Entrar no Tour de France, você deve imaginar, não é nada fácil. Não basta ser um ciclista excepcional. É preciso que sua equipe esteja no topo do ranking da União Ciclística Internacional (UCI). Não há eliminatórias regionais como na Copa do Mundo. Ou você está numa equipe de altíssimo nível ou nada feito. Algumas exceções existem. Geralmente, além das dezoito equipes do topo do ranking da UCI, quatro equipes são convidadas. São times que se encaixam na política da Amaury Sports Organisation, o que significa por vezes ter um bom patrocinador ou estar numa área do planeta considerada estratégica para o esporte. Foi o que aconteceu em 2015: para turbinar as transmissões na Alemanha, e considerando um grande cheque da emissora ARD, os organizadores do Tour convidaram o time alemão Bora-Argon 18. E para tentar incentivar o ciclismo na África, a equipe MTNB-Qhubeka, da África do Sul, foi outra das convidadas.

É claro também que para ser selecionado dentre os nove ciclistas de cada equipe é preciso gana de vencer. E muita. Individualmente ou por equipe, o trabalho de cada ciclista é fazer o time campeão brilhar. Mas como na história do Tour de France nem tudo ocorre como previsto, há mais uma boa história para se contar, a história de um duelo pelo último lugar no Tour de France. Está atento? Posso começar?

Muito bem. Vamos lá!

Além da classificação por tempo, por pontos e por equipes, há uma classificação informal e extra-oficial no Tour de France, a lanterne rouge. A expressão indica a luz vermelha que no começo do século passado era pendurada no último vagão dos trens, algo como a atual lanterna traseira dos veículos. Servia para que, durante a noite ou dentro de túneis longos, um maquinista não avançasse inadvertidamente sobre outro trem, o que significaria uma tragédia sem tamanho. No ciclismo, a expressão passou a designar o último ciclista de cada etapa, o que fechava o pelotão, o retardatário, o lanterninha.

Vim Vansevenant segura uma lanterna vermelha. © Nathalie Magniez / AFP

Mas o que era apenas uma brincadeira do pelotão acabou tomando o gosto do público e, como bons vendedores que são, os jornalistas acabaram aproveitando o tema para liberar a imaginação e deixar fluir textos fantásticos a respeito do último colocado. Afinal de contas, era preciso informar aos espectadores quem tinha sido o pior classificado, quais as razões do baixo rendimento, e principalmente se ali estava um grande nome ou não. Muitas vezes o fato de ser o último significava uma grande vitória pessoal, quando, por exemplo, acidentes ocorriam ou as condições do tempo se mostravam desfavoráveis. O último era então aquele que, tendo tudo para desistir, manteve-se firme no pelotão. Uma glória!

O fato é que o lanterninha passou a receber tanta atenção que os patrocinadores viram uma chance de monetizar com a exposição. Basta imaginar um anunciante qualquer comparando o tempo de mídia de sua marca na camisa do primeiro colocado – e o custo que isso lhe gerava – com o tempo de exposição que o lanterne rouge acabava tendo – com custo muito menor. Qualquer um preferiria investir no último colocado.

A organização, é claro, não gostou nada da novidade. O Tour de France, que deveria servir para cultuar os melhores do pelotão, agora destinava espaço demais para longas entrevistas com os últimos colocados. Nem a organização e nem os patrocinadores acharam engraçadas as entrevistas, mas não há como negar que a ideia era muito interessante.

Os ciclistas, que corriam não apenas por amor ao esporte, mas pelas grandes recompensas financeiras que recebiam, encontraram aí um, digamos, nicho mercadológico muito conveniente. Sem ter que se submeter ao esforço descomunal de vencer um contrarrelógio ou uma escalada no Tourmalet, a receita era relativamente interessante, principalmente se considerados os contratos para participar de criteriuns durante o resto do ano na Europa. E então chegar em último passou a ser algo desejado e até mesmo planejado em minúcias.

