Monsieur Paris-Roubaix

Chega a primavera no hemisfério norte e a cada quatro palavras na boca de um ciclista duas são Paris-Roubaix. A Clássica das Clássicas, a Inferno do Norte, ou simplesmente a Roubaix; a corrida vira o centro do mundo para quem prefere a dureza do selim de uma bicicleta ao molejo do sofá em frente à TV.

Apesar da baixa altimetria total, o percurso é recheado de setores de paralelepípedo, ou pavé, em francês. As pedras, algumas já desgastadas pelos séculos – por ali passaram tropas de duas guerras mundiais – fazem do percurso o mais desafiador do ciclismo mundial.

E não basta boa forma, técnica e ou equipamento em perfeita sincronia com o ciclista. Sem sorte, não há vitória na Paris-Roubaix. Roger De Vlaeminck que o diga. Foi o maior vencedor da prova de todos os tempos. Além das quatro vitórias (hoje igualadas por Tom Boonen), em 14 edições, o Cigano, como era também conhecido Roger, jamais fez feio. Chegou outras quatro vezes em segundo, uma vez em terceiro, uma em quarto, uma em quinto, uma em sexto e duas em sétimo. Uma única vez não completou. Ok. Ninguém é de ferro.

É meu caro amigo, é hora de você pensar: “eu que nunca ganhei nem rifa, nem pódio nas corridas do meu bairro… esse tal de Roger deve ser um monstro mesmo”.

E era.

O Monstro dos Monstros, ou Monsieur Paris-Roubaix, para os íntimos. Relembre que a Paris-Roubaix tem aproximadamente 270 km de extensão, com 60 km do percurso em setores de até 4 km de paralelepípedos. Todos os anos a organização muda o trajeto, buscando “novos” setores, descobertos após a retirada do asfalto, ou apenas redefinidos após uma reforma feita pelos “Amigos da Paris-Roubaix”, uma associação que voluntariamente recupera a estrada para manter o espetáculo sempre vivo.

Para vencer tanto, Roger, filho de vendedores de tecido ambulantes – daí o apelido “Cigano” – se submetia a brutais sessões de treinamento. Com frequência acordava às 5 h e pedalava 120 km até se encontrar com o parceiro de pedal, quando, então, para ele, o dia começava para valer. Meticuloso, Roger escondia até do próprio companheiro que já estava rodando a quase três horas. “Eu o deixava acreditar que tinha acabado de sair da cama também. Era importante para mim saber que eu estava fazendo mais que os outros. Eu também queria que os outros dissessem: Vlaeminck é tão cheio de classe, ele vence sem treinar muito”. Em média, Roger, que venceu em 1972, 1974, 1975 e 1977, chegava a treinar até 400 km por dia para se preparar para a Paris-Roubaix. Não é à toa que em 1975, quando bateu guidão com Eddy Merckx no sprint final da prova, foi De Vlaeminck que saiu vencedor. Eddy podia ser o Canibal, mas a Paris-Roubaix tinha dono.

Roger duelando com Eddy. © Arquivo histórico

Treinamento sim, mas há quem diga que De Vlaeminck tinha era muita sorte. Em 14 participações, só furou o pneu uma única vez. Sim, estamos falando de pneus de bicicletas de estrada entrando a 50 km/h em paralelepípedos frequentemente encharcados por lama. Seus fãs protestam: que sorte que nada; era pura habilidade. De fato, Roger De Vlaeminck era incrível em escapar dos buracos, das pedras pontiagudas e das incontáveis armadilhas da prova. “Ele tinha uma habilidade fantástica nesta corrida, girando por cima dos paralelepípedos como se fossem asfalto”, lembra Franco Cribiori. O diretor da equipe de Roger recorda ainda que “na mesma noite da Paris-Roubaix, nós jogávamos fora todas as rodas, exceto as de Roger, que ainda estavam em bom estado. Na verdade, estavam quase novas!”. “A forma como Roger podia passar pelos paralelepípedos incólume permanece um mistério para mim”, afirmou Brik Schotte, ciclista belga. “Além dos seus treinos de ciclocross, eu atribuo seu sucesso à perfeição com que ele encarava a corrida. Roger estava sempre bem posicionado nos pontos estratégicos. Parecia deslizar sobre as pedras”.

Deslizar parecia mesmo necessário. Voltamos a 1975, ano de uma das mais brutais edições da Paris-Roubaix. Roger sabia das dificuldades, para tudo estava preparado – lama, frio ou pedras – mas nada se comparava à confirmação de que ninguém menos que Eddy Merckx estaria na largada.

