Já não é mais novidade que o ciclismo feminino vem crescendo e ganhando cada vez mais visibilidade no mundo. Apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer pela total igualdade de gêneros na competição, as ciclistas profissionais de hoje já vivem em condições bem melhores; é mais fácil treinar, competir e receber patrocínio. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que a ideia de uma mulher subir em uma bicicleta e correr em um campeonato chegava a ser inaceitável. Eileen Gray viveu nesse tempo. E queria mudar isso.

Edna Mary Eileen Gray nasceu em 25 de abril de 1920, no distrito londrino de Bermondsey. Ao longo de sua juventude, durante a Segunda Guerra Mundial, houve uma greve de transportes públicos. Ela morava no sudeste de Londres e trabalhava em uma fábrica de motores no noroeste. Viu a bicicleta como seu novo meio de transporte. Segundo Eileen, que era bem tímida, a bicicleta lhe ajudou a se tornar mais confiante. “Eu não consigo me lembrar de onde veio, mas foi a única coisa que me mudou. Como que me abriu um novo caminho”.

Já bem envolvida com o ciclismo, em 1946, Eileen viajou com mais três ciclistas para Ordrup, região próxima de Copenhague, para uma competição de trilhas. Juntas formaram a primeira equipe de mulheres britânicas a participar de uma competição internacional. Venceram a competição, mas naquele momento algo mais importante que o título aconteceu. “Os organizadores da competição nos queriam lá apenas como um espetáculo. Eles não perceberam que haviam nos dado visibilidade e uma chance de mostrar o que podíamos fazer”, comentou Eileen em uma entrevista para a British Cycling, em 2010. “Outras mulheres nos viram e devem ter pensado: ‘se elas podem fazer isso, então também podemos’, e a partir daí algo mudou”. O título em Ordrup serviu não só para celebrar uma vitória. O ciclismo feminino na Inglaterra começou a sentir mudanças depois daquele dia.

A maioria dos países europeus não via o ciclismo feminino com bons olhos. Mesmo com a bicicleta já totalmente inserida na sociedade, o ciclismo era necessariamente um esporte masculino. “Os franceses e os belgas não se opunham tanto, mas surpreendentemente, foram os holandeses que estavam contra mulheres correndo de bicicleta”, comentou Eileen. Os britânicos eram outros que relutavam com a ideia. “Os suíços e italianos também não ajudaram muito”. Eileen viu que as ciclistas precisavam de ajuda para vencer o preconceito da época. Para isso, fundou, em 1949, a Women’s Track Racing Association (WTRA), renomeada mais tarde para Women’s Cycle Racing Association (WCRA).

Seu esforço começou a surtir efeito. Em 1954, numa importante reunião com a União Ciclística Internacional, delegados britânicos dos Ciclistas Nacionais da União Europeia “deixaram de lado” o tabu e apresentaram um requerimento, que foi aprovado, para que recordes mundiais de mulheres em corridas fossem reconhecidos. No ano seguinte, o WTRA organizou uma corrida na pista Herne Hill, sul de Londres, para tentar o recorde mundial de 500 metros com Daisy Franks. A corrida aconteceu, apesar de algumas interferências por parte da federação. Outro importante momento foi quando o Clube de Ciclismo Whitewebbs passou a incluir a corrida feminina em um de seus eventos; 35 mulheres competiram, e este foi considerado o primeiro campeonato “não oficial” feminino do Reino Unido.

Eileen nessa época já não competia mais – decidiu parar depois do nascimento de seu filho em 1947. Mas ela se manteve na direção de um time de ciclistas, que foram convidadas para uma corrida de três dias em Roanne, França. França, bicicleta, corrida… Um início do Tour de France Feminino. O time continuou dando duro e em 1958 conquistou o primeiro título mundial de prova de estrada feminino, realizado na comuna francesa de Reims.

Eileen Gray (primeira da esquerda), competindo em Copenhague em 1946, como integrante da equipe britânica de ciclismo feminino.

Mesmo mostrando sua capacidade e talento, as ciclistas ainda tinham muitas barreiras a vencer. Beryl Burton surgiu em cena na época. A britânica é considerada uma das ciclistas mais fortes da história. Mas nem a presença de peso de Burton fez com que a federação de ciclismo cooperasse mais com as ciclistas. Inicialmente, as equipes femininas não recebiam muita assistência em eventos internacionais; no campeonato mundial de Leipzig, 1960, o time de Eileen recebeu 100 libras para custear todas as suas despesas. Os gastos foram maiores e as ciclistas tiveram que tirar do próprio bolso para cobrir o resto. Mas nada abalava aquele grupo. Na competição, Burton subiu duas vezes no pódio, sempre no lugar mais alto. Jean Dunn, também britânica, conquistou uma medalha de bronze. Na ocasião, uma das integrantes da equipe saiu mais cedo da competição levando tubos e pneus pertencentes a outras ciclistas. Eileen encarou o episódio como ato de sabotagem, que décadas depois “ainda fazia seu sangue ferver”. As vezes não são só os grandões que não ajudam!

Eileen Gray era uma mulher determinada. Se tornou presidente da Federação Britânica de Ciclismo entre os anos de 1976 a 1986. Durante sua gestão, o ciclismo feminino finalmente ganhou status olímpico, sendo incluído nos Jogos de 1984. Se tornou uma figura importante entre os apaixonados pelo ciclismo, principalmente em sua terra natal. Com o passar do tempo, variou suas atividades, mas sempre manteve em foco a bicicleta. Trabalhou na Cycling Weekly, onde manteve uma coluna chamada Grayline. Atuou como vice-presidente do Comitê Olímpico Britânico a partir de 1998, participando de 16 Jogos. Além disso, ajudou a comandar equipes britânicas nos jogos de inverno e de verão de 1992. Eileen também cooperou na fundação dos Jogos de Londres da Juventude. Merecidamente, em 2010, Gray foi uma das primeiras nomeadas para o Hall da Fama do Ciclismo. E teve a chance de carregar a tocha olímpica nos Jogos de Londres em 2012.

Eillen com a réplica de sua bicicleta Hércules, para o filme Vintage Bike Cave.

Eileen faleceu em maio de 2015. Viveu 95 anos. Boa parte deles para a bicicleta. Seu exemplo de persistência e determinação serve de inspiração para as ciclistas de hoje. Ela fez o que podia para ajudar as mulheres da sua época, desempenhando um importante papel ao impulsionar a participação feminina em campeonatos. O mundo ainda não é o lugar perfeito para pedalar, e as mulheres ainda lidam com o preconceito. Mas é sempre saudável lembrar do que já melhorou. E Eileen Gray teve a sua parte nisso!