As técnicas de hidratação no ciclismo variaram absurdamente ao longo do último século. Sim, quando eu falo “absurdamente”, não estou exagerando. Você não vai acreditar!

Até a década de 1970, os ciclistas, que inclusive fumavam para se manterem na moda nas primeiras edições do Tour de France, tinham uma orientação que hoje soa completamente estúpida: quanto menos água, mais rápido.

Alguma lenda que se espalhou pelo pelotão naquela metade do Século XX dizia que os músculos reagiriam melhor, mais rápido e com mais força se o ciclista ingerisse o mínimo possível de água. A água ocuparia o espaço precioso dos alimentos, encheria demais o estômago, seria uma espécie de amolecedor dos músculos…

E, como qualquer conselho que aparentasse funcionar, todos seguiram ávidos. Talvez os mesmos médicos que recomendavam fumar até dez cigarros por dia como forma de limpar o pulmão tenham feito esta estranha prescrição aos atletas; talvez um desempenho anormal de algum ciclista que tenha perdido sua garrafa pelo caminho; talvez… Jamais se saberá ao certo a origem da prática, mas o fato é que por um bom tempo, aquele foi o lema dos ciclistas profissionais.

A indústria do cigarro utilizava imagens de médicos para vender seu produto.

De 1906 a 1912, por exemplo, a Volta da França foi disputada por pontos. Não importava muito se você estava um minuto ou uma hora atrás do ciclista à sua frente: sua posição final seria a mesma. São desta época algumas das fotografias de atletas parando em bares e restaurantes para uma cerveja, uma taça de vinho ou até mesmo uma refeição completa. Cronometristas e radialistas ficavam no meio do percurso e, tal como hoje as informações chegam via ponto eletrônico no ouvido, apoiadores davam todas as coordenadas. Não era difícil saber que uma parada de 15 minutos para uma salsicha e um caneco de meio litro de chope não faria diferença alguma. Eu particularmente não consigo discordar deles até hoje.

Não era difícil saber que uma parada de 15 minutos para uma salsicha e um caneco de meio litro de chope não faria diferença alguma.

As próprias garrafas evoluíram muito. Se hoje temos squeezers, com proteção antimicrobiana (dizem) e isolamento térmico, houve uma época em que as garrafas eram de vidro, com rolhas, ou mesmo tampas de aço. Procure no YouTube e você encontrará um vídeo em que os ciclistas assaltam um restaurante e levam garrafas fechadas com tampinhas de metal ou rolhas, e abrem uma a uma no meio do caminho, batendo contra o guidão ou puxando com os dentes. Sim, tempos de pura selvageria!

Mas a história que vou contar hoje ultrapassa todos estes limites. Sim, sei que o ciclismo é um esporte de desafios intensos, de quebra de recordes pessoais, mas quando ouvi pela primeira vez achei que fosse um boato e tive a sorte de poder conferir direto na fonte.

Foi depois de uma corrida – o Desafio do Meteoro, em Vargeão, Santa Catarina – que encontrei Cláudio Henrique Luiz da Silva, o popular Claudião. Sentados debaixo de uma tenda, com diversos amigos à volta, todos tagarelando por conta da dose de endorfina da bonita etapa de 40 km por trilhas e estradas rurais, percebi um silêncio repentino quando perguntei a respeito daquilo que eu julgava ser um boato, e que de fato ocorreu há 26 anos. “Claudião, conta pra gente como é que foi aquela pedalada do Halls preto?”, disparei sem piedade.

Cláudio é um excelente contador de histórias: narra com pausas bem colocadas, com ponto e vírgula e tudo. Os personagens ganham vida e de repente estávamos parecendo um monte de crianças sentadas ao redor do professor. O céu azul de inverno e o cheiro de churrasco já no fogo inspirava. Cláudio tinha 14 anos na época e até então estava aficcionado pelo ciclismo que conhecia de sua Caloi Cross Extra Light: “uma máquina”, segundo ele. Foi quando começou a ouvir falar nos feitos fabulosos de outros ciclistas mais velhos e conseguiu convencer os pais a lhe comprar uma Monark 10. A leveza e o desempenho da bicicleta na quadra de casa levaram o menino aos céus. Com ela, poderia dar uma volta ao mundo. Nenhuma distância seria grande demais; não haveria desafio insuperável. E a prova disso – estava decidido – viria no dia seguinte. Era novembro, começo de verão. Chapecó, oeste de Santa Catarina. Apesar de estarmos bem ao sul do país, o calor nesta época é feroz. Certamente fazia mais de 25°C já às 7 h da manhã, mas uma brisa suave e os conselhos da mãe falaram mais alto. Vestiu uma calça e uma blusa de moletom de manga comprida. “Capacete eu nem sabia que existia”.

