Fausto Coppi foi o maior ciclista de sua época. Até a II Guerra Mundial, e mesmo alguns anos depois, praticamente ninguém sequer se igualava ao italiano nascido em 1919, em Piemonte. Só do Giro da Itália ele colecionava cinco troféus de campeão (1940, 1947, 1949, 1952 e 1953), além de dois troféus do Tour de France. Some aí feitos “menores”, como vencer cinco vezes o Giro da Lombardia, três vezes a Milão-Sanremo e algumas outras vitórias na Paris-Roubaix e Flèche Wallonne. Sim, não esqueça também do recorde da hora de 1942: aos 22 anos, Fausto pedalou 45,798 km em uma hora, recorde que levou catorze anos para ser batido novamente.

Com oito anos de idade, a veia de campeão já pulsava forte. Flagrado pelo professor matando aulas na escola para passar o dia andando de bicicleta, Fausto recebeu o castigo das cartilhas de pedagogia da época. Empunhou o giz e postou-se diante da lousa, para iniciar o cumprimento da sentença: escrever centenas de vezes “Eu devo vir para a escola e não pedalar minha bicicleta”. Enquanto escrevia, as pernas tamborilavam no assoalho de madeira só de pensar no vento no rosto e na adrenalina de uma descida veloz. Fausto respirava o ciclismo, e o ciclismo não seria o que é hoje se não fosse Fausto.

Que me desculpem os politicamente corretos, mas sim, largar de vez os estudos aos treze anos foi para o italiano uma excelente escolha. Dali rumou para seu primeiro emprego, num açougue que servia de ponto de encontro para os ciclistas da cidade. O açougueiro por vezes patrocinava sanduíches de salame para as corridas locais. E Fausto Coppi, é claro, salivava só de pensar na vitória.

© Arquivo Histórico

Empanturrava-se então de salame, de sanduíches e de todos os prêmios que houvesse, porque para Fausto vencer era nada além do natural. A fome tinha uma explicação: apesar de adulto alto e forte (1,87 m e 75 kg), o menino havia sido diagnosticado com “desnutrição severa” nos primeiros anos de vida. O apetite voraz era então nada mais que uma forma de compensar a fome de criança. Mas a deficiência lhe custou caro na vida profissional. Por conta da má formação da ossatura, qualquer queda se tornava uma potencial fratura. Os registros contam pelo menos vinte ossos quebrados em toda a carreira, incluindo fêmur, pélvis, uma vértebra e a clavícula. Nada mal para um dos maiores campeões de todos os tempos.

Nada disso, é claro, o impediu dos gigantescos feitos no ciclismo. Há quem o compare a Eddy Merckx, mas os números não mentem. A comparação, de qualquer modo, é injusta. Fausto passou quatro anos sem treinar durante a II Guerra Mundial, no auge de sua competitividade, e fatalmente teria devorado todas as corridas de sua época.

Famoso e idolatrado pelos italianos e italianas, e dono de uma língua que não se continha em sua própria boca, com a fama Fausto Coppi passou se envolver em confusões que acabaram ofuscando o brilho de sua carreira. Nem mesmo o papa Pio XII foi capaz de demovê-lo das confusões.

O ano era 1954 e a revista La Stampa acabara de publicar fotos de Fausto abraçando o que a imprensa chamava de a “dama de branco”, sua amante há quase seis anos. Giulia Occhini havia se apaixonado por Fausto em 1948, quando seu marido (ambos eram casados), um rico médico e fã ardoroso de Coppi, a levara para assistir a uma corrida e depois convidara Fausto Coppi para passar férias com a família. Sempre vestida de branco, Giulia passou a acompanhar sozinha todas as competições, o que gerava especulações bombásticas para a ávida imprensa italiana, carente de alguma prova dos “crimes” de adultério, concubinato e abandono do lar conjugal.

Fausto Coppi e seu eterno rival, Gino Bartalli, dividindo uma garrafa de água. Foto clássica, demonstra o cavalheirismo no esporte. © Arquivo Histórico

Em 1954, contudo, o prato foi servido quente. Na linha de chegada de uma corrida em St-Moritz, Fausto foi fotografado abraçado com Giulia. O “affair” praticamente virou novela das oito. Fausto largou a mulher e uma filha, Giulia largou o marido e dois filhos, e juntos alugaram um apartamento em Tortona, só até serem despejados pelo proprietário, indignado com tamanha falta de pudores. Como o adultério era crime grave na conservadora sociedade italiana, a polícia fazia rondas para certificar se o casal dividia a mesma cama, à espera de uma prisão em flagrante. Giulia chegou a ficar presa três dias, além de ter sido condenada à prisão domiciliar. Fausto perdeu o passaporte como pena pelo hediondo delito… Giulia exilou-se então na Argentina, onde teve um filho de Fausto, até adquirir, cinco anos depois, o direito de rever seus filhos do primeiro casamento.

