecimento, menos ainda o tamanho da bicicleta. Porque este seria diferente? Muitos dizem: “Cara, é uma bicicleta muito boa, vale a pena tu vir olhar!”

E geralmente quando o proprietário desinteressado na bicicleta diz que mora longe de onde você está, aí sim o conjunto fica desanimador. Na esperança de tirar uma informação de qualidade do vendedor você pede fotos, modelo de peças etc. O vendedor responde na maioria dos casos assim: “é Shimano!”, ignorando todos os grupos que a grande empresa japonesa fez por anos e que mudam de acordo com as tendências. É assim hoje e foi mais ou menos isto no passado. A Shimano fabricava modelos variados a todo instante. Tem grupos que foram feitos por um ou dois anos e desapareceram. Outros foram mudando, mas mantiveram o nome, tal como Shimano Alívio, Acera, Altus etc.

Às vezes, num golpe de sorte, você ganha o dia. O dono desinteressado pela bicicleta diz: “cara, vem olhar a bicicleta. Ela tá novinha, vou te mandar uma foto por e-mail e te ligo logo mais!” A foto chega. Foto de celular, uma porcaria, mas deu pra ver o câmbio e o estado aproximado da bike. Geralmente quando a bicicleta aparenta estar ruim, acaba estando pior. É regra! Contudo, parecia boa, mas achei caro. Perguntei: “Onde tu mora, amigo?” O vendedor diz que mora em Novo Hamburgo. Pensei: “E eu em Porto Alegre… entre as cidades estão 43 km de distância. E se não estiver boa? Se for uma bomba vou perder tempo e dinheiro em combustível. Bom, como estou com tempo hoje, vou pegar o carro e fazer um passeio até lá.”

Resolvi ir lá olhar o Cavalo de Troia. Depois de quase uma hora escapando de engarrafamento de trânsito para sair da cidade e pegar a estrada, cheguei ao destino. O dono apareceu. Um senhor educado e solícito veio empurrando a bicicleta e sorrindo. Quando olhei para a bicicleta, vi o que era: uma Trek 830 da década de 90, um dos projetos que mais respeito em uma geração muito especial de bicicletas. Quase tudo exatamente como nasceu, exceto pelo banco e pedais. As demais peças eram originais e estavam em perfeito estado de conservação. Câmbio traseiro Alívio, dianteiro Acera, tal como pedivela, trocadores gripshift, cantilevers, Altus etc. Uma “salada” variada de grupos da Shimano, comum de ver até nos dias de hoje. Suspensão Duo Track, original, funcionando. Tudo com aparência de novinho. Empoeirado, mas novo.

Perguntei: “Quanto tu quer?” Ele pensou um pouquinho e disse o valor. Quando vi o estado geral do conjunto nem pestanejei, topei de imediato. Paguei em dinheiro e voltei para casa. Dia seguinte, depois de um trabalho, levei ela na oficina para limpeza. Havia necessidade de tirar aquela camada de sujeira e lubrificar. Entreguei-a ao Carlos Horn, conhecido em Porto Alegre como Tchaka Bikes. Ele trabalha em sua oficina fazendo estes caprichos para mim e para uns amigos. Profissional especial para estes projetos de estrada distante, pois ele viveu o auge dos anos 90 correndo e consertando estas bicicletas. Chegada a hora de buscar, Tchaka me recebeu dizendo que “a bicicleta deveria estar guardada em um lugar livre de umidade. Não existe isto! Tudo está perfeito, sem arranhões graves, sem riscos no câmbio traseiro, sem manoplas cortadas por tombos!”

Quando a gente se depara com um bicicleta de 20 anos é difícil imaginar como ela atravessou o tempo sem ser danificada pelo mau uso, pelo desinteresse, pela corrosão nos tubos de Cr-Mo. Aliás, lá estava “Full Frame Cromoly”, em uma etiqueta, na outra estava 19,5”, referente ao tamanho. A segunda etiqueta poderia ter sido removida em uma lavagem, pois ela é colada depois de tudo pronto, por fora do verniz.

Histórias como esta são realmente raras. Custei a acreditar que ela tinha 20 anos e mais ainda que chegou até mim por um telefonema. Não resta outra alternativa: esta bicicleta encontrou uma garagem do esquecimento que era também um portal do tempo. Nada poderia estar como realmente estava. Até mesmo os pneus ainda eram originais (Kahuna). Os pneus não estavam rachados. Ao que parece, este caso se trata de uma raridade em termos de experiência, mas fatos assim acontecem. Em algum momento, o telefone vai tocar novamente, talvez leve mais sete anos.