É que a organização logo tratou de criar barreiras para evitar a perda do foco. Inicialmente, uma declaração pública de que não havia incentivo nem prêmio ao último colocado foi publicada, mas não surtiu efeito algum. Ao contrário, só atiçou mais a imprensa. A medida seguinte foi desclassificar o último colocado. Mas os interessados passaram então a disputar o penúltimo lugar. Surgiu por fim a ideia de instituir uma diferença de tempo de corte. Os ciclistas com tempo superior em mais de 20% do tempo do vencedor seriam excluídos da corrida. Mas nem isso foi suficiente, porque agora os lanterninhas calculavam e acompanhavam meticulosamente o tempo provável do primeiro colocado para serem os últimos dentro dos 20% mais rápidos.

O fanatismo – quase um culto – pelo lanterne rouge tomou tamanho corpo que em 1979 os ciclistas Gerhard Schönbacher e Philippe Tesnière disputaram minuto a minuto a última classificação. Tesnière já havia sido o lanterinha em 1978 e gostou tanto da fama e dinheiro recebidos que no ano seguinte tinha a meta bem clara em seus planos.

Philippi Tesnière © reprodução delcampe.netPhilippi Tesnière

A 21ª etapa de 1979 era um contrarrelógio. Bernard Hinault, o campeão, destruiu os oponentes impondo um ritmo de 42,5 km/h. Para os 48 km da etapa, com 1 hora, 8 minutos e 53 segundos. Tesnière e Schönbacher fizeram seus cálculos e largaram, cada um a seu tempo. Schönbacher fez o percurso propositadamente mais lento do que podia, em 1 hora, 21 minutos e 52 segundos. A tensão se instaurou entre os fãs da lanterne rouge. Tesnière conseguiria chegar tão próximo sem se desclassificar? As parciais indicavam que sim, e um Schönbacher germanicamente impassível aguardava sereno. Mas, com o tempo de 1 hora, 23 minutos e 32 segundos, a resposta foi não! Tesnière ultrapassou a margem de 20% do tempo de Hinault e voltou para casa mais cedo, eliminado, sem a desejada última posição.

Em 1980, Gerhard Schönbacher queria novamente o último lugar e a mídia inteira agora o acompanhava, com entrevistas diárias: “Eu era muito popular com a torcida e passei a repetir para todos que na verdade eu gostava de ser o último. Os organizadores informaram que eu estava zombando do Tour de France”. A saída da comissão técnica foi criar outra regra: aquele que ficasse por mais de uma etapa na última posição seria eliminado. Mas, ainda assim, Schönbacher, que adorava ser o centro das piadas, conseguiu acabar em penúltimo em todas as etapas, até a última, quando reduziu ainda mais a marcha e chegou em último mesmo, dentro das regras, para delírio da torcida.

O feito – se é que se pode usar esta expressão – de Gerhard Schönbacher no lanterne rouge só foi superado pelo belga Wim Vansevenant em 2006, 2007 e 2008, que dedicou grande esforço pessoal para o recorde. Afinal de contas, não é fácil conseguir ser o último no Tour de France três vezes consecutivas!

As palavras de Max Leonard, autor do único livro conhecido sobre os lanterninhas do Tour, cabem bem: “Se há algo mais na vida que vencer, esse algo deve estar contido em algum lugar no Tour de France. Porque o Tour é mais que uma corrida: é um bastião da França e da cultura francesa, uma lição de três semanas sobre a geografia e a história do país; é um drama de ética e emoção; uma tragicomédia em que duzentas pessoas desejam a mesma coisa, ainda que só um de fato a alcance e muitos não sejam nem sequer capazes para tanto; um melodrama de (falsas) esperanças e (condenados) esforços, desespero e desesperança, otimismo e desilusão; um zoológico humano e a vida num microcosmo”.

Vive le Tour!

Para saber mais leia o livro

Lanterne Rouge
The Last Man in the Tour de France