Como o divórcio era proibido “pelas leis dos homens e de Deus”, Fausto transformou-se num pecador público. E o papa evidentemente não poderia então dar sua benção ao Giro da Itália, como o fazia todos os anos no Vaticano, se os organizadores aceitassem um pecador. Pio XII, grande fã do ciclismo, não se conteve: “e se pela falta da benção algum ciclista morresse”? Largando suas ocupações sacerdotais, o papa ligou pessoalmente para Coppi pedindo que voltasse para sua esposa e desistisse do divórcio. “Saia do pecado, meu filho””, teria dito o pontífice. Coppi não saiu. Aquele pecado parecia bom demais. Pio XII não abençoou o Giro, que naquele ano castigou os ciclistas com a maior distância de todos os tempos (4.337 km, divididos em 22 etapas), mas sem maiores incidentes.

A língua solta também rendeu boas gargalhadas num programa de televisão. O entrevistador perguntou se os ciclistas todos “tomavam bomba”. Fausto respondeu firme: “Sim, e nem vale a pena falar sobre ciclismo com quem nega”. O jornalista prosseguiu: “E você, toma?”. “Sim, sempre que necessário”, disse Fausto. “E quando você considera ‘necessário’”, perguntou o entrevistador. Fausto não deixou por menos: “Quase o tempo todo!”.

Giulia Occhini.© Arquivo Histórico

Mas não seriam as duras montanhas da Itália, nem o suposto doping, nem mesmo uma paixão avassaladora que acabaria com a vida do Campeoníssimo, mas sim um pequeno mosquito. Já no final da carreira, aos 40 anos, Fausto foi convidado pelo presidente de Burkina Faso, um país do oeste africano, a competir contra ciclistas locais e participar de uma caçada. Ao chegar ao quarto, junto com Raphaël Gèminiani, Fausto viu que a caçada não havia terminado. Era preciso matar centenas de mosquitos que os atormentariam por toda a noite. “A caçada era de mosquitos e naquele momento eu não tinha noção da tragédia que aquilo viria a significar”, disse anos mais tarde Raphaël. E de fato, ambos foram picados e pegaram malária, regressando com urgência para a Itália. A doença não era muito conhecida e os ciclistas acabaram tratados para hepatite, febre amarela e depois febre tifóide, o que só piorou o quadro já grave de Coppi, que morreu vítima de um tipo letal de malária. A Gazzetta Dello Sport publicou um suplemento especial sobre a vida e carreira de Fausto Coppi. O editor lamentou pedindo a Deus que mandasse logo aos italianos “outro Coppi”.

Quase quarenta anos se passaram e as preces não haviam sido atendidas, mas o mito ainda tinha histórias a gerar. A causa mortis, que até então era tida por certa e indiscutível, passou a ser posta em dúvida. Em 2002, surgiram boatos de que Fausto havia sido envenenado. Um padre beneditino que servia em Burkina naquele período declarou ao jornal Corriere Dello Sport ter tomado conhecimento da verdade sobre a morte durante uma confissão. Segundo o padre, uma mistura de ervas teria sido inoculada na comida do italiano depois da morte de um ciclista da Costa do Marfim, atribuída a Fausto, que forçara o africano para fora da estrada durante a prova. A história não deixa de ter fundamento, já que o costume tribal em Burkina conferia o direito de vingança por envenenamento e, como declarou o padre, “muitas mortes atribuídas a malária e Aids são na verdade envenenamentos tribais”. A justiça italiana chegou a investigar o caso, mas a exumação do corpo não foi permitida e o caso foi encerrado.

Mas não seriam as duras montanhas da Itália, nem o suposto doping, nem mesmo uma paixão avassaladora que acabaria com a vida do Campeoníssimo, mas sim um pequeno mosquito.

© Arquivo Histórico

Nem Deus nem os papas conseguiram trazer aos italianos um novo Fausto Coppi. Outros sucederam o Campeoníssimo, mas ninguém dominou de forma tão intensa o esporte quanto ele. “Quando Fausto vencia não precisávamos de um relógio suíço para saber quanto tempo ele havia colocado em cima do segundo colocado. O relógio da igreja servia bem. Paris-Roubaix? Milão-Sanremo? Lombardia? Que nada. Eram sempre 10 a 15 minutos de diferença. Assim era Fausto Coppi”, disse, anos mais tarde, Gèminiani.