“Subi na bicicleta e fui em direção à Ponte do Rio Irani, vinte quilômetros serra abaixo, ao leste de Chapecó, num desnível de aproximadamente 600 m”, contava Cláudio para todos os atentos ouvintes. “A ida já foi pesada, mesmo com muita descida, porque o calor apertou e eu mal conhecia o peso daquela relação da bicicleta de estrada. Eu tinha vontade de tirar aquele moletom, de ficar só de cueca. Quando cheguei lá embaixo, na ponte, no pé da serra, olhei para tudo o que eu teria que percorrer de volta e me bateu um desespero, um arrependimento”. Claudião havia percorrido os vinte quilômetros de Chapecó ao rio Irani em quase uma hora, nada mal para uma primeira pedalada. Mas manter a mesma média serra acima estava completamente fora de cogitação. “Foi aí que uma sede insana me invadiu e eu lembrei que havia tido a mais estúpida ideia da minha vida”, contava ele gesticulando.

Ao contar o causo, Cláudio interrompe a narrativa para criar um suspense. Ele inspira e conta aos ouvintes que hoje é gerente geral de uma agência do Banco do Brasil e nos garante que, mesmo num posto em que está submetido a rotinas pesadas de trabalho, com decisões de alto grau de dificuldade, jamais passou por um perrengue tão difícil quanto este. Cifras, contratos, financiamentos, cobranças, nada chega nem perto daquela épica aventura que, aos catorze anos, o transformou para sempre num ciclista de verdade.

“Que ideia? Que ideia?”, pergunta um garoto que acompanhava impaciente à narrativa. O azul dos olhos contrasta com a sobrancelha dourada que se ergue no meio da história. Claudião toma um gole do isotônico oferecido pela organização para se concentrar, abrir um sorriso enorme e satisfazer nossa curiosidade.

“Bom. Eu tinha visto na noite anterior uma propaganda do Halls, aquela bala, e prometia ´o máximo de refrescância’. Então pensei que, melhor que água, melhor que refrigerante, o mais prático seria levar comigo dois pacotinhos de Halls Preto. Achei que saciariam qualquer sede!”.

Risos, gargalhadas. Um dos ouvintes quase cai da cadeira improvisada sobre um toco de madeira. O ritmo da narrativa então aumenta e as gargalhadas crescem: “Quando cheguei lá embaixo da serra, na Ponte do Rio Irani, percebi a grande burrada que tinha feito. A boca estava seca, não havia bares, restaurantes, nada por perto. O sol já me cozinhava dentro daquela roupa. Experimentei a bala. Quase grudou na boca. Joguei tudo fora e comecei a longa jornada estrada acima. Eram vinte quilômetros, mas pareciam duzentos! Devia parecer aquela imagem do Pagador de Promessas, carregando uma cruz – que era a bicicleta – pelo asfalto, sem uma sombra sequer, passo ante passo, pé ante pé. Salvo por umas poucas árvores no meio do caminho e por uma nascente na beira da estrada, achei que ia morrer ali mesmo. Tinha saído às 7 h de casa e já eram quase 15 h quando cheguei de volta a Chapecó. Oito horas com o sol a mais de 30°C e eu de moletom, com mangas compridas, sem capacete, imaginando que me refrescaria com o Halls preto!”.

Cláudio Henrique Luiz da Silva com a equipe Caiçara, primeiro à esquerda. E na segunda imagem, hoje.

Quem pensa que nosso Claudião desistiu do ciclismo com este episódio se engana. Um mês depois do heroico feito, participou de uma prova municipal de ciclismo, a Regional do Oeste. Incentivado pelo Lourival Carminatti, nos anos seguintes, 1989 e 1990 esteve nos Jogos Abertos de Santa Catarina e em 1991 e 1992 na Volta de Caxias do Sul, ao lado de ícones do ciclismo nacional, como Daniel Rogelin, Márcio May, Soelito Gohr, Victorino Prando, Jânio Rossa, Fábio da Luz, Cleber Correa e Marcelo Sgarbossa. Hoje, além de gerenciar uma agência bancária, Cláudio Henrique Luiz da Silva continua participando de competições locais e regionais, e incentiva a gurizada a dar suas primeiras pedaladas. Mas sempre recomenda: “levem água, por favor!”.