Naquele ano, Eddy Merckx corria com a camisa do arco-íris, honraria que brinda apenas o campeão mundial de ciclismo. O campeão mundial tem direito de usá-la por todo o ano, e geralmente basta um canto de olho para reconhecer que, com aquela camisa, quem quer que a esteja usando não é apenas mais um ciclista.

Eddy, que já era conhecido como o Canibal, por ganhar virtualmente tudo o que se podia ganhar no ciclismo, alinhou com Roger e mais 156 ciclistas. O dia estava ensolarado e fresco, mas a corrida prometia. Nas vésperas os céus despejaram lentamente centenas de hectolitros nas estradinhas cobertas de paralelepípedos, que agora pareciam pedras de sabão sob os pneus das bicicletas. A viscosa camada de lama tornou o espetáculo mais selvagem do que nunca.

E então a Clássica do Norte começou. E começou arisca. Marc Demeyer iniciou uma fuga agressiva e os pelotões se dissiparam cedo. Mais de seis horas depois, com dezenas de quedas, pneus furados, roupas encharcadas, o grupo líder sobrou nos quilômetros finais com apenas quatro ciclistas: Demeyer, André Dierickx, Eddy Merckx e Roger de Vlaeminck.

Os quatro não se poupavam, cada um querendo ver até onde o rival chegaria. Eddy, claro, estava de olho em Roger. E o Roger estava de olho em Eddy. Os estilos eram inconfundíveis. Roger mantinha sua postura aerodinâmica, com o guidão baixo e as costas alinhadas ao chão.

Merckx, por sua vez, não pedalava: marretava os pedais com brutalidade, usando o corpo como um chicote, para cima e para baixo, para alcançar mais potência em cada giro.

Ninguém era favorito. Roger caiu duas vezes durante a prova, apesar de toda a sua refinada técnica. Mas ergueu-se e voltou rapidamente, com elegância, justamente o que a Paris-Roubaix exige. Sim, Roubaix não é uma dama que aceite grosserias. Como uma rosa com seus espinhos, a Clássica exige delicadeza, e só Roger conhecia como ninguém seus encantos.

Faltavam 8 km para a linha de chegada, depois de quase 270 km de prova, quando então a Rainha das Clássicas resolveu decidir pelo seu pretendente. Tentou dissuadir Eddy Merckx com um pneu furado. Eddy, incansável e inabalável, conseguiu apoio para trocar rapidamente o pneu e iniciou uma perseguição insana. O campeão do mundo ardia de desejo pela Clássica.

© Arquivo histórico

E que chegada! Depois de quase sete horas pedalando numa velocidade média de 40 km/h, com mais de 60 km de paralelepípedos, duas quedas, fugas, perseguições, lama, lágrimas, rodas quebradas e pneus furados, os locutores perderam a voz e a torcida foi ao delírio em Roubaix. Roger aplaudiu-se e aplaudiu aos companheiros na chegada. Fez os caprichos da Paris-Roubaix e levou-a para casa, mais uma vez, para entrar para a história.

“Eu pedalei como um possuído para alcançar os líderes”, lembrou anos mais tarde, o próprio Eddy, que ao chegar ao grupo nem sequer parou para respirar por alguns minutos, como era de se presumir: partiu dali para um ataque solo, na esperança de tomar o grupo de surpresa.

De Vlaeminck, que sabia bem como cortejar a Clássica, não se desesperou. Seguiu Eddy e anulou a fuga, levando a decisão para o Velódromo de Roubaix. Lá Eddy, talvez pressentindo a derrota, partiu para um sprint muito longo, a única forma de um campeão do mundo perder em grande estilo. Roger De Vlaeminck, o Monsieur Paris-Roubaix, sabia ali que a vitória seria sua. Menos exausto que os demais, por conta da delicadeza com que atacava os setores de pavé, tinha pernas suficientes para batê-los poucos centímetros antes da linha de chegada.

E que chegada! Depois de quase sete horas pedalando numa velocidade média de 40 km/h, com mais de 60 km de paralelepípedos, duas quedas, fugas, perseguições, lama, lágrimas, rodas quebradas e pneus furados, os locutores perderam a voz e a torcida foi ao delírio em Roubaix. Roger aplaudiu-se e aplaudiu aos companheiros na chegada. Fez os caprichos da Paris-Roubaix e levou-a para casa, mais uma vez, para entrar para a história…