Se você fura um pneu e se acha azarado, não conhece a história de Eugène Christophe, mais conhecido pela impressionante falta de sorte e pelos títulos que não ganhou do que pelas medalhas e troféus que guardava na sala de casa.

Eugène foi profissional na Era de Ouro do ciclismo mundial, entre 1904 e 1926. Neste período, seus feitos somados já são dignos de nota: foi pioneiro do ciclocross e o primeiro ciclista a usar a famosa maillot jaune, a tão sonhada camisa amarela, no Tour de France de 1919. Eugène liderava a competição naquele ano, mas os jornalistas reclamavam que não conseguiam distingui-lo no meio do pelotão, de modo que a organização resolveu o problema obrigando o primeiro colocado a usar a camisa numa cor mais chamativa. Hoje todos os ciclistas profissionais sonham em vesti-la, mas na época Eugène detestou: a cor lhe rendeu o apelido de Canário.

Provando que mandinga não traz boa sorte, o metódico Eugène Christophe era cheio de superstições. Só corria com um saquinho pendurado no pescoço contendo uma moeda de 20 e outra de 10 francos, um elo de corrente e uma chave de raio.

© DIVULGAÇÃO / Tour de france

A mania de organização deste herói do ciclismo felizmente legou aos dias de hoje uma enorme quantidade de informações. Ele mantinha, por exemplo, um diário com anotações de todas as corridas que participou, desde 1920. Lá se pode ler desde os resultados, suas impressões pessoais, seus gastos e a premiação recebida. Todas as noites ele escrevia um pouco no hotel antes de arrumar minuciosamente seu equipamento para a manhã seguinte.

De tão azarado que era, mesmo sendo muitas vezes considerado o melhor ciclista da competição, não venceu nenhuma das onze Voltas da França que disputou. Em 1912, por exemplo, Eugène teria vencido se o sistema fosse por tempo. A organização ainda adotava o sistema de pontos e ele perdeu, mesmo realizando um feito até hoje não repetido. Naquele ano Eugène protagonizou a maior fuga solo de todos os tempos: 315 km, sozinho, com a cara no vento. Diante da injustiça do resultado, no ano seguinte a organização adotou o sistema de premiação pelo menor tempo. Mas aí o azar, seu companheiro inseparável, falou mais alto e Eugène Christophe, perdeu o título novamente. Teria vencido se estivesse no sistema de pontos, mas perdeu porque algo impensável ocorreu…

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Eugène Christophe e Philippe Thys, que se tornaria campeão naquele ano, estavam cinco minutos à frente do pelotão numa das mais brutais etapas de todos os tempos, com sete montanhas e 404 km de extensão, quando concluíram a subida do Tourmalet. Eugène parou no topo, sacou a sua roda traseira e a trocou de lado, para colocar uma marcha mais pesada. Sim, somente 25 anos depois, em 1937, o câmbio traseiro passaria a ser utilizado pela primeira vez no Tour de France. Até lá, as bicicletas dispunham de apenas uma engrenagem de cada lado, conforme a necessidade: subida ou plano.

Com a marcha correta, Eugène mergulhou a toda velocidade vale abaixo. De acordo com os cálculos de Henri Desgrange, diretor da prova, o ciclista mantinha a liderança geral da prova com 18 minutos de vantagem. De repente, a 10 km da cidade de Sainte-Marie de Campan, no pé do vale, Eugène sentiu algo errado no guidão. Não conseguia mais direcionar a bicicleta e percebeu que a espiga do garfo estava quebrada. Tentando disfarçar para não prejudicar o patrocinador, desceu da bicicleta e passou a empurrá-la pela estrada em direção à próxima cidade. “Pela estrada” é modo de dizer. O melhor seria dizer “pelo caminho” ou “pela trilha”, porque as estradas não tinham asfalto e grandes pedras soltas não eram raras no curso da prova. Todos os ciclistas ultrapassados com esforço descomunal na subida o alcançaram. As provocações começavam, o que o deixou furioso. Eugène chorava de raiva e andou por mais de dez quilômetros até chegar à vila. Lá pediu informações e uma jovem o escoltou até a ferraria Lecomte, onde encontraria socorro mecânico.

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Mas nada é tão fácil assim. O art. 45 do regulamento não podia ser mais claro: os ciclistas têm que ser absolutamente autônomos; só o próprio atleta pode realizar consertos em sua bicicleta. Esqueçam as frescuras modernas, com equipes trocando todo o equipamento em menos de cinco segundos. O ciclismo era para fortes naquela época!

Como não poderia nem mesmo aceitar a ajuda do ferreiro, Eugène Christophe trabalhou sozinho por três horas seguidas numa forja a carvão, amolecendo o metal e soldando as partes quebradas para consertar o garfo. Os fiscais da prova acompanhavam a tudo impassíveis, de olhos atentos, em absoluto silêncio. Só as batidas do martelo no ferro ecoavam pelo vilarejo, um clima de enterro havia se instaurado no local. O ferreiro apenas informava o que deveria ser feito e Eugène executava. Passada a primeira hora, os fiscais indagaram se podiam confiar em Eugène por alguns minutos. Queriam sair para um breve lanche. A resposta parece hoje ríspida, mas dadas as circunstâncias, é preciso reconhecer a elegância: “Se estão com fome, comam carvão! Sou o prisioneiro e vocês meus carcereiros!”. Ninguém arredou o pé. Um menino de sete anos bombeava o fole para manter as brasas vivas e  Eugène foi penalizado em dez minutos – depois reduzidos a três minutos pela direção da prova – por ter contado com este apoio proibido.

