Havia uma época em que qualquer um com dinheiro e tempo – e pernas suficientemente fortes – podia entrar no pelotão do Tour de France. E naquele tempo aparentemente coisas muito estranhas aconteciam. Uma destas histórias é a do barão Henri Pépin de Gontaud, um ávido e riquíssimo ciclista francês que só queria aproveitar da melhor forma possível os dias que passaria no selim.


Havia uma época em que qualquer um com dinheiro e tempo – e pernas suficientemente fortes – podia entrar no pelotão do Tour de France. E naquele tempo aparentemente coisas muito estranhas aconteciam. Uma destas histórias é a do barão Henri Pépin de Gontaud, um ávido e riquíssimo ciclista francês que só queria aproveitar da melhor forma possível os dias que passaria no selim.

© Eduardo Sens dos Santos

Naquela primavera de 1907, o barão de Gontaud chamou alguns de seus funcionários do castelo que habitava na periferia de Toulouse e lhes informou a novidade: “vocês vão correr comigo o Tour de France deste ano”. Ele, o barão, e todos os funcionários sabiam que não se tratava só de um passeio, mas sim de uma corrida duríssima, com 4.488 km divididos em apenas 14 etapas, algumas com até 350 km. Tempos gloriosos. Em 2014 o Tour teve “só” 3.663 km, com 21 etapas. A função deles seria a de fazer companhia ao rico patrão, qualquer que fosse o ritmo dele, além, é claro, de servirem como mecânicos, carregadores de peso e tudo mais que um serviçal daquela época tinha por obrigação fazer.

Os domestiques (serviçais em francês) Jean Dargassies e Henri Gauban ficaram estupefatos. Até então o trabalho que tinham no castelo era simplesmente lustrar móveis, talheres, copos, manter a roupa do patrão alinhada, concordar gentilmente com tudo o que se dizia e jamais cometer a indelicadeza de se intrometer na vida privada do empregador. Certamente não estava na carteira de trabalho a função de “correr o Tour de France”, a corrida mais longa, mais dura, mais brutal do mundo. Para garantir que aceitariam de bom grado a oferta, o barão fez uma proposta irrecusável. Os três comeriam apenas nos melhores restaurantes e dormiriam nos melhores hotéis do percurso. Depois de cofiar o bigode para alinhá-lo para o alto, o chefe acalmou os serviçais, dizendo regiamente a célebre frase: “eu não tenho a intenção de vencer”. Sua verdadeira intenção era, como revelou em seguida, simplesmente “pedalar por prazer”. Aparentemente a dupla titubeou, e o barão ampliou a generosidade. Prometeu a ambos que, vencendo ou não, como recompensa pagaria os quatro mil francos previstos como premiação ao vencedor do Tour de France pelos organizadores, uma pequena fortuna à época.

E assim começou o Tour de France de 1907. A partida foi em Porte Bineau, às 5 h 30 min. Henri Pépin não estava muito preocupado com a largada e conversava calmamente com uma donzela, cumprimentando e jogando beijos para outras senhoritas com seu chapéu, adereço que o acompanharia durante toda a corrida. A previsão daquele dia era de oito horas de pedal até Roubaix e Pépin estava otimista: “vamos partir, mas lembrem-se, nós temos todo o tempo do mundo”.

De fato tinham. O trio chegou nada menos que doze horas e vinte minutos depois do vencedor da etapa, Émile Georget, média que se repetiu nos dias seguintes e que pouco importava porque, naquela época, o Tour de France se decidia por pontos e não por tempo. Henri Pépin e seus domestiques não tinham pressa alguma, porque sabiam que um minuto ou dez horas depois não faria a menor diferença.

No melhor estilo fair play, o barão acabou ficando conhecido de todos no pelotão. Brincava e ajudava quem precisasse. Mandava seus domestiques buscarem comida, água e todo o tipo de apoio. Jean-Marie Teychenne, um ciclista que competia naquele ano, foi encontrado pelo trio deitado numa vala. A expressão facial de Jean-Marie confessava: estava nas últimas por conta da tal fringale, a hipoglicemia que atinge o ciclista depois de horas sem se alimentar direito. O ciclista balbuciava e o que se podia ouvir foi um resmungar decidido: abandonaria a corrida ali mesmo. O barão não aceitou. “Não seja tolo! Junte-se a nós”. Limpou a lama do número 76 nas costas de Jean-Marie e ordenou a seus serviçais que o conduzissem até a próxima pousada, onde deveriam limpá-lo e alimentá-lo como se fosse um convidado de honra em seu castelo.

Você deve estar pensando se eles concluíram a corrida. Não, claro que não. Pépin, como alguns outros ciclistas naquela quinta edição do Tour, definitivamente não estava ali pelo pódio, mas sim pelo estilo, pela glória que é participar do que ainda hoje é considerado um dos desafios mais árduos que a espécie humana já se impôs. Levaria ainda cem anos para surgir o “Eat, sleep, ride, repeat”, mas os genes da filosofia de amor ao ciclismo já estavam engatilhados.

Bem… Na quinta etapa, Henri Pépin estava farto e disse a seus gregários, satisfeito: “estimados senhores, tive dias maravilhosos até aqui, obrigado”. E assim mesmo, sem mais nem menos, pagou o prêmio prometido e tomou o primeiro trem de volta para seu castelo.

Maiores detalhes simplesmente se perderam no tempo. Mesmo ciclistas e jornalistas esportivos mais antigos controvertem em diversos pontos e até mesmo em boa parte da história. Mas uma coisa parece certa: foi com Henri Pépin que nasceram os gregários (domestiques), estes heróis do ciclismo que colocam o nariz no vento, sem ligar para as horas, os dias nem os anos que se passam, tudo para simplesmente poupar os líderes da equipe do esforço de vencer a resistência do ar, tornando o esporte algo além de mágico!