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Consertada a bicicleta, Cri-Cri, como era conhecido, encheu seus bolsos de pão, as garrafas de água e seguiu adiante, concluindo naquele ano o Tour de France na sétima posição geral, depois de escalar ainda os passos de Aspin e de Peyresourde, este último com 12 quilômetros de escalada com até oito por cento de inclinação.

A Peugeot, fabricante da bicicleta, alega que o garfo quebrou por um acidente com um veículo na descida. Eugène anos mais tarde negaria, e de fato não existem registros da colisão. O mais provável, segundo o historiador Bill McGann, é que a Peugeot tenha criado esta história para não dar publicidade à fragilidade de seus quadros, o que, aliás, era natural numa época em que as estradas eram péssimas e a técnica de fundição ainda engatinhava.

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Mas para classificar um ciclista como “o mais azarado de todos os tempos” isso seria pouco. Se você achou demais, talvez seja a hora de rever seus conceitos…

Sim, por que o raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar? Em 1919, seis anos depois, Eugène estava na liderança da corrida, com 30 minutos de vantagem, quando, no penúltimo estágio, de Metz a Dunkirk, seu garfo quebrou novamente, nos paralelepípedos de Valenciennes. O ferreiro mais próximo ficava a mais de um quilômetro de distância. Eugène perdeu então mais de duas horas e meia – e a vitória – enquanto consertava a peça. Não arriscou ser punido em dez minutos novamente: nem mesmo para manter a fornalha acesa recebeu ajuda. E como se não bastasse, na última etapa de 1919, uma sucessão de furos o fez cair de segundo para terceiro geral. Mesmo assim, completou a prova, de cabeça erguida.

O público, de tão fascinado pela história de superação, exigiu e Eugène Christophe acabou premiado pela direção da prova com o mesmo valor destinado ao primeiro colocado geral. O Jornal L’Auto organizou uma lista de doadores que pagaram o prêmio de 13.310 francos. Foi preciso vinte listas no jornal para constar o nome de cada doador, dentre eles o Barão Henri de Rothschild, um dramaturgo e rico empresário.

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Com tudo isso, você provavelmente desistiria do ciclismo e certamente nunca mais olharia para uma bicicleta. Mas inacreditavelmente, em 1922, quando novamente disputava as três primeiras posições, Eugène quebrou outro garfo, na descida do Galibier, nos Alpes. Mais uma longa caminhada e mais trabalho na ferraria. E mais uma derrota fantástica!

As histórias de azar renderam tanto aos jornais quanto as narrativas das grandes vitórias do ciclismo mundial, a ponto de, em 1951, a Federação Francesa de Ciclismo ter instalado uma placa comemorativa na ferraria de Sainte-Marie de Campan. Na placa se lê: “Aqui, em 1913, o ciclista profissional Eugène Christophe, primeiro na classificação geral do Tour de France, vítima de um acidente mecânico no Tourmalet, consertou o garfo de sua bicicleta na ferraria. Tendo coberto grande quilometragem a pé, nas montanhas, e tendo perdido muitas horas, Eugène Christophe não abandonou a corrida que ele deveria ter vencido, mostrando um sublime exemplo de força de vontade. Um presente da Federação Francesa de Ciclismo, sob o patrocínio do L’Équipe”.

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Eugène, que tinha 66 anos então, encenou diante das câmeras o dia que lhe custou a sua mais provável vitória no Tour de France. No script, tal qual na história real, ele carregou a bicicleta no ombro, com a roda dianteira na mão, até a ferraria. Lá, com roupas de ciclismo, protagonizou os trabalhos de recuperação do garfo. O menino que o ajudou a bombear o fole e o fiscal da prova participaram da brincadeira. A jovem que indicou o caminho até a ferraria também estava lá. Os aplausos entusiasmados ao herói duraram minutos. Uma reconstituição mais moderna, com atores, pode ser vista no seguinte link: http://tinyurl.com/mhjaofr.

Em 1965 foi celebrado o aniversário de 80 anos de Eugène. Para comemorar, ele foi convidado para uma festa em Paris. O octogenário ciclista saiu da cidade de Malakoff, nas cercanias da capital francesa, com seu indefectível charuto na boca, e foi pedalando até a festa, no estúdio da Rádio Luxembourg. Pelo caminho, mais de uma centena de fãs o escoltava pelas ruas de Paris. Muitos não contiveram as lágrimas de emoção ao cumprimentá-lo.

Aos 81 anos de muita vida e muita história, ainda membro ativo do grupo de ciclismo L’Etoile Sportive de Malakoff, Eugène Christophe faleceu, legando ao mundo o exemplo de força, superação e coragem que só o ciclismo proporciona. Sim. É hora também de você repousar a Revista Bicicleta no colo. Uma salva de palmas para Eugène!